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Até o último grão de areia

O Globo, Sociedade, p. 31
04 de Jan de 2015

Até o último grão de areia
Base da construção civil é um dos recursos mais explorados, e ONU alerta para uso insustentável

FLÁVIA MILHORANCE
flavia.milhorance@oglobo.com. br

A areia de dunas, praias, rios ou várzeas parece inesgotável, mas é um dos recursos mais explorados do mundo e um dos mais valiosos da vida moderna, já que é hoje a fonte principal da construção civil. Para dar conta do rápido crescimento urbano e de tantas outras aplicações, a mineração de areia vem numa velocidade maior do que sua capacidade de renovação, resultando em profundos impactos ambientais ao redor do globo e numa corrida ilegal pelos grãos que valem ouro em pelo menos 70 países, entre eles o Brasil. A situação ainda é ignorada pela maioria dos gestores, mas já chama a atenção de cientistas e da ONU.
São 40 bilhões de toneladas de areia e cascalho que desparecem do ambiente natural por ano, segundo estimativas conservadoras de um relatório publicado este ano pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA). O Brasil, junto de outros quatro países (China, Índia, EUA e Turquia), está entre os principais produtores de cimento do mundo (70%) e, consequentemente, entre os grandes mineradores de areia, já que 80% dela vão parar em obras.
Para se ter ideia, um quilômetro de rodovia requer 30 mil toneladas de areia; uma casa, 200 toneladas. Uma quantidade tão grande de material não poderia ser removida sem impactos, entre eles: praias devastadas, perda da biodiversidade e redução dos níveis e da qualidade de lençóis freáticos.
- Qualquer mineração é impactante - resume Decio Tubbs, professor do Departamento de Geociências da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e diretor do Comitê de Bacias do Rio Guandu (principal fonte de água do Grande Rio). - O que se pode fazer é buscar reduzir esse impacto, coibindo as extrações ilegais, incentivando a reciclagem e fazendo o manejo da área, durante e após a exploração.
CRATERAS 'LUNARES' EM AREAIS DE SEROPÉDICA
Parece um problema distante, mas uma área de 50 quilômetros quadrados é ocupada por cerca de 80 minas no distrito areeiro de Seropédica-Itaguaí, na região metropolitana fluminense. Ali, o aspecto é inóspito: estradas empoeiradas cortam as "crateras lunares" que têm em média 20 metros de profundidade e centenas de largura. À medida que a areia vai sendo retirada por dragas flutuantes e disposta em caminhões, o lençol freático (o Aquífero Piranema) surge do solo e forma grandes lagoas com uma cor geralmente azul turquesa, às vezes mais esbranquiçada ou esverdeada.
O geólogo Eduardo Duarte Marques, do Serviço Geológico do Brasil e com tese de doutorado sobre os areais, explica que a coloração inusitada é resultado dos processos geoquímicos que ocorrem durante a extração de areia, especialmente pela contaminação com sulfato de alumínio. As águas, portanto, são ácidas. Ainda segundo o pesquisador, a ação humana sobre o aquífero interfere na manutenção da Bacia do Rio Guandu, principal fonte de abastecimento do Grande Rio, embora esse impacto ainda não esteja quantificado.
- Não há como recuperar em 100% uma cava de extração de areia - lamenta Marques, lembrando que, em 2001 e 2003, foram assinados dois termos de ajustamento de conduta (TACs) entre sindicato, gestores e órgãos ambientais, visando a recuperar a região degradada. - Muitas ideias têm sido discutidas, tais como a instalação de locais para piscicultura, culturas hidropônicas, balneários temáticos e até para a recarga do aquífero, que pode ser alternativa ao Guandu em caso de escassez de água.
Apesar da abundância das lagoas artificiais, moradores da localidade sofrem com a falta d'água. Aliás, não são muitos os que resistem à região pouco desenvolvida, sem posto de saúde, mercado, saneamento ou iluminação pública. Casas abandonadas são facilmente encontradas. Completando 50 anos, uma moradora que pede para não ser identificada lembra que, em sua infância, laranjais davam outras cores à paisagem. Ali já vigorou uma forte economia agrícola, gradativamente substituída pelos areais a partir da década de 1950, quando o controle ambiental ainda era reduzido e a mineração provocava ainda mais impacto.
- O povo daqui é totalmente esquecido, isto aqui está destruído - diz.
Na casa de Eliane Paixão, de 39 anos, vivem seis crianças, que, nas férias, brincam na beira da estrada junto ao frequente trânsito de caminhões, que provocam nuvens de poeira. Esse é, por sinal, o único meio de transporte. Para chegar ao posto de saúde mais próximo, só caminhando por uma hora ou pedindo carona.
- Não é muito fácil, mas prefiro ficar aqui, moro desde que nasci, e a casa é nossa - conta.
O Sindicado de Mineradores de Areia do Estado não foi encontrado durante a semana para comentar as ações na área, que atualmente responde por 70% da areia usada na Região Metropolitana e é uma importante fonte econômica. Duque de Caixas e Cabo Frio são outros grandes produtores do estado. Embora a maioria esteja licenciada, não são raras as ações para coibir a extração ilegal de areia. Desde 2009, o Instituto Estadual do Ambiente (Inea) realizou 157 operações, algumas no próprio distrito areeiro. Na verdade, há ações em todo o Brasil.
Enquanto as areias dos desertos não são consideradas ideias para a construção civil, a disponibilidade de material em leitos de rios, várzeas e pedreiras caiu significativamente nas últimas décadas, reorientando a mineração para a costa marinha, segundo o relatório da ONU.
ÁSIA E ÁFRICA SOFREM COM EXTRAÇÃO ILEGAL
A Índia tem uma das situações mais preocupantes, pois a máfia da areia é a organização criminosa mais articulada do país. Pelo menos 300 pessoas foram assassinadas em disputas territoriais nos últimos cinco anos - e esse é só o total publicado em jornais locais. A remoção de mais de 12 milhões de toneladas do lago Vembanad vem reduzindo sua superfície, em média, dez centímetros por ano. A larga escala de extração e a violência levaram o governo a promover um encontro com representantes dos estados para definir ações.
No Marrocos, metade da areia (15 milhões de toneladas ao ano) vem da mineração ilegal, o que transformou uma grande praia num cenário rochoso entre Safi e Essaouira, área turística do país.
Organizações criminosas também roubam areia de praias da Indonésia, Camboja e Malásia e levam o material para Cingapura, no que ficou conhecido como o "fornecimento da meia-noite", em alusão ao horário da extração. Cingapura vive um rápido crescimento e precisou trazer de fora 517 milhões de toneladas de areia nos últimos 20 anos, tornando-se o maior importador, com consumo de 5,4 toneladas por habitante. A prática levou ao desaparecimento de pelo menos 24 ilhas indonésias. As estatísticas sequer incluem a mineração ilegal.
Um dos fortes críticos desse cenário é o professor da Universidade de Ulster (Reino Unido) Andrew Cooper, coautor do recém-lançado livro "The Last Beach". Desde que flagrou uma extração ilegal numa praia na África do Sul, há 20 anos, o pesquisador vem percorrendo praias ao redor do mundo, do Caribe ao Ártico. Ele diz que o problema tem se intensificado e alerta:
- Perder uma praia não significa apenas perder uma área recreativa. Todo o ecossistema é destruído, o que prejudica a pesca comercial e leva à perda da defesa natural da costa contra tempestades. No intuito de fazer dinheiro rápido, a atividade está destruindo a sobrevivência das comunidades.
Na Europa, os esforços regulatórios são maiores, mas isso não impede que grandes areais existam em países como Portugal. O problema é maior, diz a ONU, em nações em desenvolvimento. Nelas, a areia da praia é vista como "livre" e "acessível", acrescenta Cooper, cobrando um tratado internacional para banir a extração do litoral.
A ONU tem tratado o tema com mais atenção: acrescentou-o à lista de "questões emergentes" e incluiu a discussão na COP 20, embora ainda sem destaque. O órgão recomenda ainda a redução do consumo de areia, otimizando e reciclando materiais; instituindo impostos e incentivando a criação de alternativas de materiais; e reduzindo o impacto local, com mais estudos ambientais.

O Globo, 04/01/2015, Sociedade, p. 31

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