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Alcoolismo atinge índios da AM

A Crítica, Cidades, p. C6
21 de Abr de 2004

Alcoolismo atinge índios da AM
Uma cena triste se tornou comum na sede de São Gabriel da Cachoeira: índios, jovens e adultos, reunidos em grupo para beber cachaça ate cair no chão, ficando completamente alcoolizados. Na região vivem 22 etnias

Usada nas aldeias em rituais e festas realizadas em períodos diversos pelos índios brasileiros, a bebida fermentada, preparada com ervas nativas, sempre foi motivo de alegria e comemoração entre os indígenas. Mas essa não é mais a realidade das comunidades e etnias do Alto Rio Negro. Com o consumo cada vez maior de cachaça, que entra ilegalmente nessa região e tribos, parte da tradição virou problema de saúde e é comum encontrar-se jovens e adultos bebendo até chegar a embriaguez. Na sede de São Gabriel da Cachoeira (a 858 quilômetros de Manaus), uma cena comum nos finais de semana é ver a juventude reunida em grupos, ingerindo cachaça até cair no chão e sem poder levantar depois, completamente alcoolizados.
Estimativas das organizações indígenas e de órgãos de saúde apontam que 80% dos jovens do Alto Rio Negro façam uso de bebidas alcoólicas de forma indiscriminada. A situação é preocupante porque eles bebem muito e durante vários dias, afirma o presidente da Federação das Organizações Indígenas do Alto Rio Negro (Foirn), Orlando José de Oliveira Baré, 52, que procurou ajuda de pesquisadores da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e Fundação Nacional de Saúde (Funasa) para buscar uma saída para o problema, que imagina ser de origem genética. "A maioria que consome álcool acaba viciada", explica.
Segundo Orlando, na região do Alto Rio Negro vivem 22 etnias e em todas elas, há problemas com o consumo excessivo de álcool etílico a ponto de, na falta deste, haver utilização do produto comum e outras substâncias com teor alcoólico. "Isso é grave", admite o presidente da Foirn, relatando problemas provocados pela bebida como desentendimentos, brigas e atos de violência incomuns naquelas comunidades.
0 índio lamenta não haver mecanismo ainda para barrara entrada de cachaça nas tribos e nem como impedir a venda aos jovens que vão estudar na sede de São Gabriel da Cachoeira. Eles tornam-se alvos fáceis do álcool porque, longe da família e sem trabalho, acabam envolvidos. "Tem sempre um que oferece e depois que começa a beber o índio só pára quando fica bêbado", garante
ele, pedindo atenção especial para o problema aos que elaboram as políticas públicas no Município. "É preciso criar alternativas como atividades de Jazer e de trabalho".

FEDERAIS
Na tentativa de evitar a entrada de bebidas nas comunidades indígenas, a Foirn procurou apoio da Polícia Federal, mas ainda não obteve sucesso nessa empreitada. Orlando diz que os brancos conseguem burlar todas as medidas de segurança e levam a cachaça, que, ao contrário do caxiri, de uso comum nos rituais das aldeias, embriaga e vicia.
A aguardente, segundo o índio Orlando, já transformou a vida de aldeias e reconhecer isso é motivo de vergonha: "Não suporto ver os brancos, minoria na sede do município, tratar meus parentes como bêbados, com um forte tom de preconceito e discriminação". Orlando procura sugestões que possam contribuir para amenizara situação na cidade e aposta que a parceria da Foirn, Ufam e Fiocruz possa levar bons resultados para a manutenção dos valores das etnias. "Isso pode nos ajudara mudar essa triste realidade", aposta.
TRÊS PERGUNTAS PARA
Margarida Mendonça »ENFERMEIRA E SANITARISTA DA
FUNDAÇÃO NACIONAL DE SAÚDE (FUNASA)

1 Como a bebida entra na aldeia?
Os madeireiros e garimpeiros brancos, interessados em explorar algum recurso natural dos índios, usam a bebida como moeda de troca na aquisição de madeira ou produtos agrícolas.
2 O que a Funasa sabe sobre o consumo excessivo de álcool entre indígenas?
Que em todas as áreas indígenas, de todas as regiões do Estado, o consumo de bebidas alcoólicas, mesmo proibido, é comum e excessivo, sendo fonte de brigas, violências e doenças antes inexistentes nessas áreas, como a cirrose.
3 E o que tem sido feito para mudar esse cenário?
Estamos trabalhando em conjunto com algumas instituições, como os Alcoólicos Anônimos (AA), Fundação Centro de Oncologia do Amazonas (FCecon) e a Fundação Nacional do índio (Funai), com o objetivo de trataras causas e as conseqüências desse problema.

BUSCA RÁPIDA
A doença
O alcoolismo é uma doença que aflige homens e mulheres e é tão antiga quanto o próprio homem porque a bebida alcoólica está presente em quase todas as culturas conhecidas até hoje.
A Organização Mundial de Saúde (OMS) considera o alcoolismo uma patologia.
Ensino médio pode ser solução
Uma das medidas para tentar reduzir o alto índice de alcoolismo entre os indígenas será a implantação do ensino médio e profissionalizante nas aldeias. A proposta é do presidente do Conselho dos Professores Indígenas do Alto Rio Negro (Copiar), Ismael Fontes Dutra, 30, da etnia tuiúca. A reivindicação tem como argumento o grande número de jovens que termina o ensino fundamental e não pode complementar os estudos no local por falta de oferta'' de cursos. Em março passado, os professores reuniram-se no Município de São Gabriel para elaborar uma proposta, que foi encaminhada à Secretaria de Estado da Educação (Seduc). A Seduc informa que a grande dificuldade para atender o pedido é a falta de pessoal disponível para se deslocar às comunidades.
Dos rituais ao uso abusivo
Para entendera presença do alcoolismo nas aldeias e comunidades e saber quando isso se torna problema, o psiquiatra Maximiliano Loiola Ponte de Souza, 29, está trabalhando na dissertação de mestrado cujo título é "Consumo abusivo de álcool em populações indígenas do Alto Rio Negro". A tarefa não é fácil pela falta de referências anteriores.
0 médico explica que a bebida fermentada é usada milenarmente entre os índios. Como exemplo, cita o caxiri, liqüido tradicional usado por todos nas aldeias, inclusive crianças, que é ingerido até acabar o estoque produzido para a ocasião. A questão é que esse mesmo gesto é repetido quando a bebida é a cachaça dos brancos, usada pelo marechal Floriano Rondon, um dos responsáveis pela ocupação da Amazônia, para "amansar" os indígenas. "Eles bebem cachaça da mesma forma como fazem com o caxiri", revela Maximiliano.
Outro que estuda a questão é antropólogo Júlio Schweickardt, 39, da Fiocruz. Ele cita a perda dos valores culturais das comunidades como um dos fatores que contribuem para o jovem intensificar o consumo e até provocar dependência. "A cidade cria o anonimato e nela o garoto está sozinho, longe do controle social da família".

A Crítica, 21/04/2004, Cidades, p. C6

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