VOLTAR

A água suja de cada dia

O Globo, Rio, p. 14
26 de Jun de 2012

A água suja de cada dia
Apenas 21% do esgoto das cidades ao longo da Bacia do Paraíba do Sul são tratados

Rafael Galdo
rafael.galdo@oglobo.com.br
Rogério Daflon
daflon@oglobo.com.br

Mais de cinco milhões de anos atrás, uma transformação geológica teria mudado o curso do Rio Paraíba do Sul. Se antes suas águas rumavam para o Rio Tietê, em São Paulo, com o fenômeno elas se desviaram para as bandas do Rio de Janeiro. Para a sorte dos fluminenses. De lá para cá, muita água rolou. Hoje, da Serra da Bocaina, em São Paulo, a Atafona, no Norte do Rio, o velho Paraíba percorre 1.137 quilômetros. Em sua bacia hidrográfica, são 184 cidades, concentrando 12% do PIB do país, aproximadamente 5,5 milhões de habitantes e mais de oito mil indústrias (cerca de 3.800 no Rio). Uma região próspera, com certeza. Mas essa riqueza não significa cuidados à altura dos serviços prestados pelo rio: segundo dados recentes da Agência Nacional das Águas (ANA), apenas 21% do esgoto da Bacia do Paraíba são tratados. Um índice abaixo da média nacional, que é 30,5%. Sem falar no desmatamento das matas, no despejo de efluentes industriais e em agressões como a retirada de areia.
No Estado do Rio, o Paraíba do Sul corta 37 municípios. E 57 cidades fluminenses estão na sua bacia. O rio é a única fonte de abastecimento de água para 12 milhões de habitantes do estado, incluindo 85% da Região Metropolitana. Mas, em seu curso, constatou O GLOBO ao percorrer boa parte de sua bacia, para o terceiro dia da série de reportagens "Os rios do Rio", a degradação é flagrante. Correnteza abaixo, logo a primeira cidade fluminense em seu trajeto, Itatiaia (de 28 mil habitantes), tem zero de tratamento de esgoto. Em Resende, com 117 mil moradores, foi construída uma área de lazer à beira-rio, com pista de ciclismo e caminhada. Abaixo dela, contudo, são pelo menos quatro pontos de lançamento de esgoto, numa região predominantemente de classe média, um deles em frente à prefeitura.
- Sempre associamos o despejo de esgoto nos rios às comunidades pobres. Mas, neste trecho de Resende, só há classe média e classe média alta. Como se pode ver, são muitas as galerias de esgoto que despejam dejetos direto no Paraíba - diz Marie-Louise Goransson, dona de uma pousada em Penedo.
Algumas localidades e indústrias depois, a cidade de Barra Mansa também se desenvolve às margens do rio. São 172 mil habitantes, mas só se trata o esgoto de três mil na área urbana, segundo dados do ICMS Ecológico (fatia dos recursos do ICMS a que as cidades têm direito de acordo com metas ambientais atingidas). Flávio Simões, diretor-executivo da Agência da Bacia do Paraíba (Agevap), diz que os efluentes domésticos lançados in natura são o maior problema do rio. E que a poluição provocada pelas cidades maiores, como Barra Mansa, é a mais preocupante. A Agevap, órgão que reúne representantes de Rio, São Paulo e Minas Gerais, é um dos principais responsáveis por implantar as políticas de recuperação da Bacia do Paraíba.
De acordo com Simões, o objetivo é que, nos próximos anos, todos os municípios da bacia tenham ao menos um plano de saneamento. E em Barra Mansa a promessa é que, com uma estação de tratamento em construção, todo o esgoto da cidade seja tratado até 2013.
- Apesar de todos os esforços, há um longo caminho a percorrer. Em 80% a 90% dos municípios da região (incluindo Rio, São Paulo e Minas), não há tratamento de esgoto. São Paulo tem a maior evolução. Cidades como Taubaté têm 100% do esgoto tratado. Jacareí passou de 2% para 38%. Cachoeira Paulista, Lorena e Aparecida têm sistemas em construção. O melhor indicador é a presença de mais peixes no trecho paulista - diz Simões.
Em Volta Redonda (246 mil habitantes), há uma estação de tratamento de esgoto em funcionamento, segundo o diretor da Agevap, e o sistema está sendo ampliado. O município é um dos principais polos industriais do Paraíba - estima-se que as indústrias ao longo de todo o rio despejem 42 toneladas diárias de carga orgânica em suas águas. A Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), por exemplo, se esparrama por 5,1 quilômetros à beira-rio. Em frente à empresa, no bairro Siderlândia, a família de Sirleia Ventura Pereira vive ao lado de três grandes saídas de esgoto que despejam dejetos no rio:
- Moro aqui há 25 anos. Nesse período, o Córrego Bugio foi canalizado e passou a chegar ao Paraíba com esgoto dos bairros Belmonte, Padre Zózimo, Jardim Belmonte e Açude. Quando chove, o esgoto entra nas casas. Estou sempre com medo de doenças aqui.
Dali, o Paraíba percorre alguns quilômetros de territórios pouco habitados. Em Valença, passa pela Fazenda Santa Mônica, com seu casarão que testemunha o esplendor do ciclo do café no estado, entre os séculos XVIII e XIX. Mas, se não há muita gente para derramar esgoto nas águas, o problema são as grandes áreas desmatadas, que aumentam a erosão nas margens do rio. Ele chega a Barra do Piraí, com seus 91 mil habitantes, barrento e sujo.
É nesse município que dois terços da vazão do Paraíba são desviados, na elevatória de Santa Cecília, para o Guandu, que abastece aproximadamente nove milhões de pessoas na Região Metropolitana. A partir de Três Rios, o Paraíba do Sul passa a servir de divisa entre os estado do Rio e de Minas.
Despejo de efluentes causou tragédia
Dali, em seu curso em direção ao Norte do estado, o rio recebe as águas de afluentes como o Dois Rios, o Muriaé e o Pomba, este último vindo da Zona da Mata Mineira e que provocou uma das maiores tragédias do Paraíba. Em 2003, 500 milhões de litros de substâncias tóxicas do reservatório da Indústria Cataguases de Papel atingiram o Ribeirão Cágado, desceram pelo Pomba e chegaram ao Paraíba do Sul. Milhares de pessoas ficaram sem água e toneladas de peixes morreram.
O episódio é até hoje lembrado na cidade de Campos, a maior do estado à beira do Paraíba do Sul, com 442 mil habitantes. No Centro, é possível encontrar dezenas de pescadores que atestam: desde o acidente de 2003, o rio ainda não se recuperou.
- Até hoje, pescamos muito menos do que antes do acidente - diz Carlos Henrique César Tavares, de 46 anos.
- Apesar disso, a pesca é a distração aqui em Campos. E ainda há peixe - completa o aposentado Edvaldo Miranda de Oliveira, de 77 anos.
Mais de mil quilômetros depois, o Paraíba encontra o mar, em Atafona, São João da Barra (32 mil habitantes). Na briga entre o rio e o oceano, o oceano avançou dois quilômetros terra adentro, pondo dezenas de casas e lojas debaixo d'água.

Opinião
Tudo igual

IMAGENS DE moradores de São José do Rio Preto voltando a construir casas em locais de risco revelam muito mais do que a reocupação de uma área onde muitas pessoas morreram na enchente de 2011.

ELAS INDICAM também que, um ano e meio após a tragédia na Serra Fluminense, erros e leniência do poder público se repetem.

E SUGEREM que nada será feito até que o próximo flagelo volte a provocar mortes e desabrigar famílias. Nunca será demais repetir.

O Globo, 26/06/2012, Rio, p. 14

As notícias aqui publicadas são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos. Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.