VOLTAR

Agulhas no palheiro em chamas

FSP, Ambiente, p. B6
Autor: LEITE, Marcelo
30 de Ago de 2020

Agulhas no palheiro em chamas

Ibama tem só um fiscal para 13,5 mil km2 de floresta amazônica, vice-presidente

"O Brasil, no fundo, não passa de um Grão-Pará. Talvez fosse melhor, mesmo, ter a Amazônia invadida pelos americanos. Até eles poderiam nos dar lições de civilização."

Escrevi a conclusão acima, há mais de 15 anos, na coluna "Dorothy e o Grão-Pará". Em 2008, ao reproduzir o texto no volume "Ciência - Use com Cuidado" (Editora da Unicamp), achei prudente explicar uma das frases mais temerárias que já escrevi:

"Foi produzida num momento de grande revolta, mas claramente diz algo em que não acredito -nem que essa ameaça exista, nem que, em se materializando, pudesse ter algum aspecto positivo. Mas como essa fantasia [...] ainda domina boa parte do pensamento militar sobre a região, sempre é bom deixar as coisas mais claras do que ficam quando se recorre à traiçoeira ironia."

No governo de Jair Bolsonaro, seja sobre Amazônia e tantas outras tragédias, ironia não tem cabimento. Suas políticas ecocidas e genocidas (no que respeita a povos indígenas) para essa metade do Brasil estão a cargo do vice, general Hamilton Mourão, que professa a mesma crença paranoica a predominar nas casernas ignorantes.

Mourão é um poste do latifúndio extrativista e predatório. Embaralha-se com grandes números porque enxerga a Amazônia como imensidão por ocupar. Para ele e seu exército de Brancaleone, 20% de destruição da maior floresta tropical do mundo é pouco.

Ao tratar de queimadas, o vice saiu-se com comparação esdrúxula. Qualificou como agulhas no palheiro cerca de 25 mil focos de queimada em agosto porque a Amazônia Legal tem 5,2 milhões de km2, ou seja, um incêndio para cada 200 km2, tentando justificar o fracasso da moratória que lhe coube implementar.

Ricardo Salles, do Ministério do Meio Ambiente, é menos sutil. Em plena temporada de desmate e queimadas, ameaçou suspender na sexta-feira (28) todas as operações de combate do Ibama, que já vinha tentando dobrar.

Outra besteira que Mourão, Salles e o chefe gostam e repetir: não é mata que se queima, mas lavouras. Não é bem assim. Satélites provam que mais da metade dos terrenos incendiados continha floresta derrubada em período anterior e se concentra em área muito menor, o chamado arco de desmatamento.

As verdadeiras agulhas no palheiro são os raros agentes disponíveis para combater a devastação. Não os recrutas que Mourão levou para passear na Amazônia, mas fiscais do Ibama posto de joelhos por Salles.

Documento interno da agência ambiental a que a coluna teve acesso registra que haveria no presente 693 fiscais treinados para combater desmatamentos na floresta amazônica. No entanto 140 deles já estavam impedidos de atuar por terem mais de 60 anos e integrarem grupo de risco para Covid-19.

Outros 241 se encontravam alijados da ação por terem doenças crônicas ou conviverem em casa com idosos, crianças, grávidas etc.. Sobrariam, assim, 312 fiscais para 4,2 milhões de km2 do bioma amazônico -um fiscal para cada 13.462 km2, superfície equivalente a nove municípios como São Paulo ou meio estado de Alagoas.

Não são só investidores estrangeiros a sentir o cheiro de queimado. Pesquisa encomendada pelos donos do dinheiro nacional (Febraban) constatou que 83% dos brasileiros estão insatisfeitos com a preservação da floresta.

Até os presidentes do Itaú, do Bradesco e do Santander descobriram que defender a Amazônia é uma maneira barata de fustigar Bolsonaro e perfilar-se como civilizados.

Volto à coluna de 2005: "Martin Walser se referiu à Alemanha como 'uma pátria difícil'. Só que, mal ou bem, os alemães estão conseguindo reconstruir a própria história de maneira digna, e isso com todos os neonazistas da vida [...]. Difícil, mesmo, é o Brasil".

Marcelo Leite
Jornalista especializado em ciência e ambiente, autor de "Ciência - Use com Cuidado".

FSP, 30/08/2020, Ambiente, p. B6

https://www1.folha.uol.com.br/colunas/marceloleite/2020/08/agulhas-no-p…

As notícias aqui publicadas são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos. Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.