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A água está baixa. Daqui a pouco vão atravessar a pé

O Globo, País, p. 4
14 de Set de 2015

A água está baixa. Daqui a pouco vão atravessar a pé
Para barqueiro, água está tão baixa que em breve será possível atravessar a pé

André Miranda

RIO - É difícil acreditar na precisão do relato de Edmundo de Araújo, mas o Rio São Francisco ensina que a verdade nem sempre é suficiente para explicar o que se passa com seu povo. Aos 62 anos, Edmundo, homem negro, alto e silencioso, é o barqueiro que leva os moradores do distrito de Cachoeira do Manteiga para o município de Ponto Chique, no norte de Minas Gerais. Ele próprio recorda: está na atividade desde 1990, trabalhando de domingo a domingo, das 5h30m até as 23h, e nunca, jamais, faltou a um dia de trabalho. Nem por doença, nem por férias, nem para cuidar de seus três filhos. Mas teme faltar pela seca.
Edmundo é um dos 16 milhões de brasileiros que vivem na bacia do Rio São Francisco - um curso d'água que nasce na Serra da Canastra, atravessa cinco estados e, depois de 2,7 mil quilômetros, encontra-se com o Oceano Atlântico. Como a maior parte dessa gente, sua vida está ligada ao rio. Como todos, sofre pela seca que já dura dois anos e é a mais intensa de um século de medição das águas do São Francisco.
No pequeno barco a motor de Edmundo cabem seis pessoas, sete com o piloto, e há coletes para todos. Ele fica atracado na costa de Cachoeira do Manteiga, à espera de fregueses que pagam R$ 3 pela viagem que não dura muito mais do que cinco minutos. Volta e meia ouvem-se gritos do outro lado do rio, vindos de Ponto Chique: "Edir, Edir, Edir, vem cá". À noite, são as lanternas e luzes de telefones que chamam a atenção de Edmundo.
- O pessoal também já tem meu número de telefone. Mas, antes, para eu buscar alguém, era só no grito mesmo - diz Edmundo, que trabalhava na roça até herdar a linha do barco de seu sogro. - Ele perdeu as vistas e passou para mim.
O barqueiro não sabe dizer exatamente quantas viagens faz por dia, mas sabe avaliar o que vem acontecendo com o rio. Em seu percurso de uma costa a outra, é possível ver pessoas andando, com a água na cintura, bem no meio do São Francisco, a mais de 200 metros da margem. O assoreamento também fica evidente com a formação de pequenas ilhas, as croas que atrapalham a navegação e se transformam em praias para a criançada no fim de semana. Na situação atual, barcos grandes não cruzam o caminho de Edmundo.
Ponto Chique e Cachoeira do Manteiga estão em lados opostos do São Francisco e da História. O primeiro é um município com pouco mais de 4 mil habitantes, e o segundo é um distrito da cidade de Buritizeiro, em que não vivem mais de 3 mil pessoas. Ambos se originaram de um antigo vilarejo chamado Paracatu de Seis Dedos. Na década de 1940, com as constantes cheias no São Francisco, os moradores de Paracatu decidiram se mudar para uma região ainda à beira do rio, porém mais alta.
Só que um desentendimento entre dois fazendeiros rachou a vila. Gonçalo Ramos e Nestor Alves Clementino brigaram porque um cismou que o outro estava de caso com sua mulher. Gonçalo levou, então, sua turma para a margem esquerda e fundou Cachoeira do Manteiga; deixando para Nestor e Ponto Chique a margem direita. Por isso, de galhofa, há quem chame Ponto Chique de Ponto Chifre.
Hoje, o barqueiro Edmundo é quem mais rapidamente une as duas localidades. Ao lado dele, uma balsa, chamada Pioneira, poderia levar veículos de uma costa a outra, mas quebrou em julho e está à espera de conserto. Para os carros, restam, assim, três opções: ou procuram balsas em cidades vizinhas, ou percorrem 110 quilômetros até a ponte mais próxima, em Pirapora, ou ficam estacionados na beira do rio, enquanto os motoristas recorrem a Edmundo.
- O problema aqui é que a água está baixa, daqui a pouco vão atravessar a pé. Nem peixe tem dado muito - diz o barqueiro.

O Globo, 14/09/2015, País, p. 4

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