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Assentamentos na ilegalidade

O Globo, O País, p. 3
08 de Jan de 2011

Assentamentos na ilegalidade
Somente 21% dos núcleos rurais da reforma agrária têm licença ambiental

Catarina Alencastro

Dois anos depois de o Incra e a área ambiental do governo entrarem em choque por causa da revelação de que assentamentos de reforma agrária estavam no topo da lista dos maiores desmatadores das florestas do país, um levantamento feito pelo instituto a pedido do GLOBO revela que apenas 21% dos 8.763 núcleos rurais da reforma agrária brasileiros têm licença ambiental. Isso significa que quatro em cada cinco assentamentos do Incra estão na ilegalidade. Nessas áreas também podem estar ocorrendo crimes ambientais, com descumprimento da legislação sobre preservação de áreas de proteção permanente (APPs), como leitos de rios e topos de morro.
O Ibama já constatou que uma parte significativa dos crimes ambientais na Amazônia ocorre dentro dos assentamentos do próprio governo federal. Segundo o órgão, em 2010, dos 1.326 autos de infração lavrados por desmatamento, 18,5% ocorreram nos locais que o governo destinou para a reforma agrária. Do total de assentamentos, 6.878 estão sob responsabilidade do Incra; os demais são assentamentos estaduais ou reservas extrativistas, sob jurisdição do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio).
Expedição de licença é lenta
O Incra argumenta que o problema está nos estados. Caberia às secretarias estaduais de Meio Ambiente conceder as licenças, mas, em média, entre o pedido do Incra e a concessão do documento há um intervalo de cerca de um ano. Há casos em que mais de seis anos se passaram para que uma licença ambiental fosse expedida. Além do despreparo dos estados, há também um ingrediente político. É que no trâmite do licenciamento, o prefeito é questionado sobre se concorda ou não com cada um dos assentamentos previstos no município. Caso não queira ter colonos da reforma agrária em sua cidade, ele pode vetar o assentamento durante o processo de licenciamento ambiental.
Para se ter uma ideia, o Incra protocolou nas secretarias ambientais 5.305 pedidos de licenças entre 2003 e 2010. Mas a grande maioria continua sem andamento. Segundo o instituto, é impossível prever quando todos os assentamentos estarão com a pendência ambiental resolvida. Em Mato Grosso, por exemplo, há 534 assentamentos de reforma agrária. Nenhum deles possui licença ambiental.
- Nossa avaliação é que os órgãos ambientais estaduais não estão equipados para fazer licenciamentos - critica Luciano Brunet, coordenador geral de implantação de projetos de assentamento do Incra, sem fazer uma autocrítica sobre os desmatamentos em assentamentos já flagrados pelo Ibama no passado.
Estudos custam mais de R$150 mil
Luciano Brunet defende que o processo seja simplificado, já que para que a licença seja expedida, o Incra tem que elaborar um minucioso estudo sobre os impactos ambientais que o assentamento vai causar no local, e ainda prever quais serão as atividades agrícolas exercidas ali. O processo é semelhante ao do licenciamento de empreendimentos de infraestrutura, como a construção de estradas e usinas. Além de lento, o licenciamento dos assentamentos também é caro. Alguns estudos custam ao Incra mais de R$150 mil.
- Simplificar o licenciamento é fundamental, mas o problema não se resolve só com papel. Resolve-se com educação. A gente desapropria uma área de pastagem, mas o colono não quer ficar na área onde está o campim. Ele quer ir para a área de reserva legal. É um desafio brutal para nós. A ideia é investir muito em educação ambiental e recuperação ambiental - afirma Brunet.
O Incra diz acreditar que é possível compatibilizar a reforma agrária com a proteção ao meio ambiente. A Coordenação de Meio Ambiente e Recursos Naturais do órgão informou que nos últimos quatro anos foram investidos R$75 milhões em ações de educação ambiental e recuperação de áreas degradadas. No entanto, uma pesquisa sobre a qualidade dos assentamentos divulgada pela própria instituição mostra que apenas 10% dos assentamentos recuperaram áreas desmatadas. Projetos de educação ambiental são uma realidade para apenas 3% dos assentamentos de reforma agrária brasileiros.
Um dirigente da área ambiental do governo afirma que um dos principais problemas na Amazônia é o desmatamento e a extração ilegal de madeira em assentamentos do Incra. Cenário do assassinato da missionária Dorothy Stang, Anapu (PA) tem pelo menos dois assentamentos (Virola-Jatobá e Esperança) que não são licenciados. Esses locais são alvo de invasão de madeireiros que desmatam ilegalmente matas nativas sob responsabilidade dos colonos do Incra.
Sem a licença ambiental, os colonos estão em situação de inadimplência e, pela lei, não podem ter acesso a créditos rurais, como recursos do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf). Sem conseguir regularizar a situação, o governo flexibiliza a resolução 35/45, que cortou o crédito para quem não tem sua terra regularizada, e dá um prazo de um ou dois anos para que o problema seja resolvido. Expirado o prazo, o período é estendido por mais tempo.

Desmatamento já provocou embate.

Em setembro de 2008, o Ministério do Meio Ambiente, na época comandado por Carlos Minc, divulgou uma lista com os cem maiores desmatadores da Amazônia. O Incra aparecia nas seis primeiras posições. No total, o órgão foi autuado pela destruição de 292.070 hectares de floresta em oito assentamentos. Entre os crimes cometidos estavam a ausência de licença ambiental, a retirada de vegetação nativa sem autorização do Ibama e das secretarias estaduais e o de impedir que matas primárias se regenerassem. Por tudo, o Incra foi multado em R$ 265,5 milhões.
O levantamento constrangeu o então ministro do Desenvolvimento Agrário, Guilherme Cassel, e o presidente do Incra, Rolf Hackbart. Os dois alegaram que a lista de Minc continha erros crassos e que muitas das coordenadas dos assentamentos não correspondiam à realidade. Minc respondeu que os assentamentos do Incra não eram sustentáveis, e que não adiantava brigar com os números.
Já Hackbart afirmou que a lista era uma tentativa de mascarar a real causa do desmatamento, e que não era justo culpar os assentados, os ribeirinhos e os povos indígenas.
Para acalmar a situação, o ex-presidente Lula solicitou uma auditoria para checar se os dados estavam corretos. O resultado do trabalho mostrou que a situação ambiental dos assentamentos do Incra era ainda mais grave. Os núcleos rurais de reforma agrária listados no Mato Grosso tinham, na verdade, cometido 18% mais desmatamentos que o constatado inicialmente.
O Incra desqualificou o estudo do Ibama, dizendo que somado ao desmatamento ilegal estavam sendo computados desmatamentos autorizados. E chegou a provocar o Instituto Chico Mendes a também apresentar as taxas de desmatamento dentro de parques e reservas. No final das contas, foi negociado um acordo para converter as multas do Incra em pagamentos por serviços ambientais.

O Globo, 08/01/2011, O País, p. 3

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