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Aprendam com eles

CB, Brasil, p.15-16
15 de Mai de 2004

Aprendam com eles
Programas implementados no Ceará, com cooperação técnica e financeira da Alemanha, melhoram a vida de comunidades pobres. Sem favores políticos, moradores criaram até banco de investimento próprio

Renato Alves
Enviado Especial

Fortaleza - Comunidades pobres do Ceará provam com ricas idéias e organização que são capazes de viver dignamente, sem favores políticos. Em Fortaleza, capital do estado, moradores de uma favela mantêm um banco para financiar seus projetos. Na zona rural, a água chega às casas de pequenos agricultores por meio de uma rede montada e gerenciada pelos próprios usuários. No litoral, os nativos fazem barcos maiores e mais velozes para preservar a pesca artesanal e aumentar o rendimento. Já no sertão, quem nunca teve contato com computador está prestes a entrar no mundo digital com acesso a internet financiado por organizações não-governamentais.
Para colocar em prática as suas idéias, os cearenses de baixa renda contam com a ajuda de alemães, que começaram a desembarcar no estado há 40 anos. Os europeus intermediam cooperação técnica e financeira entre os governos dos dois países. A relação rendeu ao Brasil quase 2 bilhões de euros (cerca de R$ 6,9 bilhões), investidos em mais de 600 projetos ao longo das quatro décadas. Do total, 97 milhões de euros (R$ 334,5 milhões) foram destinados ao Nordeste brasileiro. 0 Ceará, quinto estado mais pobre do país, recebeu a maior fatia: 21 milhões de euros (R$ 72,4 milhões).
Poucos são os projetos cearenses financiados pelo governo alemão que deram errado. "Não há outra cooperação que tenha produzido tantos benefícios", comemora o conselheiro para Assuntos de Cooperação da Embaixada da Alemanha no Brasil, Rainer. Willings-hofer. No que depender dos alemães, garante Rainer, a parceria ainda vai render muitos frutos para o Brasil. "A experiência acumulada nos vários anos, a recíproca aceitação já experimentada e a mútua confiança adquirida continuarão a ser o selo de qualidade nos esforços comuns dos dois países."

Pescadores constroem barcos maiores
Os 1,2 mil moradores da Prainha do Canto Verde, no município de Beberibe, a 100 km de Fortaleza (CE), travam duas batalhas. Em terra, lutam contra a especulação imobiliária. No mar, a briga é contra a pesca industrial e os piratas que roubam seus peixes. Para sair vitoriosa, a comunidade de Canto Verde se organizou.
Na luta pela terra, conseguiram ganhar uma ação na instância estadual contra um investidor que se diz dono da região. Agora só falta o julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF). Para enfrentar a concorrência desleal no mar, um grupo de moradores aprende técnicas modernas de pesca para construir barcos maiores e mais velozes.
Há seis meses, um mestre maranhense ensina dez aprendizes a construir catamarãs no estaleiro-escola da Prainha do Canto Verde. 0 catamarã é um modelo de barco até seis vezes mais rápido do que a jangada, embarcação comum na localidade. Enquanto a jangada carrega no máximo uma tonelada de peixes, o catamarã leva até cinco toneladas. E a embarcação também não agride o ecossistema. Como a jangada, é movida a vela.
0 que pesa contra o catamarã é o preço. Ele custa cerca de duas vezes mais do que uma jangada. Mas os barcos construídos em Canto Verde são financiados pelo governo alemão e vão poder ser usados por quase todos os pescadores da comunidade. "Deixei minha cidade para aprender esse ofício aqui e levar o conhecimento para lá", conta um dos aprendizes do estaleiro-escola, João Batista dos Santos, 25 anos, que é de Cuacim (CE), distante 410 km de Beberibe.
Para operar os catamarãs, que devem ficar prontos em seis meses, e ter melhores resultados na pesca, outros 25 jovens de Canto Verde passaram os últimos dois anos e meio estudando na Escola dos Povos do Mar. Além de alfabetizados, os pescadores aprenderam a operar aparelhos modernos, até então desconhecidos por eles, como GPS e sondas, que permitem localizações exatas do barco e cardumes no mar. As aulas, dadas por professores da Universidade do Ceará, eram marcadas de acordo com movimentos das marés e luas, para não atrapalhar a pesca dos alunos.
Turismo
Para manter os grandes investidores afastados e garantir dinheiro extra, os moradores de Canto Verde agora exploram o turismo de forma racional. Eles transformam suas casas simples em pousadas, onde a diária não passa de R$ 30. A atividade é gerenciada por jovens profissionais da comunidade, como Ely Fernandes, 19, filha de pescador que decidiu fazer curso técnico em turismo na Universidade Estadual do Ceará para ter melhor perspectiva de vida. "A maior transformação aqui está nas nossas cabeças. Antes, a gente só pensava em fazer a quarta série primária, casar e ter filhos", ressalta a garota.
Outra medida adotada pelos pescadores contra a especulação imobiliária e o turismo de massa é o controle das propriedades. De acordo com estatuto firmado entre os moradores, ninguém pode ter mais de duas casas na Prainha do Canto Verde. Também não é permitida a venda de qualquer propriedade sem o aval de um conselho de moradores da comunidade.

Internet no sertão
Os bons resultados dos projetos desenvolvidos com a parceria Brasil-Alemanha estimulam comunidades pobres de outros pontos do Ceará. Em Massapé, cidade distante 258 km de Fortaleza, os moradores se uniram e criaram uma cooperativa de crédito para financiar seus projetos.
Em dois anos, a Cooperativa de Crédito Rural da Região Norte do Ceará (Crednorte) aumentou seu capital para investimento de R$ 5,2 mil para R$ 32 mil. Hoje tem 110 sócios e cinco projetos financiados, como uma fábrica de doces, uma loja de salgados e programas de compra de sementes de milho para pequenos agricultores.
Mas os cooperados querem muito mais. Eles desejam trazer mais informação para os 30 mil habitantes do município por meio de uma rádio comunitária e acesso à internet. Os equipamentos da rádio - única na região - estão comprados. Dependem apenas da autorização do governo federal para começar a operar. Já a internet deve ser ligada em duas semanas.
A Crednorte ganhou 11 computadores, uma webcam, um scanner e duas impressoras de uma ONG espanhola e do movimento Viva Rio, do Rio de janeiro. A conexão com o resto do mundo será feita por sistema de rádio e não por telefone, o que garante mais rapidez e economia.
A sala com internet da cooperativa será a única de acesso público na cidade, que conta com 60 computadores, incluindo os da prefeitura. "Apenas 2% dos moradores têm acesso à rede mundial. E é um acesso limitado, já que pagam ligação interurbana pela conexão, pois o provedor fica em Sobral (município distante 30 km) ", conta o presidente da Crednorte, Manoel Arnold Peixoto, 36 anos. (RA)

Desenvolvimento Sustentável
Moradores despejados do litoral transformaram a pobreza absoluta em modelo de gestão. Eles criaram o Banco Palmas, que financia pequenos negócios, como fábricas de roupas, couros e materiais de limpeza
Crédito para a favela
Renato Alves
Enviado Especial
Fortaleza - Uma das experiências mais bem sucedidas da cooperação Brasil - Alemanha está na periferia de Fortaleza. Em 21 anos, o Conjunto Palmeira passou da completa miséria a modelo de gestão comunitária. Os moradores, que haviam sido despejados do litoral da capital cearense para formar a área pantanosa do Palmeira, hoje têm um banco próprio para financiar seus pequenos empreendimentos.
O Banco Palmas, criado em 1998, atende à população do conjunto com um sistema de microcréditos para quem quer criar ou ampliar um pequeno negócio, e outro para quem quer comprar dos produtores e comerciantes do bairro. Os juros mensais variam de 2% a 3%. A taxa de inadimplência não passa dos 3%.
Ao longo de seis anos, o Palmas financiou pequenas fábricas de roupas, couros e material de limpeza, além de estratégias de comercialização com cartão de crédito popular, moeda social, feiras, lojas, clubes de trocas e outros instrumentos. 0 banco montou ainda um laboratório de agricultura urbana, uma escola comunitária de economia solidária e um projeto para atendimento a mulheres em situação de risco.
Entre os empreendedores financiados pelo Palmas, há cinco jovens que criaram a Palma Limpe, uma fábrica de produtos de limpeza. Sob orientação de químicos voluntários, eles desenvolveram cinco produtos. Em dois anos, a produção mensal saltou de 200 litros para quatro mil litros. "Todo o dinheiro que entra é para pagar o financiamento e investir na fábrica", explica a responsável pelo marketing da Palma Limpe, Otaciana Barros, 20 anos. Ela e os sócios ganham R$ 240 mensais.
Quase fechou
O banco comunitário do Conjunto Palmeira quase foi fechado pelo governo federal 15 dias após sua criação. Técnicos do Banco b Central entraram na sede da associação comunitária do Palmeira atrás dos responsáveis pelo novo banco. "Eles diziam que éramos contraventores e estávamos colocando em risco o sistema financeiro do país", recorda a assistente social e uma das fundadoras do Palmas, Sandra Magalhães.
Mas os técnicos do BC recuaram quando souberam que o banco Palmas não tinha mais do que um computador, um balcão, uma cadeira, dois funcionários e R$ 2 mil para empréstimos a uma comunidade em que 80% dos 30 mil habitantes têm renda familiar abaixo de dois salários mínimos.
A história do Palmeira e dos seus moradores começou a mudar em 1990, quando o Projeto Prorenda, da cooperação técnica Brasil-Alemanha, chegou ao conjunto. Com recursos do projeto, a comunidade construiu, em mutirão, um canal de drenagem e outras obras que possibilitaram, também, a implantação do sistema de esgotamento sanitário pelo governo do Ceará.
No entanto, a maior contribuição do Prorenda foi a mudança de comportamento dos beneficiados. "0 projeto, desde o começo, investiu no fortalecimento da comunidade e na crença de que a única forma para chegar ao desenvolvimento local é organizando a população", ressalta Sandra Magalhães.
O Prorenda capacitou lideranças, estimulou campanhas educativas no bairro e repassou à associação de moradores a responsabilidade sobre os recursos financeiros para realização das obras. Os moradores criaram o Fundo Comunitário e, com ele, analisam e aprovam os projetos sem a intervenção do poder público.

Até os machos fazem sutiãs
Em Freicheirinhas, cearense macho também fabrica calcinha e sutiã. Na cidade de 10 mil habitantes, no pé da Serra de Tianguá, a 100 quilômetros de Sobral, as peças íntimas movem a economia local. Até pouco tempo atrás, as únicas fontes de renda vinham dos empregos gerados pela prefeitura e pela decadente indústria de extração de cal, poluidora e pouco rentável.
A mudança trouxe novas perspectivas para os moradores de Freicheirinhas, como Maria da Conceição Furtado, 27 anos. A auxiliar de enfermagem, até antes do boom das confecções, tinha como destino certo Fortaleza ou outra grande cidade do Sudeste do país. Mas, a partir de um molde de um conjunto de roupas íntimas, ela decidiu entrar no ramo de sutiã e calcinha. Montou uma loja e, hoje, emprega 72 pessoas.
Para a consultora do escritório do Sebrae, Antonia Suilany Teixeira Barbosa, esse é o melhor exemplo do milagre das confecções em Freicheirinhas. "A Conceição não sabia costurar. A irmã que mora na Espanha emprestou o dinheiro para comprar a primeira máquina específica. E a costureira começou a vender primeiro para as colegas do curso de enfermagem em Sobral e depois para lojas de lá", conta.
A pequena confecção prosperou e logo surgiram outras, com ajuda do programa Competir. Hoje, são mais de 20.0 Competir foi desenvolvido a partir de 1996, numa parceria entre o Sebrae, o Senai e a GTZ - a agência alemã de cooperação técnica. O objetivo é ajudar pequenas e micro-empresas da região Nordeste a se tornarem competitivas. (RA)

População gerencia a rede de água e esgoto
Quando Maria Augusta da Silva perdeu o filho ainda bebê, aos quatro meses de idade, por causa de uma diarréia, ela nem se apavorou. Em sua terra, o povoado de Mutambeiras, distrito de Santana do Acaras (CE), era normal a morte prematura de crianças por causa da falta de água e esgoto tratados. Eram dois óbitos por dia, em média.
A realidade de Mutambeiras e de outras 40 comunidades de 21 municípios ao redor de Sobral - segunda maior cidade cearense, com 155 mil habitantes - começou a mudar há 10 anos, a partir da implantação do Sistema Integrado de Saneamento Rural (Sisar). Com financiamento do governo alemão, os moradores de áreas rurais pobres se organizaram e construíram redes de água e esgoto para atender suas casas.
Na maioria dos lugarejos atendidos pelo Sisar, a comunidade mantém o serviço de água e esgoto de forma independente. São os moradores quem definem preços das tarifas, reformas e expansão da rede. Sem interferência do governo, os moradores conseguem um serviço eficiente e mais barato. No caso de Mutambeiras, onde Maria Augusta criou os oito filhos sobreviventes da seca e da falta de saeamento, 279 das 359 casas são abastecidas pelo Sisar.
O dono de cada residência paga R$ 4 por mês, em média, para ter água tratada em casa. Água que vem puxada por bomba do rio Acaraú desde 1995. De lá para cá, nenhuma criança morreu no povoado por desnutrição ou por doenças provocadas pela falta de saneamento básico. "O Sisar é uma bênção para nós", agradece Maria Augusta, hoje com 60 anos.
Em toda a região de Sobral, 8,2 mil casas são abastecidas pela água de redes do Sisar. Ao todo, 40 mil pessoas são beneficiadas com água tratada, pagando bem menos do que o cobrado pelas empresas públicas de saneamento. Esse programa, implantado com ajuda do governo alemão, começou na Bahia, em 1991. Agora, são piauienses que se organizam para implantar as redes do Sisar. A previsão é que, até o fim do ano, 35 pequenos municípios do Piauí sejam abastecidos com água do sistema de saneamento rural. (RA)
O repórter viajou a convite da Embaixada da Alemanha

CB, 15/05/2004, Brasil, p.15-16

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