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Agrotóxicos: o criador, a criatura, e todo o resto

Valor Econômico, Política, p. A5
Autor: CHIARETTI, Daniela
13 de Jul de 2018

Agrotóxicos: o criador, a criatura, e todo o resto

Daniela Chiaretti

A palavra surgiu pela primeira vez em um artigo de 1977. Seu criador refletiu sobre o que existia e não encontrou nada que tivesse etimologia precisa, com sentido científico e que alertasse as pessoas sobre o perigo. "Pensei: É um tóxico", contou Adilson Dias Paschoal, PhD em ecologia e recursos naturais, a Nelson Niero Neto e Vinícius Galera, jornalistas da revista "Globo Rural" que o entrevistaram em Piracicaba. Ele é o agrônomo que há 40 anos juntou "agros" (campo, em grego), com "tokicon" (veneno), e cunhou o termo "agrotóxico". A denominação está no epicentro da polêmica ambiental destes dias no Brasil e congrega visões que vão bem além do debate semântico.
Pesticida e praguicida não serviam, segundo ele. Não matam a peste em si mas seus agentes causadores, no primeiro caso, e liquidam muito além da praga, no segundo. Biocida seria "mais realista" mas também um pleonasmo - "Mata o que é vivo ou seria possível matar o que é morto?" questiona. Defensivo agrícola, por seu turno, era intolerável: "É o termo mais incorreto, ambíguo, utópico, vago e tendencioso de todos". Qualquer técnica usada na defesa da agricultura pode ser considerada um defensivo agrícola. Isso incluiria um sistema mecânico de controle da erosão sem nada de químico. Foi assim que surgiu "agrotóxico".
O termo, de tão claro, pegou. Entrou no capítulo V da Constituição, o que trata da regulação de propaganda de tabaco, bebidas alcoólicas, agrotóxicos, medicamentos e terapias. Mais que tudo, entrou no vocabulário popular. Ninguém busca alface orgânica no mercado dizendo que não quer a outra porque está cheia de "defensivos agrícolas" e, sim, porque "está cheia de agrotóxicos".
Há quem discorde de cada linha dos parágrafos acima. São os defensores da lei 6.299, de 2002, que tramita no Congresso para agilizar o registro de agrotóxicos no Brasil. De autoria do ministro da Agricultura, Blairo Maggi, quando senador, teve o deputado Luiz Nishimori (PR-PR) como relator em comissão especial da Câmara. Defendido pela bancada ruralista, o projeto é um dos mais controversos a aterrissar no plenário da Câmara depois de ter sido aprovado, em junho, em comissão especial. O programa "Expressão Nacional", exibido em julho pela TV Câmara, trouxe alguns dos argumentos usados por quem acredita que o projeto é a salvação da lavoura e por quem, do outro lado, acha que ele é simplesmente péssimo.
O relatório, que elimina a expressão agrotóxico e adotava "defensivo fitossanitário" capitulou à pressão articulada pelos ambientalistas e o texto agora chama o produto de "pesticida". "A mudança de nomenclatura corrige um retrocesso péssimo para a agricultura brasileira", sintetizou Reginaldo Minaré, representante da Confederação Nacional da Agricultura (CNA), no programa.
Um dos pontos espinhosos, contudo, é o que na interpretação dos técnicos do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) tira dos dois órgãos o poder de veto e decisão sobre o registro e dá a palavra final ao Ministério da Agricultura. O deputado federal ruralista Valdir Colatto (MDB-SC) rebateu a colocação, garantiu que "ninguém tira prerrogativa dos órgãos". Mas repetiu que o processo é moroso demais.
O texto, agora, amplia para até dois anos os prazos para o registro de novas moléculas de pesticidas. "O objetivo do projeto, entre outras coisas, é esta mudança. Mas o debate não pode ser entre quem quer produzir e quem não quer. O debate é: qual é a melhor forma, a mais segura de se produzir?", disse o deputado Alessandro Molon (PSB-RJ). Técnicos do próprio
Ministério da Agricultura dizem que não há gente nem infraestrutura para dar conta destes processos. A lei em vigor diz que o prazo é de 120 dias. Nunca é cumprido. Pode levar até dez anos para um registro, o que é um prazo ciclópico.
"Fui do Ministério da Agricultura por 35 anos, acompanhei estes processos a vida toda", rebateu Rogério Dias, que ali criou o departamento de agroecologia. Ele denuncia a prática das indústrias que pedem o registro de um produto, o recebem e nunca o colocam no mercado - a intenção é apenas travar a fila e impedir a entrada de um produto concorrente.
Especialistas que lidam com o assunto apontam o erro de se afirmar que o Brasil é campeão mundial no uso de agrotóxicos. Não é, embora fique sempre ali, entre os três primeiros. Em valores absolutos tem a China antes, os EUA dependendo do ano, a União Européia um tanto atrás, segundo pesquisa do Observatório do Clima, rede de ONGs que discute temas ambientais. Não é que o Brasil use pouco, mas o dado, solto, perde sentido. O uso depende da extensão do cultivo, se na mesma área se faz mais de uma safra. Ou, no argumento ruralista, se a agricultura é tropical, praticada em região úmida, se tem que lidar com pragas mais resistentes.
"Mas este não é o ponto central da discussão", disse ao Valor Maria Elisabetta Tagliati, especialista do assunto da FAO, a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação. O importante é saber, diz ela, se as pessoas que aplicam agrotóxicos usam roupa de proteção, se estão de máscara, se há monitoramento adequado de sua saúde. O uso de agrotóxicos tem que ser visto sob foco multidisciplinar, repete.
É diferente o impacto dos agrotóxicos em um homem de 80 quilos que circula por uma lavoura ou em uma criança de 15 quilos, que vive na mesma lavoura com a mão na boca. Um produto usado em uma cultura de algodão moderna e mecanizada em país rico, com trabalhadores devidamente protegidos terá efeito bem diferente quando utilizado em lavoura de país pobre, onde trabalham grávidas. "Pesticidas têm que ser analisados a partir de vários pontos de vista. São produtos desenvolvidos para matar. Alguns de seus efeitos acontecem 20 anos depois", segue Maria Elisabetta. Descobre- se, por exemplo, que uma molécula tem determinado efeito no sistema nervoso. "Seres humanos são iguais por todo lado", lembra ela. Na sua visão, é um retrocesso dar todo poder à agricultura neste assunto que deveria ter lentes de especialistas ambientais, da saúde e também do trabalho. "É como recuar 20 anos nesta abordagem".

Daniela Chiaretti é repórter especial. Humberto Saccomandi volta a escrever em agosto.
E-mail: daniela.chiaretti@valor.com.br

Valor Econômico, 13/07/2018, Política, p. A5

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