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Amazônia: área cortada por BR-319, promessa de Bolsonaro, já sofre com desmatamento

O Globo - https://oglobo.globo.com/brasil/meio-ambiente
09 de Ago de 2021

Amazônia: área cortada por BR-319, promessa de Bolsonaro, já sofre com desmatamento
Imagens de satélite mostram que estradas clandestinas nas imediações da rodovia, cujas obras ainda nem terminaram, já passam de 400 quilômetros, atraindo garimpo ilegal e ameaçando uma das regiões mais preservadas da floresta

Leandro Prazeres
09/08/2021 - 14:28 / Atualizado em 09/08/2021 - 17:30

Dados inéditos obtidos pelo GLOBO mostram que região da Amazônia cortada pela BR-319, que o presidente Jair Bolsonaro quer pavimentar, já sofre com aumento do desmatamento e da grilagem de terras. A rodovia acabou deflagrando ainda o chamado o efeito "espinha de peixe", que é quando pequenas estradas cortam a floresta a partir ou em direção a uma rodovia principal ampliando as áreas de ocupação ao longo da estrada principal. Dados de um estudo preliminar feito com imagens de satélites ao qual o GLOBO teve acesso mostram que, apenas em 2020, 410 quilômetros de estradas vicinais na região do entorno da rodovia foram abertos, para alarde de cientistas e ambientalistas. Os satélites também mostram que o desmatamento nos municípios cortados pela rodovia vem aumentando acima da média da Amazônia, que já está alta. Em julho, o governo anunciou a licitação para a pavimentação de um dos trechos da rodovia. A obra total está orçada em R$ 1,5 bilhão.
A BR-319 tem aproximadamente 850 quilômetros e liga Porto Velho a Manaus. Foi construída no final dos anos 1970, ainda durante a ditadura militar. Nos anos 1980, foi abandonada. Atualmente, apenas os trechos nos dois extremos (próximo a Manaus e a Porto Velho) são pavimentados. A rodovia corta uma das regiões mais ricas em biodiversidade da Amazônia, conhecida como o interflúvio dos rios Madeira e Purus. É um "corredor" de floresta até então bem preservada que atualmente está pressionado pelo avanço do agronegócio. No total, faltam pavimentar 459 quilômetros da rodovia.
O Brasil, na gestão de Bolsonaro, tem sido visto como uma ameaça global ao clima, principalmente pelo aumento do desmatamento na Amazônia. A floresta é um dos maiores sumidores do gás de efeito estufa do planeta, o que torna sua preservação mais importante do que nunca. O relatório lançado nesta segunda-feira pelo Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), que diz que o aumento da temperatura global pode chegar ao patamar de 1,5 grau Celsius já na próxima década, aponta para a gravidade de eventos - como o desmatamento crescente - que podem agravar o aquecimento global.
Durante a campanha presidencial, em 2018, o então candidato Jair Bolsonaro prometeu pavimentar a BR-319. Desde 2019, o governo tenta destravar o processo para iniciar as obras dos trechos da estrada que estão entre os extremos, conhecidos como "lote C" - de 52 quilômetros - e "trecho do meio", que tem 407.
O imbróglio envolve uma disputa judicial entre o Ministério Público Federal (MPF) e o Departamento Nacional de Infraestrutura Terrestre (DNIT). De um lado, os procuradores defendem que o estudo de impacto ambiental da obra deve ser feito em conjunto, unindo o lote C e o "trecho do meio".
O DNIT, por outro lado, argumenta que as obras do lote C seriam apenas uma espécie de "recuperação" da via, o que não necessitaria de um licenciamento específico. Após idas e vindas, a Justiça Federal autorizou o início das obras no lote C. Enquanto isso, o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama) ainda analisa o licenciamento ambiental do trecho do meio. A confiança do governo de que a obra sairá do papel é tanta que, em março de 2019, durante uma palestra, o vice-presidente Hamilton Mourão disse que se a obra não saísse, ele comeria sua boina.
Antes mesmo das obras começarem, porém, satélites do sistema Planet, o mesmo usado pela Polícia Federal, já detectaram o avanço do efeito conhecido por especialistas como "espinha de peixe". Dados preliminares de um estudo realizado pelo Instituto de Conservação e Desenvolvimento Sustentável da Amazônia (Idesam) mostram que, em 2020, houve um aumento de 13% na quantidade de quilômetros de pequenas estradas abertas na região. Somente no ano passado, 410 quilômetros de vicinais foram abertas na região afetada pela rodovia.
A pesquisadora Fernanda Meirelles, do Idesam, afirma que essas vicinais funcionam como vetores de desmatamento em uma região que estava, até então, preservada.
- O efeito espinha de peixe já começou e se concentra, especialmente, na região Sul do Amazonas, mais próximo ao município de Humaitá. Ali, a gente percebe o surgimento de estradas tanto saindo da rodovia quanto em direção a ela. Elas fomentam o desmatamento e aumentam a pressão sobre comunidades tradicionais. Já temos relatos de moradores que foram expulsos por grileiros - afirma Fernanda.
O efeito "espinha de peixe" ficou conhecido no universo acadêmico e tem como principal exemplo o avanço do desmatamento na região do entorno da BR-163, que corta o Sul do Pará. Anos após a abertura da rodovia, a região no seu entorno foi entrecortada por milhares de quilômetros de vicinais que viabilizaram a exploração de madeira ilegal, garimpos e o avanço da pecuária para uma região até então preservada. Hoje, municípios cortados por ela como Novo Progresso, no Pará, são campeões nacionais do desmatamento.
Ambientalistas afirmam que, pelo menos desde 2015, quando o governo federal voltou a dar sinais de que poderia retomar a obra, a especulação no entorno da rodovia aumentou. Eles afirmam, porém, que a promessa e as ações do atual governo para asfaltar a estrada deram um novo gás a esse processo em um momento marcado pela redução dos investimentos do governo federal em órgãos de comando e controle como o Ibama e o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio).
Dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) mostram, por exemplo, o desmatamento de 10 municípios do Amazonas cortados pela BR-319 cresceu 45% entre 2018 e 2019. Esse crescimento foi acima da média registrada na Amazônia como um todo naquele período, quando o desmatamento aumentou 34%. No total, apenas nos dois primeiros anos do governo do presidente Jair Bolsonaro, esses 10 municípios já perderam, os municípios perderam 634 quilômetros quadrados de floresta, o equivalente à metade da área da cidade do Rio de Janeiro.
Especulação em alta
Da beira da BR-319, Valtair Freitas, 61, observa o vai e vem de caminhões e caminhonetes que saem de Humaitá (AM) em direção a Manaus. Pioneiro na região, ele chegou ao distrito de Realidade, a pouco mais de 100 quilômetros da sede de Humaitá, em 2005. A expectativa criada em torno da pavimentação da rodovia fez dele um dos mais novos milionários do povoado.
- Em 2005, eu comprei um lote de 500 alqueires por R$ 10 mil. No ano passado, eu vendi por R$ 1 milhão. Hoje, vale R$ 1,5 milhão - disse.
Valtair foi um dos primeiros migrantes que viviam em Rondônia a comprar terras na região de Realidade, principal povoado após Humaitá em direção a Manaus. Hoje, ele afirma que tem 14 lotes, dos quais apenas 10 seriam escriturados, o que no cenário de incerteza fundiária e jurídica da Amazônica não significa muita coisa.
Receptivo, ele recebe a reportagem com café e queijo feito com leite de algumas das suas 220 vacas. Ele diz que a expectativa de que a estrada seja pavimentada está movimentando a região como nunca. Agricultores, fazendeiros, empresários e especuladores de diversas partes do país, mas sobretudo de Rondônia, viajam à região para negociar lotes e abrir áreas de pastagem.
Um levantamento feito pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) feito a pedido do GLOBO comprova o aumento do interesse por terras na região.
Em 2020, o órgão recebeu 140 requerimentos para regularização fundiária de lotes acima de mil hectares nos municípios cortados pela rodovia totalizando uma área de 181,1 mil hectares. Apenas nos oito primeiros meses de 2021, o número de requerimentos já superou o de todo o ano passado, chegando a 150, totalizando uma área de 143 mil hectares.
O temor entre especialistas é o de que o aumento nos pedidos de regularização fundiária no entorno da BR-319 possa ser um sinal de que a especulação fundiária esteja aumentando na região.
A lógica é simples: se há expectativa de que a estrada seja aberta, mais pessoas tentam requerer a posse das terras nas áreas cortadas por ela. Esse aumento, no entanto, poderia significar uma tentativa de fraudar o sistema de regularização fundiária conferindo terras de forma irregular que, mais tarde, serão vendidas clandestinamente ou poderiam servir para "esquentar" madeira ilegal com base em planos de manejo falsos.
Um caso assim foi detectado pelo Incra em 2020. Em um documento interno do órgão obtido pelo GLOBO, uma técnica relata que imagens de satélite mostraram a abertura de um ramal ilegal de 11 quilômetros em uma região de floresta preservada no entorno da BR-319 na região próxima ao Projeto Agroextrativista Lago do Acará, no município de Manicoré, no sul do Amazonas.
A técnica do órgão constatou que além desse ramal, outros dois haviam sido abertos e estavam próximos a polígonos de áreas acima de 1 mil hectares cuja titulação havia sido solicitada anteriormente. No documento, a técnica recomenda à chefia que os pedidos sejam indeferidos porque os satélites mostraram que os requerimentos foram feitos sobre áreas sem vestígios de ocupação, um dos principais pressupostos para a concessão de um título na região.
Para o procurador da República Rafael Rocha, que atua no processo envolvendo as obras da rodovia, o aumento no número de pedidos de regularização fundiária na região precisa ser investigado.
- Esse aumento precisa ser investigado. A pretensão de titulação de áreas que não estão efetivamente ocupadas é um dos mecanismos para a grilarem de terras públicas. Com a pavimentação e a recuperação da trafegabilidade da rodovia, a tendência é que essas áreas sejam invadidas aumentando a pressão por mudanças na legislação para legitimar ocupações que hoje são ilegais - afirmou o procurador.
Conhecedor da região, Valtair Freitas defende a abertura da estrada, mas sabe que ela poderá gerar um impacto negativo na região.
- Se você ficar na beira da BR, o que mais vai ver é caminhonete com tamborzinho de petróleo entrando no mato. Esse ano vai cair muito mato. Nós vamos ficar falados - diz Valtair em tom quase profético.

Governo e cientistas em lados opostos
Em meio ao avanço do desmatamento na Amazônia, a secretária de licenciamento ambiental do Programa de Parcerias e Investimentos do governo federal, Rose Hofmann, defende a pavimentação da rodovia. Ela nega que o projeto seja temerário para a região.
- Não considero temerário. Nós iremos conciliar o direito de ir e vir com uma boa governança territorial - afirmou.
Hofmann reconheceu que o efeito "espinha de peixe" já está em andamento na região. Na semana que vem, ela disse, vai se reunir com representantes da Polícia Federal porque um ramal saindo do rio Purus em direção à BR-319 foi descoberto. Ela defendeu, no entanto, que o governo vem implementando uma rede de governança na região que, segundo ela, vai inibir o avanço do desmatamento no entorno da BR-319. Essas medidas incluiriam a concessão de unidades de conservação para a iniciativa privada, a regularização fundiária e a instalação de dois postos de controle na rodovia.
- Nós não estamos de braços cruzados. Estamos implementando uma estrutura de governança que não havia na BR-163 e por isso acreditamos que o destino da BR-319 vai ser diferente. A BR-163 é uma lição aprendida - diz Hofmann.
O biólogo do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) e membro do Painel Internacional das Nações Unidas para Mudanças Climáticas (IPCC) que recebeu o Nobel da Paz em 2007, Philip Fearnside, no entanto, discorda de Hofmann. Segundo ele, não há razões práticas para acreditar que o desmatamento na região será coibido considerando a atual política ambiental do governo.
- A estrutura e a política ambiental que a gente observa hoje não nos permite acreditar que a BR-319 terá um destino diferente do da BR-163. Os dados do desmatamento na Amazônia mais recentes mostram isso - afirmou.
Uma das maioridades autoridades nos estudos do clima no mundo, Fearnside alerta que a pavimentação da BR-319 pode resultar em um desastre climático, ambiental, social e econômico de grandes proporções.
- Isso será um tiro no pé. Essa região é uma das principais responsáveis pela umidade que viaja pelo país e se transforma em chuva em lavouras mais ao sul do país. Se essa floresta desaparecer, não vai haver umidade. O impacto será devastador - explica.
Fearnside confirma que os dados de satélite já indicam a ocorrência do fenômeno "espinha de peixe" na região cortada pela BR-319. Segundo ele, além de vicinais clandestinas, a região já começa a ver surgir projetos como a da rodovia AM-366, saindo do município de Canutama em direção à BR-319.
Questionado, o Ministério da Infraestrutura afirma que o governo tomará providências para impedir a construção irregular de estradas secundárias.
"O Programa de Monitoramento e Controle da Faixa de Domínio [...] promoverá a prevenção da construção irregular de estradas secundárias, ramais e acessos a partir da rodovia", diz a nota.
Fernanda Meirelles,do Idesam, também diz duvidar da capacidade do estado de impedir um destino diferente para a região cortada pela BR-319.
-Até agora a gente não vê um esforço profundo para criação e fortalecimento da governança na região. O cenário não está diferente do que vivemos na BR-163. Pelo contrário. Em alguma medida, a situação na BR-319 é até pior - lamenta.
Apesar das ressalvas em torno do projeto, o governo parece ter pressa em fazer as obras andarem. Na semana passada, por exemplo, o Ibama permitiu que o DNIT fizesse audiências públicas do licenciamento do trecho do meio nos municípios e comunidades afetados pela rodovia de forma remota, usando a internet.
O MPF enviou uma recomendação argumentando que promover as audiências públicas em plena epidemia de Covid-19 trariam um risco sanitário desnecessário para um estado que foi dos que mais sofreu com a doença. Além disso, há dúvidas sobre quão acessíveis serão as audiências remotas em regiões da Amazônia onde o acesso à internet é precário.
Os argumentos do MPF não sensibilizaram o Ibama que "passou a boiada" e afirmou, na quinta-feira, que irá seguir o planejamento das audiências.
A reportagem do GLOBO enviou questionamentos ao Ibama e ao Ministério do Meio Ambiente, mas não recebeu retorno.

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