VOLTAR

Amazônia Esplêndida

FSP, Sebastião Salgado na Amazônia, p. Capa, 1 a 10
Autor: SALGADO, Sebastião; SERVA, Leão
19 de Dez de 2020

Amazônia Esplêndida
A maior floresta tropical do mundo apresenta dimensões e encantos superlativos, mas seus 5,5 milhões de km² estão cada vez mais ameaçados de destruição pela ação humana -em 2020, o desmatamento atingiu o nível mais alto dos últimos 12 anos; nas imagens deste especial, o principal fotógrafo da atualidade revela as belezas do relevo e dos rios voadores do bioma que ocupa metade do território brasileiro

Amazônia é a representação de floresta para todos

Leão Serva
19.dez.2020

AUARIS (RO)A Amazônia é grandiosa, admirável, esplêndida, com dimensões sobre-humanas. Nela, qualquer coisa está a perder de vista: são 5,5 milhões de km², mais do que toda a União Europeia; No Brasil, ocupa quase metade de seu território.

O rio Amazonas é o maior do planeta em extensão, com pouco menos de 7 mil km, e em volume de água. Em um mundo onde as selvas vêm sendo reduzidas nos últimos séculos, a Amazônia sobrevive como a maior floresta do mundo.

No Brasil, após 50 anos de destruição progressiva e constante, cerca de 20% da vegetação desapareceram; outros 10% estão degradados (em um estágio em que o ecossistema costumava se recuperar, mas que a atividade humana hoje leva a seu desaparecimento) e 70%, resistem. É um momento perigoso, como alerta o climatologista Carlos Nobre, principal referência em estudos sobre a região.
Hoje, a época de seca se estende em três a quatro semanas e a média de temperatura subiu 4o C. Caminhamos para a falência do sistema amazônico, caracterizado por uma floresta que distribui chuvas para grande parte do continente. Esse sistema é também responsável pela umidade e resfriamento de uma região tropical que, em outros continentes, é ocupada por desertos. É a Amazônia que impede que áreas como São Paulo, Paraná e Santa Catarina sejam desertos como suas correspondentes em outros continentes.

Cerca de 60% da chamada bacia amazônica, em que todas as águas confluem com o rio Amazonas, é ocupada por uma imensa planície. Ao vê-la, um dos maiores escritores da literatura brasileira, Euclides da Cunha, sentiu uma "profunda melancolia" diante da "terra amplíssima, maravilhosa" em que "falta a linha vertical", como escreveu em 1906.

Mais de um século após a descrição de Euclides da Cunha, as fotos de Sebastião Salgado revelam outra Amazônia com relevos tão impressionantes quanto a imensidão da planície, com as montanhas mais altas do país, a "linha vertical" que o autor de "Os Sertões" não conheceu.

A Amazônia tem tanta água nos céus quanto nos rios que cruzam o território. São um furo jornalístico as imagens que Sebastião Salgado produziu mostrando com nitidez os chamados "rios voadores", fenômeno que a ciência brasileira vem estudando nas últimas décadas.

Esses "rios" transportam uma enorme quantidade de água do Atlântico para o continente em um corredor de ventos que atravessa as Guianas e a região norte do Brasil. Quando sobre terra firme, eles banham a floresta ao mesmo tempo em que se alimentam da "evapotranspiração" gerada pelas quase 600 bilhões de árvores da Amazônia.

Árvores com copas de 10 a 20 metros de diâmetro "suam" entre 300 e 1.000 litros de água por dia que são levados pelos ventos a uma altura entre 2 e 4 mil metros.

O curso desses ventos alísios segue desde o norte até chocar-se com a Cordilheira dos Andes. Ali, em um movimento circular, vão em direção ao norte da Argentina, ao Uruguai e ao sul e sudeste brasileiros. A quantidade de água em movimento é avaliada em cerca de 20 bilhões de litros.

Exposição com registros de Salgado na Amazônia será inaugurada em julho em SP

Após nove reportagens fotográficas publicadas na Folha desde dezembro de 2017 sobre a vida e a cultura de povos indígenas que habitam o continente verde, a série "Sebastião Salgado na Amazônia" dedica este décimo caderno à Amazônia física. O mais importante fotógrafo da atualidade revela seus registros da floresta com suas matas de igapó cobertas de água até o tronco das árvores, as mais altas montanhas do país, a imensa planície e seus "rios voadores".

O projeto "Amazônia" dá sequência às reportagens fotográficas que Salgado produz desde os anos 1980, como "Trabalhadores" e "Êxodos".

O trabalho de documentação da região realizado desde 2013 pelo fotógrafo radicado em Paris será reunido em livro e exposição em 2021.

Essas imagens rodarão o Brasil e o mundo, servindo de alerta para o risco de destruição do maior bioma do país, ameaçado pela ação sistemática de agentes econômicos, principalmente ilegais, e pela omissão do Estado.

A exposição será inaugurada em 6 de abril no museu da sede da Filarmônica de Paris, na Cidade da Música, e, em junho, segue para o Maxxi de Roma. No dia 22 de julho, a mostra chega a São Paulo, no Sesc Pompeia, e, em 9 de agosto, ao Museu do Amanhã, no Rio. E, em outubro, será a vez de Londres conferir as imagens no Museu da Ciência.

A Folha acompanhou as expedições do fotógrafo para a série "Sebastião Salgado na Amazônia", que mostrou o garimpo de Serra Pelada e os indígenas Korubo, Ashaninka, Suruwahá, Yawanawá, Marubo, Ianomâmi , do Xingu e Zo'é .
'Rios voadores' levam chuvas da Amazônia para o sul do Brasil

São chamados "rios voadores" os ventos oriundos do oceano Atlântico e do Caribe, carregados de umidade, que passam sobre Roraima e cruzam a Amazônia em direção ao sudoeste. Ali, esses ventos se chocam com a Cordilheira dos Andes, mais alta, fazem uma curva e vão banhar de chuvas a região sudeste da América do Sul (Argentina, Uruguai, Paraguai e os estados do sul do Brasil).

O fenômeno identificado pelos cientistas brasileiros José Marengo e Antônio Donato Nobre, entre 2006 e 2010, explica as chuvas das regiões meridionais da América do Sul, em latitudes onde, em outros continentes, apresenta terras desérticas. E também permite entender por que as secas da Amazônia prenunciam estiagens naquelas áreas: quando falta umidade na floresta da região norte, como ocorreu em 2020, os ventos carregam menos umidade para o sul e o sudeste.

Monte Roraima, coberto de nuvens escuras, é visto da comunidade de Maturuca, a maior entre as vilas localizadas na área da serra da Terra Indígena Raposa Serra do Sol

Desmatamento ilegal acha novos métodos e alcança recordes

Leão Serva
19.dez.2020 - 1h

SÃO PAULONo momento em que você lê este texto, quando a Amazônia está em período de chuvas, grileiros e ocupantes ilegais estão cortando áreas de floresta para escapar ao monitoramento dos satélites oficiais.

Antes, o desmatamento parava na época chuvosa e voltava na seca. Recentemente, esse ciclo se alterou: a invasão de terras públicas ocorre no final do ano, quando as nuvens cobrem a região e impedem o monitoramento por satélites. Escondidos sob as nuvens, grileiros de terras públicas cortam vastas áreas de florestas e as deixam ali até pôr fogo no período de secas que começa em março. A vegetação cortada há meses servirá em 2021 de combustível para grandes incêndios travestidos de acidentais.

O ciclo, que constatei ao final de 2018 na região de Lábrea (sul do Amazonas), é apontado pelo climatologista Carlos Nobre como uma nova estratégia da destruição de áreas de ocupação recente. Esse corte fora de época ajuda a explicar o aumento do desmatamento nos últimos dois anos, batendo recordes seguidos.

Dados mais recentes do Prodes (Projeto de Monitoramento do Desmatamento na Amazônia Legal por Satélite), do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), mostram que, entre agosto do ano passado e julho de 2020, foram derrubados 11 mil km² da floresta -9,5% a mais que 2019, até então o maior índice da década.

Montanha mais alta do Brasil, o Pico da Neblina se projeta acima das elevações da Serra do Imeri, na Terra Indígena Ianomâmi, no Amazonas

O bioma, que ocupa metade do território brasileiro (49,29%), já perdeu 17% de seu território desde os anos 1970. O desmatamento na floresta vem aumentando desde o governo Dilma Rousseff (2011-2016), após uma redução nos anos Lula (2003-2010). Hoje, a degradação se aproxima do "ponto de não retorno", calculado em torno de 25% da área original, diz Nobre.

Ao território já perdido é preciso acrescentar cerca de 10% de áreas degradadas que antigamente o ecossistema dava conta de regenerar, mas que, nos últimos anos, avança para a destruição completa. Por isso, a falência do sistema amazônico pode estar bem mais próxima do que previam estudiosos anos atrás.

Os mapas abaixo, produzidos pelo ISA (Instituto Socioambiental), destacam a estimativa oficial de desmatamento em 2020.

O 1o mostra a cobertura vegetal da Amazônia Legal considerando as classes de floresta, água, hidrografia e não floresta (em preto) existentes até 2019. É um mapa de referência que contém a estimativa do desmatamento de 2020 considerada pelo Inpe (em amarelo) apontando onde está ocorrendo este desmatamento. Essa estimativa é parcial, pois considera somente uma avaliação de 102 imagens produzidas pelo satélite Landsat (menos da metade de um total de 229 produzidas pelo sistema).

O mapa 2 inclui as Terras Indígenas (TIs) e as Unidades de Conservação (UCs) e apresenta a estimativa de destruição em 2020 (em amarelo) sobre essas regiões. O levantamento mostra como o desmatamento ocorre com maior impacto fora das áreas protegidas, ainda que os controles oficiais dessas áreas tenham sido desmantelados pelo governo federal nos últimos anos.

Carlos Nobre destaca o fato de que 90% do desmatamento é ilegal, com 40% ocorrendo em terras públicas invadidas -em territórios que pertencem à União e nas áreas de proteção como Terras Indígenas e Unidades de Conservação; outra parte se dá em propriedades privadas cujos donos queimam as áreas de proteção permanente previstas em lei.

No sobrevoo pela região da Reserva Florestal Parima, Salgado registra o arco-íris e o sol que anunciam a interrupção das fortes chuvas

A Funai está no purgatório, mas vai resistir a Bolsonaro
Thea Severino e Naief Haddad
19.dez.2020 - 1h

SÃO PAULORadicados em Paris desde 1973, o Sebastião Salgado e sua mulher, a diretora artística e designer Lélia Wanick Salgado, decidiram montar uma nova casa, em São Paulo, para ficar mais perto da família e da primeira neta, Nara, que tem 3 anos.

"Tô com 76 anos, a Lelinha, 74. Falei: Vamos ficar perto dos nossos, ver essa menininha crescer. É só isso que conta na vida. O resto passa", diz o fotógrafo.

Semanas antes do início da pandemia de coronavírus no Brasil, o mineiro recebeu a reportagem em seu apartamento no bairro de Higienópolis para falar de seu projeto "Amazônia", do presente e do futuro da fotografia, da atuação da Funai [Fundação Nacional do Índio] no governo de Jair Bolsonaro, entre outros temas.

Desde 2017, a Folha publica o resultado das viagens dele à floresta na série de dez reportagens fotográficas Sebastião Salgado na Amazônia. "É o maior espaço que um movimento indígena brasileiro já recebeu para as suas publicações", afirma.

O fotógrafo Sebastião Salgado sobrevoa de helicóptero a floresta amazônica na região de Auaris, em Roraima, em outubro de 2018 - Felipe Reichert

A parceria com a Folha teve início em 1996, quando ele já era considerado um dos maiores nomes da fotografia mundial. Àquela altura, Salgado passou seis meses trabalhando com o jornal, cobrindo, entre outros assuntos, as ações do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) e a chacina de Eldorado dos Carajás (PA).

As expedições de Salgado ao maior bioma brasileiro tiveram início em 2013. Para chegar a comunidades remotas, ele viajou por terra, água e ar, e registrou os indígenas Korubo, Ashaninka, Suruwahá, Yawanawá, Marubo, Ianomâmi , do Xingu e Zo'é .

Conta que, nessas incursões à floresta, ele se integra às comunidades e não dispõe de tratamento especial. "Nessa profissão, você tem que gostar de viajar", diz o fotógrafo. "E rede é uma cama boa em qualquer lugar. Eu tenho uma maravilhosa que levo para o mundo inteiro."

O resultado de "Amazônia", projeto concebido com Lélia, assim como todos os outros ("Trabalhadores", "Êxodos", "Gênesis" etc.), poderá ser visto em livro e exposição em 2021.

Durante a época das chuvas, o rio Jaú, no Amazonas, invade as margens e cobre parte do tronco das árvores, fenômeno que caracteriza a mata de igapó

A mostra passará por Paris e Roma antes de chegar a São Paulo, no Sesc Pompeia, em julho.

Nesta entrevista, também respondeu às ressalvas que costumam ser feitas ao seu trabalho. Segundo alguns críticos, ele promove uma glamourização da vida indígena.

Em virtude do centenário da Folha, a ser celebrado em fevereiro de 2021, o fotógrafo de 76 anos também comentou como imagina chegar aos cem. "Para não perder massa muscular, não deixo ninguém carregar as minhas malas."

Maior conjunto de ilhas fluviais do planeta, Anavilhanas, no Rio Negro, ao norte de Manaus, é uma das maravilhas do mundo

Registro com celular
Imagem feita com celular não é fotografia, é um registro de comunicação. Fotografia é outra coisa, é a memória. Quando você pega as fotografias que o seu pai e a sua mãe fizeram de você pequenininho, que te levaram ali na esquina onde ainda tinha um cara que revelava o filme e copiava, aquele 'albinho' é a memória da sua vida. Você olha a foto da sua avó, aquilo ali é fotografia, tem uma memória que isso aqui [o celular] não tem. A fotografia tem um lado, um registro, que ela é impressa, tocada, vista, vista outra vez.

Fotografia no futuro
É possível que ela desapareça porque vai se modificando. E isso não é ruim, é história. Muitas coisas desapareceram, transformaram-se em outras, é a evolução. A câmera já não é mais uma câmera fotográfica, é um híbrido: serve para cinema, para fotografia... Hoje, o fato de você trabalhar num arquivo digital facilita mexer [nas imagens].

Esse lado de uma certa pureza da fotografia está se perdendo. Fazer o que eu faço em fotografia, de entrar lá dentro da Amazônia, de atravessar a Etiópia caminhando 850 km, ninguém mais faz. Sou o único fotógrafo no planeta a fazer isso. São pedaços que desaparecem e transformam o fluxo principal. E chega uma hora que já não é mais assim.

À moda antiga
Trabalho com câmera digital, mas não sei editar no computador. O papel é essencial, tocar é essencial, ver outra vez é essencial. Recebo uma prancha de contato e edito com uma luva, marco as imagens. Com várias fotos da mesma situação, sou capaz de distinguir qual é a melhor delas. Mas guardo aquilo tudo, tenho umas 600 mil fotos impressas.

Trabalho em equipe
Dizem que o fotógrafo trabalha só. Em determinados momentos, ele está mesmo só. Mas se não for o motorista, se não for a Lélia para a gente conceber [os projetos], se não for o laboratório, se não for a pessoa que te ajuda a editar...

É um raio criativo que passa naquele momento, você chega lá e faz, mas depois a potencialização disso tudo não é feita pelo fotógrafo. O fotógrafo participa, mas ele depende de toda uma estrutura.

Monte Roraima coberto de nuvens, na fronteira entre Brasil e Guiana

Troca com as comunidades
Você tem que estar com vontade de ir mesmo. Tem que respeitar essas comunidades, achar que é importante o que você está fazendo. E tem que ter um prazer imenso em viver com as comunidades porque, na realidade, não é você mesmo que faz as fotos, são as pessoas que te dão elas de presente em função da relação que vocês mantêm.

Quando você entra numa aldeia, você é amigo de todo mundo, fica junto de manhã e à noite, ali passa a ser a sua casa.

O ser humano passou a ser um animal urbano quase. Então, você tem que gostar [de ir para o mato]. Hoje, as pessoas não têm mais a oportunidade de gostar [da natureza] porque elas não conhecem, têm medo de ir, se sentem agredidas, não conseguem enfrentar o inóspito.

Críticas à glamourização
Os indígenas [que eu registro] estão com roupa de gala mesmo porque tenho que mostrá-los em uma situação de dignidade, e não como um subproduto do mundo urbano. Quando eles estão com aquelas roupas [dos brancos], são as piores, as camisetas mais velhas, mais rasgadas. E eles põem aquela camiseta por causa do pium [borrachudo]. Quando vão caçar, vão com paramento tradicional.

Não me preocupo [com críticas por certa glamourização da fotografia que faço]. Sou tão criticado, levo tanta porrada. Cada um dá a sua opinião no que quer e pronto.

Estúdio na mata
Serei extremamente criticado quando sair esse trabalho ["Amazônia"] porque fiz muito muita foto de estúdio. Levo um estúdio que pesa 30 kg para a Amazônia e instalo debaixo das árvores. A luz é sempre natural, não sei trabalhar com luz artificial. E entra no estúdio quem quer. Eu não forço [ninguém a nada], não peço [para fotografá-los] e não podo eles. Deixo eles se arranjarem e vou fazendo o retrato deles.

Cultura indígena
Tem histórias dos movimentos indígenas no Brasil que são muito interessantes e que as pessoas não conhecem. Por exemplo, uma grande parte dos indígenas do Xingu se urbanizaram e morreram de tristeza na cidade. Porque um índio vai para a cidade e ele não fala a língua, não escreve, não lê, não é cartesiano. O sistema lógico indígena é outro.

Uma boa parte dos indígenas já foram urbanos e resolveram voltar [para as tribos]. Hoje são totalmente indígenas, é muito interessante. E a história que conhecemos dos indígenas é desses últimos decênios que estamos vivendo com eles. Mas a história já era essa 400 anos atrás.

Paraná (rio largo ou mar, na língua tupi-guarani) conectando o Rio Negro com o Rio Cuiuní

Acidentes de trabalho
Nessa profissão você cai muito. Quando está correndo atrás de índio no mato, por exemplo. Tenho dificuldade para caminhar porque já quebrei o joelho lá nos Ashaninka.

Fizemos uma sessão com 22 Ianomâmis no Pico da Neblina, a 3 mil metros de altura. Eles desceram muito para a planície com a chegada do branco, mas são de montanha; seus deuses estão todos lá em cima. Fomos com o pajé lá em cima, escorregando naquelas pedras. E, olha, pra subir lá, ainda mais para um velhinho [risos]...Tivemos que subir com cordas. Foi lá que rompi o tendão do braço. Mas tenho massa muscular que aguenta, não tenho medo de fraquejar no meio porque se fraquejar no meio você está morto.

História de pescador

Trabalho com dois assistentes que são mateiros, o Agostinho e o Bebé. Tem uma história fantástica. O Agostinho estava com a gente nos Suruwahá e ficou gripado. E não pode entrar [em uma comunidade] com um cara gripado porque você pode matar a tribo inteira. E aí o Bebé foi com a gente para os Korubo. E ele é um pescador colossal. Uma noite, pegou um pirarucu de 52 quilos e outros peixes grandes. Ele alimentou a aldeia inteira!

No dia de irmos embora, o [jornalista] Leão Serva perguntou a um líder deles o que ele gostaria de pedir ao presidente. Ele parou, pensou e disse: "Fala para ele dar para nós o Bebé" [risos].

Ajuda do Exército
Eu comprei 45 mil litros de combustível, depositei no Exército e me deixaram voar com eles na Amazônia. É a organização que mais apoia o movimento indígena, que mais conhece a Amazônia. Quando tem um índio doente, eles levam para um hospital, fazem campanhas de vacinação que a gente nem fica sabendo. Os melhores pilotos com quem voei no mundo são do Exército brasileiro.

Você vê esse Bolsonaro e uns generais retrógrados falarem: "Temos que proteger a Amazônia, senão ela vai ser invadida"... Ninguém no planeta ousaria invadir a Amazônia! Nem o Exército americano conseguiria porque o Exército brasileiro é que conhece a Amazônia.

Militares com Bolsonaro
O Exército que está com Bolsonaro é o aposentado. Tem um livro do [escritor albanês] Ismail Kadaré que se chama "O General do Exército Morto". Bolsonaro é o general do Exército morto. É um Exército aposentado, velho, aparentado com o golpe de Estado de 1964. Os piores do Exército é que estão com o Bolsonaro.

Conhecemos uma quantidade de generais operacionais lá na linha de frente [na Amazônia] que não pensam como esses caras, não.

Temporal cai sobre a região do Baixo Rio Negro (a jusante da confluência com Rio Branco e início do arquipélago das Anavilhanas)

Funai
A Funai resiste porque tem um amortecedor, os deputados e os senadores não estão permitindo que determinadas barbaridades sejam feitas. A Funai já esteve em pior situação do que agora, no golpe de 1964, por exemplo. O [ex-senador Romero] Jucá foi preso dentro da Funai!

Como a gente passou por momentos muito interessantes com a Funai durante os governos Fernando Henrique, Lula e Dilma, a gente imagina que a Funai [não irá resistir à Presidência de Bolsonaro]. Na verdade, a Funai já esteve no inferno e agora ela está no purgatório, mas vai resistir. Eliminar uma instituição dessas Bolsonaro não consegue.

O Brasil, aliás, tem instituições incríveis! Foi o primeiro país do mundo a eliminar a poliomielite porque era o único capaz de vacinar toda a sua população ao mesmo tempo. A gente critica o movimento de saúde brasileiro, todo mundo dá um cacete, mas é um dos melhores sistemas de saúde do planeta porque atinge a todos [fala em tom de exclamação].

Ele [Bolsonaro] está tentando eliminar as instituições, mas não vai conseguir. É um país tão deformado, mas tudo isso vai se corrigir, tudo isso se corrige.

Cicatriz deixada por Bolsonaro

Ele vai fazer mal, vai deixar uma cicatriz, mas não vai destruir um sistema. Acho que haverá um amadurecimento [do país]. Viver esse momento é desesperador, mas também é interessante.

Às vezes, eu vejo as pessoas aqui no Brasil um pouco desesperadas com esse homem que chegou ao poder, com as tentativas de tolher as liberdades. Eu acredito na dialética como evolução. Nós estamos negando esse momento, mas isso que está aí não vai ficar. Não é que eu sou otimista, a história é assim. Foi assim no mundo. Nós vamos dar um salto.

Anos Lula

Por que não tem protestos aqui iguais aos do Chile [em 2019]? Porque tivemos 13 anos de governo do proletariado [do PT, com Lula e Dilma Rousseff]. O Lula foi o único proletário do mundo que chegou ao poder. Isso é uma coisa única, os brasileiros não se dão conta!

Marx propunha tomar o poder pela força e pelo proletariado, pela revolução. No Brasil, isso chegou democraticamente. Todo o sistema social de antagonismo que podia desafiar o poder foi desmontado. E vai levar dois, três anos para começar a se montar outra vez.

Urbanização do Brasil

Fazendo o livro "Trabalhadores - Uma Arqueologia da Era Industrial" [lançado em 1993 pela Companhia das Letras], pude constatar que a palavra globalização não existia, ninguém falava disso, era relocalização. Com a relocalização, vi que o nosso país, que quando eu era menino tinha 92% de população rural, começou a se urbanizar de uma maneira colossal.

Todos os problemas sociais que temos são decorrentes desse acelerador de partículas em que nós fomos colocados. Olha aqui [apontando a vista do seu apartamento em São Paulo, no 20o andar]: cada janelinha, varandinha dessas recebe água encanada, eletricidade. Nós temos um sistema de organização colossal! Falamos mal dele pra chuchu, mas é superorganizado.

Paisagem com mata de Igapó, como se chamam as florestas frequentemente alagadas pelas águas escuras dos rios

Canal da Mancha
Eu vou fazer um outro projeto sobre a construção do túnel entre a França e a Inglaterra. Fui o único fotógrafo que trabalhou realmente ali. Olha, possivelmente eu seja o fotógrafo da história da fotografia global que mais tenha trabalhado, fotografado. Tenho muitas fotografias.

Café
Eu não tomo café, mas eu adoro o cheiro, fiz um livro sobre o café ["Perfume de Sonho", lançado em 2015 pela editora Paisagem].

O café é muito ácido, e o meu sangue é O+, o tipo mais antigo que tem. Todos os indígenas são O+ porque são caçadores coletores, comem carne. Então, a sua digestão é muito mais ácida que um sangue B+ ou A. E quando você adiciona o café, que é superácido, aí faz um carnaval.

A história do café tão bonita. Você sabe que há em torno de 50 milhões de famílias que trabalham com café? E todos esses grãos de um bom café, de uma arábica não robusta, são coletados à mão, com os grãos separados. Então tudo isso que você tem aqui [mostra o livro] já passou pelas mãos de alguém, pelas mãos de uma família. É extremamente familiar a cultura do café.

Viver até os cem anos

Não é apenas chegar aos cem anos. É você poder, aos 76, ainda estar correndo atrás de índio na Amazônia, entende?

Acho que a primeira coisa a fazer é ter uma disciplina, uma higiene de vida grande. Me alimento muito bem, eu como, no mínimo, cinco tipos de fruta toda manhã, castanhas.

Não faço esporte, mas carrego o equipamento, ando muito. Para não perder massa muscular, não deixo ninguém carregar as minhas malas.

E outra coisa importante é você ter o futuro à sua frente, não deixar que seu futuro fique atrás de você. Na hora que ele passar para trás, acabou. Então você tem que ter planos, fazer coisas, correr atrás.

FSP, 19/12/2020, Sebastião Salgado na Amazônia, p. Capa, 1 a 10

https://arte.folha.uol.com.br/ilustrada/2017/sebastiao-salgado/sebastia…

As notícias aqui publicadas são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos. Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.