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Artigo: A comercialização de artesanato indígena: desafios e perspectivas - Por Cássio Noronha Inglez de Sousa*

Coiab-Manaus-AM
23 de Jun de 2004

Foi lançado no dia 23 de junho o Fórum em Defesa dos Direitos Indígenas em Brasília, como resultado da articulação entre diversas instituições, preocupadas em afirmar o reconhecimento aos direitos indígenas firmados na Constituição Federal de 1988. O Fórum foi motivado por um contexto geral de efetivas ameaças a esses direitos, pois

"Antigos conceitos e pré-conceitos que balizaram as relações entre Estado e índios, voltam a ser reivindicados por alguns setores do Estado e do governo, amparados nos mesmos argumentos ultrapassados, e como dantes, em interesses privados. Os resultados desse retrocesso já são visíveis no acirramento de conflitos, no aumento de violência contra indígenas, no incremento de posturas racistas e preconceituosas, e na iniciativa de agentes do Estado em cercear a aplicação dos direitos indígenas." (Carta de Apresentação do Fórum)

Além dos temas mais críticos e visíveis como a demarcação das Terras Indígenas (em especial Raposa Serra do Sol), modelo de assistência à saúde indígena, propostas de mineração em áreas indígenas; podemos ainda incluir nessa lista a questão dos entraves à comercialização de artesanato indígena recentemente observados.

Operação Pindorama

Esses entraves tornaram-se evidentes a partir do dia 13 de maio, quando foram apreendidos centenas de itens de artesanato indígena e presas 12 pessoas que trabalham no ramo nas ações da Operação Pindorama, realizada pelo Departamento de Repressão e Crimes Contra o Meio Ambiente e o Patrimônio Histórico (DMAPH) da Polícia Federal.

Segundo informações amplamente divulgadas na imprensa, a Operação foi iniciada em 2003 e estruturada para investigar o comércio ilegal internacional de animais e/ou suas partes através do artesanato indígena. Diligências da PF foram realizadas em vários estados (Rondônia, Amapá, Pará, Mato Grosso e Goiás) e o foco das apreensões foram as peças que contivessem, principalmente, plumária, ossos e dentes de animais.

Foram investigadas lojas Artíndia da FUNAI, lojas especializadas em comércio de artesanato e até organizações indígenas. Ainda de acordo com informações veiculadas na imprensa, as pessoas investigadas mantinham algum tipo de relação com Milan Hrabovsky, comerciante de artesanato indígena radicado em Miami (EUA), preso no final de 2003 pelo FBI sob a acusação de comércio ilegal de produtos com partes de animais. Entre os documentos apreendidos com Hrabovsky estão listas de pedidos de peças de artesanato, mas também um fax solicitando explicitamente partes de animais (unhas, dentes etc).

As pessoas presas foram interrogadas e liberadas alguns dias depois e a Polícia Federal está dando continuidade às investigações. O processo, entretanto, já teve desdobramentos concretos. Segundo o Jornal A Crítica (Manaus, 08/06/2004), no dia 20 de maio,a FUNAI , através de Memorando de seu presidente Mércio Gomes, proibiu a comercialização de artesanato que contenha partes de animais como penas, dentes, cascos etc. Segundo a reportagem, as lojas da Artíndia já começaram a recolher as peças com essas características. A Diretoria de Fauna do IBAMA de Brasília, por sua vez, pretende formar um Grupo de Trabalho Interinstitucional para discutir a questão.

Ameaça aos direitos indígenas

Apreensões foram feitas em várias regiões e atingiram principalmente lojas da FUNAI, mas incluíram também material comercializado por organizações indígenas. Parte desse material é resultado de projetos desenvolvidos pelas organizações com o próprio governo, inclusive o Ministério do Meio Ambiente, como é o caso da APITU no Amapá, que estruturou seu esquema de venda de artesanato a partir de projeto apoiado pelo PD/A (Projetos Demonstrativos do tipo A) do PPG7 / MMA. Também foi apreendido material dos Suruí (RO), cuja produção e comercialização contou com apoio do Fundo Nacional do Meio Ambiente (FNMA / MMA).

Também foram apreendidos materiais de comerciantes não indígenas, entre eles da loja Amoa Konoya de São Paulo, que há 10 anos desenvolve um trabalho que não se limita a comercialização, mas também serve como fonte de pesquisa e centro de referência para informações. A loja é procurada com freqüência por organizadores de Mostras para o fornecimento de peças, como foi o caso da Mostra dos 500 Anos, realizada no Parque do Ibirapuera (São Paulo) em 2000.

Além disso, a forma parcial e superficial como a questão tem sido tratada pela imprensa (1), só colabora para que antigos preconceitos sejam ressuscitados. A linha geral das reportagens, aponta que:

o Os índios estariam matando animais exclusivamente para confeccionar artesanato para exportação. (JB Online, Istoé, );

o A "matança" aos animais seria muito superior às necessidades de consumo e que estaria havendo uma "chacina" em escala industrial dos animais silvestres. (JB Online, Istoé);

o Que índios e organizações indígenas fariam parte de uma "máfia" internacional de comércio de animais silvestres. Leonel Rocha, da Istoé, afirma que: "A PF descobriu ainda que o índio Missico Oiampi, do Amapá, fazia parte da máfia. Auxiliar de serviços gerais da FUNAI de Macapá, ele foi presidente da Associação dos Povos Indígenas do Tumucumaque e hoje esconde-se na reserva da tribo."

A quase totalidade das reportagens não entrevistou nenhum representante indígena durante seus levantamentos, o que gerou uma perspectiva parcial e enviesada, na qual sugere-se que os índios seriam "depredadores do meio ambiente" e participantes de "tráfico internacional".

No caso de Missco Oiampi (Waiãpi), do Amapá, por exemplo, o jornalista prefere taxá-lo de "participante da máfia" a explicar que o mesmo era o coordenador da APITU na época e coordenou as atividades do projeto de apoio à comercialização de artesanato apoiado pelo PD/A - PPG7 - MMA.

Sobre a questão da caça, as reportagens sugerem uma atitude predatória dos índios, sem discutir de forma objetiva e precisa a questão da subsistência. Em nenhuma reportagem à qual tivemos acesso, por exemplo, foi estimada a quantidade de penas, ossos e dentes provenientes dos pássaros e animais utilizados pelos índios na sua alimentação.

Na matéria de Thaís Brianezi (A Crítica, Manaus, 08/06) é citada a cifra de 26.000 animais abatidos somente no Amazonas para a "fabricação de artesanato ilegal". A matéria mistura produção de artesanato de pequena escala das comunidades e organizações indígenas com o mega-evento da Festa do Boi-bumbá de Parintins, que envolve milhares de pessoas. Provavelmente as cifras citadas pautaram-se por estimativas relativas a essa Festa, o que é um caso extremo e de exceção e não deve ser tomado, em nenhuma hipótese, como base para quantificar a produção artesanal pelas comunidades indígenas em geral.

Os encaminhamentos

No caso da configuração de uma "máfia", as reportagens indicam que o ponto em comum entre todos os investigados no Brasil é o contato com Milan Hrabovsky, preso nos EUA. As organizações indígenas não têm a obrigação de saber se o mesmo cometia atos ilícitos em seu país. A exemplo de lojas da FUNAI, enviavam peças de artesanato como parte de sua atividade comercial. O simples fato de vender peças de artesanato para um comprador no exterior, não deve ser configurado como crime, especialmente numa matéria onde a aplicação de legislação ambiental não está tão clara (no caso da Lei de Crimes Ambientais para povos indígenas).

Se há problemas de gestão na Artíndia ou se terceiros utilizam a comercialização de artesanato indígena como ponte para a realização de atividades ilícitas ou que atentem contra a questão ambiental, isso não pode ser utilizado como plataforma para prejudicar os povos indígenas com base no preconceito e desconhecimento de seus direitos básicos de respeito à diversidade. A superficialidade e parcialidade do enfoque das reportagens que abordaram a Operação Pindorama colaboram com este preconceito e com o contexto anti-indígena que se configura nos últimos meses no país.

A comercialização do artesanato é uma das alternativas econômicas que os povos indígenas têm para fazer frente às novas demandas econômicas decorrentes da intensificação das relações com a sociedade nacional. O intercâmbio de peças artesanais é realizado desde sempre pelos povos indígenas. Trocar ou vender essas peças em troca de mercadorias (manufaturadas, industrializadas etc) é prática realizada desde o início do período colonial.

O sucesso da atividade no contexto amazônico atual não evita, mas pode ajudar a evitar o engajamento dos povos indígenas em atividades predatórias, como a garimpagem e extração de madeira. O próprio Ministério do Meio Ambiente entende a questão dessa forma e apóia projetos indígenas de atividade artesanal através de diversos programas como o Fundo Nacional do Meio Ambiente - FNMA, Projetos Demonstrativos do Tipo A - PDA, Projetos Demonstrativos dos Povos Indígenas - PDPI etc.

A questão torna-se ainda mais crítica quando refere-se ao uso de plumária, dentes, ossos, cascos e outras partes de animais pois, muitas vezes, envolve espécies ameaçadas. A questão, entretanto, deve ser tratada com bom senso, na base do diálogo e do respeito às especificidades indígenas, que têm e sempre tiveram em muitas dessas espécies a fonte de sua subsistência.

A questão do um assunto realmente significativo em termos ambientais. É preciso, entretanto, tratar a questão com base nos preceitos constitucionais de respeito às formas tradicionais de organização indígena. Simplesmente proibir a comercialização de artesanatos que contenham partes de animais representa uma atitude unilateral que desconsidera esses preceitos e trata da mesma forma o joio e o trigo.

É preciso, portanto, encontrar instrumentos (legais, de gestão, de controle etc) para assegurar, por um lado a sustentabilidade ambiental de espécies animais e vegetais utilizadas no artesanato e, por outro, a segurança para os povos indígenas continuarem desenvolvendo com tranqüilidade essa atividade de importância cultural e econômica.

Planos de manejo de espécies utilizadas, certificação de artesanato, registro da comercialização, adequação entre escala de produção, qualidade das peças e preços obtidos seriam alguns desses mecanismos, que devem ser discutidos e definidos entre todas as partes interessadas: IBAMA, FUNAI, Ministério Público, Polícia Federal e, principalmente, representantes indígenas.

Manaus, 23 de junho de 2004

Notas:

* Cássio Inglez é Antropólogo, assessor de disseminação do Projetos Demonstrativos dos Povos Indígenas (PDPI) - MMA. O texto foi escrito originalmente para a Comissão de Assuntos Indígenas da Associação Brasileira de Antropologia (ABA).

1. Entre as fontes de imprensa consultadas estão: Gazeta de Cuiabá (16/06), Jornal do Brasil (18/05), O Estado de São Paulo (16/05), Jornal do Brasil - jbonline (18/05), Gazeta de Santarém, Istoé (maio), Panorama Ambiental (maio), Agência Brasil (15/05), A Crítica (08/06

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