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8 empreendedores mudam a vida de 800 mil pessoas

FSP, Especial, p. 1-14
06 de Dez de 2005

8 empreendedores mudam a vida de 800 mil pessoas
Projetos sociais finalistas refletem a diversidade do país, mas, em comum, resgatam a auto-estima; Brasil é o 2o no mundo em inscrições

Patrícia Trudes da Veiga
Editora de Suplementos

Eles são apenas oito, 0,000004% da população brasileira. Mas, com suas ações, Eliana, Elisabeth, Eugenio, João, Karen, Sônia, Teresa e Viviane transformaram, só neste ano, a vida de 801.294 pessoas _o equivalente ao número de habitantes de capitais como João Pessoa e Natal. Seus projetos sociais são tão diversos quanto o nosso país, mas têm um elo em comum: o resgate da auto-estima.
Finalistas do prêmio Empreendedor Social 2005, que recebeu 125 inscrições em sua estréia _segundo maior número nos 24 países onde está sendo realizado_, os oito foram sabatinados pela Folha e pela Fundação Schwab, parceiros nesta iniciativa, e levados a um júri de notáveis. Inovação, sustentabilidade, efeito multiplicador e impacto social foram alguns critérios analisados.
Ontem, o médico Eugenio Scannavino Netto, 46, foi anunciado vencedor. Líder do Saúde e Alegria, projeto que estimula a cidadania de mais de 140 comunidades extrativistas na Amazônia, "é exemplo de dedicação e desprendimento", diz o jurado Luis Carlos Merege, coordenador do Centro de Estudos do Terceiro Setor da Fundação Getulio Vargas.
Reconhecimento mundial e acesso a financiadores são os principais prêmios oferecidos ao "Empreendedor Social 2005", além de participação, com tudo pago, no Fórum Econômico Mundial de Davos, na Suíça; no Fórum Mundial de Empreendedorismo e em reuniões regionais do Fórum Econômico Mundial _a da América Latina será em São Paulo e reunirá, dias 5 e 6 de abril, presidentes e empresários.
"Queremos garantir que o empreendedorismo social passe a ser o protagonista em nossa sociedade", afirma Klaus Schwab, presidente da Fundação Schwab.
Em 2006, o concurso será estendido para mais 13 países, totalizando 37, numa tentativa de identificar o que Pamela Hartigan, diretora-executiva da Fundação Schwab, define como o verdadeiro empreendedor social: "Uma mistura de empresário e santo". (Colaborou MARLENE PERET)

Conheça o Júri
Anna Maria Tibúrcio Medeiros Peliano, 58, socióloga, é diretora de estudos sociais do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada)
Cleusa Turra, 47, jornalista, é diretora do Núcleo de Revistas da Folha
Ferreira Gullar, 75, é tradutor, ensaísta e poeta
Mário Mantovani, 49, geógrafo, é diretor de relações institucionais da Fundação SOS Mata Atlântica
Milú Villela, psicóloga, é embaixadora da Boa Vontade da Unesco e presidente do Instituto Faça Parte, do MAM (Museu de Arte Moderna de São Paulo) e do Instituto Itaú Cultural
Pamela Hartigan, 57, médica, é diretora-executiva da Fundação Schwab
Rodrigo Baggio, 36, é empreendedor social, integrante da Rede Schwab no Brasil e criador do CDI (Comitê para a Democratização da Informática)
Sérgio Besserman Vianna, 48, economista, é diretor de informações geográficas do Instituto Municipal de Urbanismo Pereira Passos (RJ) e ex-presidente do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística)

Sem identidade definida, terceiro setor cresce
Entre polêmicas para definir seus conceitos, entidades que não são Estado nem mercado ganham mais espaço no país
DA REPORTAGEM LOCAL
Nem Estado nem mercado. A lógica que une organizações diversas em um só grupo, o chamado "terceiro setor", é a da exclusão _e é esta mesma a origem da crise de identidade no setor.
As próprias entidades divergem quando o assunto é esse. E o melhor estudo sobre o setor no país, publicado no ano passado, embora dê boas pistas de como essas organizações se distribuem, reúne, num mesmo grupo, todos que não visam ao lucro.
Agrupam alguns hospitais e universidades, ONGs que defendem direitos, associações religio sas que cuidam de crianças, entidades que preservam orquídeas e até grupos de fãs de artistas como Elvis Presley ou Elis Regina.
Em algumas áreas, no entanto, como nos segmentos de ambiente e defesa de direitos, os números se aproximam mais do terceiro setor. "O crescimento dessas entidades e do número de pessoas envolvidas nessas atividades surpreendeu", diz Nathalie Beghin, pesquisadora do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), que participou do estudo. O trabalho evitou usar a expressão "terceiro setor". "Não há consenso sobre o que seja o terceiro setor", argumenta ela.
Além do Ipea, participaram da pesquisa o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), o Gife (Grupo de Institutos, Fundações e Empresas) e a Abong (Associação Brasileira de ONGs). O estudo revela que as Fasfil (Fundações e Associações Sem Fins Lucrativos) cresceram 136% entre 1996 e 2002, movimento considerado bastante relevante.
A Abong está entre os que defendem a afirmação da identidade de cada grupo, marcando as diferenças e convergências. "Só uma pequena parcela é de ONGs de verdade", afirma Jorge Eduardo Saavedra Durão, diretor-geral.
A Fundação Schwab, por sua vez, não considera a busca do lucro um empecilho. O empreendedor social, parela, assume responsabilidades tanto do setor público quanto do privado. "O que precisamos é promover inovação social com os pés no chão, e é isso que os empreendedores sociais estão fazendo", diz Klaus Schwab, criador da fundação e mentor do Fórum Econômico Mundial.
Há ao menos 12 definições distintas de empreendedor social em organizações pelo mundo. Entre elas está a da americana Ashoka, que, ao contrário da Schwab, só apóia aos sem fins lucrativos. Para ela, empreendedores sociais são "inovadores sociais que deixarão sua marca na história". (BL)

Empreendedor Social 2005 é um paulista inovador, bem-humorado e avesso a formalidades, que chora ao falar de seus sonhos e cuida mais dos outros do que de si
Médico que combate diarréia no Pará sonha 'amazonizar' o mundo
Bruno Lima
ENVIADO ESPECIAL AO PARÁ
Quando o médico Eugenio Scannavino Netto foi visitar o pai, que estava com câncer, à beira da morte, disse a ele: "Obrigado, pai, por tudo que você fez por mim". Levou uma boa bronca.
"Nunca mais fale isso", ouviu. "Se você for digno, e a única coisa que eu te dei foi dignidade, faça para os outros muito mais e muito melhor do que fui capaz de fazer por você." Assim foi a criação de Eugenio, vencedor do prêmio Empreendedor Social 2005.
De casa, trouxe outras duas lições. A primeira, diz ele, é que a vida é um jogo _um jogo de pôquer. "Venho de uma linhagem de boêmios", conta, sorriso no rosto. "Tem de ter firmeza, tem de estar muito atento para não te passarem a perna. Eu jogo forte, mas não blefo, tenho um bom cacife, que é o meu trabalho."
A outra regra que sempre lhe repetiram é só entrar onde souber sair. "Essa é a única que ainda não consegui aprender. Sempre me vejo em cada enrascada", confessa. Eugenio não sabe, mas essa lição, por maique queira, ele possivelmente não aprenderá nunca.
É dessa cara-de-pau e dessa aparente inconseqüência que vem sua força inovadora. Eugenio é o típico homem que dá tudo para não abandonar uma briga.
Conflitos não faltam, mas ele os enfrenta com uma serenidade inesperada. É questionador, mas abomina a violência. Seu protesto é o trabalho, é a cartada certeira _e calma_ de quem tem nas mãos o jogo certo e limpo. É por isso que ele aposta tudo.
"A medicina me deu isso. Quando há uma emergência, todo mundo fica nervoso, menos o médico. A medicina me ensinou a ficar em paz em horas críticas."
As certezas , no entanto, não são muitas. Eugenio é uma criança cheia de dúvidas. Quer saber do mundo, do outro, dos olhos do outro. "Não entendo como as pessoas podem ser tão ignorantes. Ser feliz é tão simples, tão fácil. Por que é que tem tanto ódio?".
A pureza e a ingenuidade são marcas do "doutor". Eugenio pensa tanto no mundo que pouco cuida de si. Tem, vale dizer, uma casa no meio da floresta, na beira de um igarapé que fica em uma área que ele ajudou a preservar _comprou o terreno de um fazendeiro para evitar que ficasse com uma madeireira. É uma cabana de madeira, que não tem paredes _como os sonhos do dono.
"Eu não trocaria de vida, mas às vezes me lembro das contas. Minha vida é totalmente instável, não tenho salário, não tenho carteira assinada, não vou ter aposentadoria, não consigo nem trocar o escapamento do carro."
A mãe de Eugênio, que não revela sua idade, faz questão de revelar os segredos do filho: "Eu e o pai dele fomos ver o que ele esta fazendo. Era um mocinho loiro, fino, destoava de todo mundo. Falavam: 'ele quer matar a gente'. Causava desconfiança."
Ela diz que acabou transformada pelos filhos Eugenio e Caetano (que há 17 anos se mudou para o Pará para trabalhar com o irmão no projeto Saúde e Alegria).
"Vim de uma família certinha. Ficava meio atordoada. Mas ou abria a cabeça e ficava longe deles. Resolvi abrir. Aprendi muito, ganhei despojamento. Eu nunca pensei em índio durante a gravidez. De onde eles vieram eu não sei. Mudar o mundo é impossível. Mas eles mostram que é possível mudar o mundo à nossa volta."
"Irmão a gente não escolhe, é obrigado a ter. Mas, como colegas de trabalho, nos escolhemos. Eu toco toda a burocracia para ele sonhar", diz Caetano, 39.
O atual sonho de Eugenio é ambicioso. "As pessoas daqui têm muito a ensinar. E a primeira lição da Amazônia é a da humildade. Em vez de internacionalizar a Amazônia, vamos amazonizar o mundo", planeja. Na faculdade, sempre soube que iria para o interior. "Quando cheguei à Amazônia, falei: Epa, é aqui. Fiquei vindo para cá durante a faculdade várias vezes, até achar esse lugar."
O lugar era a região banhada pelos riso Amazonas, Tapajós e Arapiuns, próxima a Santarém, no Pará, onde se tornou "herói mocorongo", que é também como se chama o santareno, aquele que nasce em Santarém.
"Há quase 20 anos começamos a utilizar a arte e o circo para a educação. Fizemos de forma participativa, como construção multilateral do saber. Nosso apoio era a cultura, a realidade e a linguagem mocoronga", lembra.
Ele também levou o cloro, que trata a água e combate a diarréia e a mortalidade infantil. "É tão fácil e barato que não entendo porque o governo não faz. Dá raiva. A cada novo ministro da Saúde eu vou lá e digo: 'cloro'. Não adianta."
No projeto de Eugenio, que reduziu a mortalidade infantil de Santarém, só ganha cloro que aprende gestão comunitária, quem brinca de circo, quem faz o próprio jornal, a própria rádio e as próprias atrações de TV. Nada é de graça. Saúde só com alegria.

"Eu sempre quis enfrentar o mundo"
DO ENVIADO ESPECIAL AO PARÁ
Na beira do igarapé, que ajudou a preservar, Eugenio deu uma entrevista à Folha, embora há dois dias estivesse respondendo a perguntas. Leia trechos do seu depoimento, feito de noite, no escuro, na floresta amazônica. "Tá ouvindo o barulho? Fecha os olhos e deixa ele vibrar. Esse barulho que trem dentro de você é natureza", afirma.
Folha - Que médico você é?
Eugenio Scannavino - Sou médico de pobre. Eu me entendo é com os pobres. Eles me vêem e sabem que os enxergo. Atendi tanto em hospitais de excelência quanto de subúrbio. O típico paciente vai lá para receber atenção. A medicina é um exercício de compaixão e afeto. Aqui [na Amazônia], pego uma mulher com dor que diz dói tudo, e receio que ela prepare uma apresentação musical. No circo, ela vai cantar e dançar. Dou também um remedinho. Ela canta, dança e acabou a dor dela.
Folha - Como descobriu que você era diferente?
Scannavino - Não sou diferente dos outros! Deus me livre de ser diferente., sou muito igual. Sou só mais um médico. Meus amigos [médicos] são mais capazes do que eu, porque não precisam dar compaixão numa situação de bonança e de paz, como faço".
Folha - Por que não há um monte deles aqui contigo?
Scannavino - O mundo gera insegurança nas pessoas. Mas eu sempre quis enfrentar o mundo. Medicina é só um instrumento.

Eugenio Scannavino Netto
1o. lugar
Quem é ele
46 anos, paulista, solteiro, uma filha
Médico infectologista
Lidera o projeto Saúde e Alegria
Iniciado em 1985, é uma organização sem fins lucrativos que estimula a cidadania de mais de 140 comunidades extrativistas da Amazônia paraense
Atua nos municípios de Santarém, Belterra e Aveiro (PA), com desenvolvimento comunitário integrado com programas de saúde, ambiente, educação, cultura e comunicação popular
São 40 funcionários, cerca de 120 voluntários e 1.000 agentes multiplicadores
Seu orçamento em 2005 é de R$ 2,5 milhões (cooperação internacional e investimentos diretos via BNDES)
Média de 30 mil beneficiários diretos por ano

Viviane Senna
Entidade que nasceu em 1994 pelas mãos da irmã do piloto Ayrton Senna desenvolve, aplica e multiplica tecnologias sociais que ensinam a transformar sonhos em realidade
Ao lado da fama, psicóloga estimula potencial do país
DA REPORTAGEM LOCAL
"Você é famosa?", pergunta uma criança. "Não, meu irmão é que é", responde Viviane Senna, 48, psicóloga e empreendedora.
Não é verdade. As pessoas falam dela. Falam muito, mas não a conhecem. Só o que se sabe de Viviane é que ela tem dinheiro, que é irmã de Ayrton e que não passa seus dias entregue a futilidades. Mas o que exatamente faz essa mulher ninguém sabe dizer.
É fácil falar que ela faz porque é rica. Muitos têm dinheiro. É óbvio dizer que para ela tudo é mais simples, já que o sobrenome Senna é uma engenhosa chave mestra. É verdade, mas de nada vale um sobrenome sem um sonho.
O sonho é o que Ayrton lhe assoprou dois meses antes de morrer, mas que já era dela. É também uma angústia forte, intensa, que vem da certeza de que é possível mudar. No país, Viviane enxerga o potencial que vê nas crianças.
"Com tudo o que o país tem e é, é inaceitável que não possa dar certo. Temos 500 anos não dando certo. Isso é responsabilidade nossa. Fomos uma elite irresponsável, focada nos próprios interesses, de costas para o Brasil, voltada para a Europa e para os EUA."
O desavisado pode se surpreender: Viviane Senna não é uma dondoca. "Nunca tive tempo para ser", diz. "Ter dinheiro não torna a coisa fácil, não significa nada. O governo, por exemplo, tem muito dinheiro. O problema é o que se faz com isso. Eu poderia sentar dez minutos por semana e assinar um monte de cheques, distribui-los por instituições. Depois, iria passear no shopping, esquiar nos Alpes. Dez minutos. Mas não acredito que isso ajude."
Os gestos delicados e os olhos expressivos (marejados quando falam de sonhos) revelam uma firmeza impressionante. Tudo em Viviane é refletido, é pensado, mas não é por falta de espontaneidade. Há nela uma necessidade de tomar as rédeas de tudo _pelo menos, do que é possível tomar.
O acidente que matou Ayrton em 1994 mudou a vida da psicóloga introvertida. Tirou-a de seu cantinho seguro, no qual se refugiava desde os tempos de pequena, do colégio de freiras em São Paulo. Naquele mesmo ano, fundou o Instituto Ayrton Senna.
Dois anos depois, ficou viúva. Mãe de três filhos, manteve o ritmo alucinante de trabalho que a faz se esquecer de si mesma. A tarefa que ela própria se impôs é árdua: é de atacado, não de varejo.
O instituto é como Viviane. Só o que se sabe dele é que beneficia muitas crianças e adolescentes. O que ele faz de fato ninguém sabe.
A entidade fabrica tecnologias sociais, estratégias para desenvolver o potencial das pessoas. O esporte, a arte e a informática são instrumentos para o mesmo fim: ensinar a sonhar, e a fazer os sonhos se tornarem realidade.
As tecnologias desenvolvem competências pessoais (ter projeto de vida, auto-estima), sociais (aprender a ouvir o outro, respeitar limites, regras e diferenças), cognitivas (ler, fazer cálculo, transformar informações em conhecimento) e produtivas (saber gerenciar, planejar, organizar-se para o mundo do trabalho).
"O Brasil jamais vai esquecer o Ayrton Senna. E dela [Viviane] vai ser difícil eu me esquecer", diz Thiago Britto, 15, sobre uma mulher que ele mal conhece, que só viu uma vez. A verdade é que ele sabe o que ela faz. E é só essa fama que interessa a Viviane. (BL)
2o lugar
Quem é ela
48 anos, paulista, viúva, três filhos
Psicóloga especializada na área junquiana
Lidera o Instituto Ayrton Senna, cuja meta é melhorar o rendimento escolar
Criado em 1994, é uma organização sem fins lucrativos mantida pelos royalties dos contratos de imagem do piloto Ayrton Senna, da marca Senna e do personagem Senninha
Atua em todo o país, São 80 funcionários
Seu orçamento em 2005 é de cerca de R$ 20 milhões
Média de 482 mil beneficiários diretos por ano

Teresa Costa D'Amaral
Cercada de poesia, superintendente do IBDD, ntidade que acelera a inclusão de pessoas com deficiência, resgata histórias próprias de força e delicadeza
Raciocínio 'deficiente' cria ONG que defende direitos
DO ENVIADO ESPECIAL AO RIO
"Teresa pensa como deficiente", diz o auxiliar administrativo Fernando Lima, 39, sobre a mulher que, segundo ele, não mudou sua vida, mas criou chances para que ele mesmo fizesse isso.
Pensar como deficiente é o melhor elogio que Teresa Costa dAmaral, 56, pode receber. É com esse talento que ela conquista admiradores, derruba paredes e debruça a alma sobre o IBDD (Instituto Brasileiro de Defesa dos Direitos da Pessoa Portadora de Deficiência), com sede no Catete, no Rio.
O nome pomposo do instituto não faz jus à simplicidade de quem o reconstrói todos os dias. E ela sabe que o IBDD é cantiga incompleta, apesar das realizações.
A principal delas é não sentir pena de quem se vê deficiente. As outras se distribuem em trabalho, esporte e direito. Cursos de profissionalização e um serviço de recolocação garantem espaço no mercado de trabalho. O esporte dá auto-estima e treina também atletas: são oito medalhas paraolímpicas conquistadas. E há advogados para cobrar na Justiça os direitos negados na prática.
No meio do dia, um problema. A sede do IBDD, dois andares, não tem saída de emergência. Como evacuar um local com várias pessoas com dificuldade de locomoção, se houver incêndio?
Há uma parede que dá para a garagem, mas o condomínio é contra a abertura. Para ela, parece simples. "Vamos abrir a porta. Que venham fechar depois", diz.
Num quadro de cortiça, um poema do marido, Márcio dAmaral, que trabalha com ela: "Nunca morrem os sonhos. Acompanham as pessoas predestinadas". No banheiro, outro texto. "Mantenha arrumado, mesmo que tenham deixado uma bagunça", diz o aviso na parede, a mesma que Teresa pretende quebrar.
Vida
No dia seguinte à entrevista que Teresa deu à Folha, sua mãe, Nazareth Costa, morreu. Finalista do prêmio, Teresa posou para fotos no sétimo dia, antes da missa. Não reclamou. Não esmoreceu.
Por trás das lentes, uma mulher cheia de paciência e doçura (mas sem melaço). Que mais poderia dar uma filha de "anjos na terra" como o poeta, jornalista e imortal Odylo Costa, filho, com vírgula (morto em 1979), e Nazareth, pintora de anjos, crianças e sonhos?
Aurora, irmã de Teresa, nasceu deficiente. Aos 12, morreu, depois de ensinar muito e aprender pouco _nunca falou, só sabia sorrir, mas nunca foi escondida pela família. Seu irmão mais velho tinha 18 anos quando foi morto por um menino de rua. O pai de Teresa não só se envolveu com a questão do "menor" como recuperou o rapaz que matou seu filho.
Em 81, nascia Felipe, sobrinho de Teresa. Olho puxado, cabelo liso, síndrome de Down. Era especial e único como toda criança. E ela mesma, Teresa, viu-se grávida e com rubéola. Certa de que teria um filho deficiente, fez um aborto. São resgates duros, mas que ela conta como notícias de amor.
Do casamento que gerou Teresa foram padrinhos três poetas: Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira e Ribeiro Couto. E é com poesia que, como ocorreu com o pai, o irmão, Aurora e Felipe, "bichos no céu", Nazareth será transformada em norte _pelas mãos de Teresa e por sua reconstrução diária de si mesma. Com toda a força da delicadeza. (BL)
3o lugar
Quem é ela
56 anos, piauiense, casada, uma filha
Historiadora com mestrado em comunicação social
Lidera o IBDD (Instituto Brasileiro de Defesa dos Direitos da Pessoa Portadora de Deficiência)
Fundado em 1990, é uma organização sém fins lucrativos
Atua no Rio de Janeiro, lidando com defesa de direitos e inclusão de deficientes
São 226 funcionários e quatro voluntários
Seu orçamento em 2005 é de R$ 5,7 milhões (serviços prestados e contribuições de empresas)
Média de 58 mil beneficiários diretos porano

João Carlos Leite
Sem banco, município perdia renda e população quando empreendedor fundou cooperativa de crédito e mudou isso; hoje, PIB local cresce 8,74% ao ano
Eterno inconformado, agrônomo 'salvou' cidade
José Augusto Amorim
ENVIADO ESPECIAL A SÃO ROQUE DE MINAS
Um estudo aponta que o rio São Francisco nasce em Medeiros, não em São Roque de Minas, como sempre se acreditou. Se for verdade, não será o primeiro golpe na auto-estima da cidade mineira de 6.000 habitantes, que só sobreviveu graças à ação de João Carlos Leite, 40.
A tiros, fazendeiros foram expulsos de lá em 1972 para a construção do parque nacional da serra da Canastra. Em 1991, o Banco Central liquidou a Minas Caixa, e o local ficou sem banco, financeiramente dependente da vizinha Piumhi. A cidade teve decréscimo populacional dos anos 60 aos 90.
Dono de loja de insumos agrícolas, João sentia a fuga no bolso. Formou um grupo para pedir ajuda ao prefeito e convencer algum banco a montar um posto. Ouviu "não" até do Banco do Brasil.
"Ninguém quis [vir], e isso doía." Corajoso, descobriu uma solução caseira: "Fomos ver a cooperativa de crédito que ia abrir em Alpinópolis". A idéia foi "importada" e, em um mês, o mecânico da cidade virou o gerente, e o dono do boteco, o contador.
Só João tinha diploma universitário, e foi eleito presidente do Sicoob Saromcredi. Sicoob significa Sistema de Cooperativas de Crédito do Brasil, e Saromcredi mescla as letras da cidade com a palavra crédito. O objetivo era oferecer o mínimo do serviço bancário.
A prefeitura deu energia, telefone e um espaço de 24 m2. Hoje, a entidade constrói sua terceira sede, de 1.400 m2.
Ao assumir o papel de banco, João fez com que 800 aposentados ficassem e gastassem ali. "Quando receberam pela primeira vez, choraram, abraçaram, trouxeram frango e doces." Todos passaram a usar a cooperativa _continuam fiéis, mesmo com o Banco Postal e as funções bancárias da lotérica.
No primeiro ano, o caixa fechou com US$ 1.000. Em 14 anos, o patrimônio foi a R$ 4 milhões (US$ 1,7 milhão), e fechará 2005 com R$ 20 milhões em crédito concedido em várias áreas, além da rural. O PIB (Produto Interno Bruto) local cresceu 8,74% ao ano.
O crescimento populacional, em 2002, foi de 227 pessoas. É gente como Antônio Miranda, 42, que deixou a cidade e voltou em 2004 para gerenciar silos construídos com apoio da cooperativa. Outros dois silos serão feitos.
Graças a João, o café da região chegou à BM&F (Bolsa de Mercadorias & Futuros). Graças a ele, um provedor próprio de internet conectou 135 pessoas à rede e hoje vende conexão. Graças a suas idéias, nasceu o Instituto Ellos, que educa 120 filhos de cooperados. Anajá Arantes, 15, que estuda no Ellos, conta que é mais cobrada do que no colégio estadual. Ela não vai sair da cidade porque, em 2006, o Ellos terá o ensino médio.
A palavra para João é inconformismo. É esse o sentimento que o move e que não o deixa sossegar. Ele não sabe por quanto tempo será o cabeça do Saromcredi. O sucessor, ele já escolheu: Bruno Oliveira Faria, 25, que, tímido, diz que tem "muito a aprender".
Se depender da população, a transição demora. Andando na rua, um homem aborda João. Diz que o prefeito não deu ouvidos ao pedido de asfaltar a rua. "Dê uma força para nós", pede o sujeito. O carisma de João é grande, mas ele não quer saber de carreira política. "E deixar de administrar dinheiro para administrar dívida?"

4o lugar
Quem é ele
40 anos, mineiro, casado, dois filhos
Agrônomo Lidera o Sicoob Saromcredi
Fundada em 1991, a cooperativa oferece crédito em vários setores, como a cafeicultura e o milho
Na área financeira, atua em oito cidades do sudoeste de Minas Gerais: Cássia, Delfinópolis, Itaú de Minas, Medeiros, Pratinha, São João Batista do Glória, São Roque de Minas e Vargem Bonita (MG)
São 36 funcionários e quatro estagiários
Seu orçamento em 2005 é de R$ 20 milhões (em operações de crédito)
Média de 30 mil beneficiários diretos por ano

Elisabeth Vargas
Exilada na ditadura militar, capitã da Universidade Solidária nunca conseguiu ser 'cidadã comum'; sua ação já rendeu projetos em mil comunidades brasileiras
Desafiadora, socióloga mobiliza 20 mil pessoas
Denise Ribeiro
Colabiraca PARA A FOLHA
Fã de futebol, apaixonada por sapatos diferentes e eternamente ligada em alta voltagem. Fala ágil e gestos contundentes, é dona de um sorriso que desmonta o interlocutor, que ela encara sempre com meiguice e determinação.
Assim é a socióloga Elisabeth Vargas, 57, a força motriz que imprime ritmo e dinâmica aos projetos da UniSol _a Universidade Solidária que ajudou a fundar há dez anos e que dirige até hoje.
Beth, como é conhecida, coordena a arrecadação de recursos e a articulação das parcerias entre universidades (públicas e privadas), empresas, organizações e prefeituras, peças fundamentais para que o trabalho aconteça.
A clareza com que vislumbra a magnitude dos projetos e a defesa ardorosa que faz de suas opiniões (nem sempre palatáveis aos patrocinadores) contaminam todos os que descobrem a UniSol.
"Sei que sou meio briguenta e centralizadora, mas não tenho medo nem de cara feia nem de poderoso. Sou muito exigente comigo mesma e tenho um lado prático, de tomar atitudes, que traz segurança à equipe", afirma. O comando funciona. Sob a coordenação dela, a UniSol tornou-se a única organização brasileira capaz de mobilizar 20 mil estudantes voluntários e 200 universidades públicas e privadas para uma mesma causa: implementar projetos sociais em cerca de mil comunidades brasileiras.
Exílio
Natural de Roca Sales (RS), filha única de uma professora compenetrada e de um mecânico de idéias libertárias, adorava a companhia do pai. "Ele me levava ao estádio para ver futebol e me incutia ideais políticos. Foi pracinha na Segunda Guerra e sempre discutia temas democráticos em casa. Eu tinha 13 anos quando Jânio Quadros renunciou, e meu pai me carregou com ele para Porto Alegre. Foi se alistar no Grupo dos 11, formado pelo Leonel Brizola para se opor aos militares. Durante a viagem, dizia: 'Você vai ser enfermeira da guerra civil'."
Aos 16, ela já havia lido o "Manifesto Comunista" e livros de Karl Marx. A guerra civil não veio, mas o golpe que levou os militares ao poder em 1964 mexeu com os brios da moça. Ela, que sempre sonhara com um mundo mais igualitário, já estava cursando História na Universidade Federal do Rio Grande do Sul quando foi fisgada pela militância do Partido Operário Comunista. "Passava mais tempo no centro acadêmico do que nas aulas", conta.
Assumir posições de confronto aos militares era pôr a vida em risco. "Meu apartamento foi invadido, chegaram a torturar uma amiga, que nunca participou de nada, para saber do meu paradeiro. Eu e meu namorado [o economista Jorge Mattoso, atual presidente da Caixa Econômica Federal] tivemos de mudar para São Paulo."
Quando a coisa apertou, os dois fugiram. Ela morou no Chile, na Suíça e na França. "Foi lá [em Paris] que comecei a me tornar feminista. Os companheiros comunistas admiravam a militância das mulheres, desde que ficassem longe de cargos importantes."
Foi lá que botou na cabeça que queria ser mãe. Tinha 30 anos quando nasceu Francisco e, pela primeira vez, permitiu-se pensar em si mesma. "Percebi que nunca tinha vivido como cidadã comum." Em 1978, voltou ao Brasil.
"Jamais consegui pensar minha existência desligada de uma ação social", diz. Amiga da ex-primeira-dama Ruth Cardoso, acabou trabalhando no comitê de criação do Comunidade Solidária, que seria o embrião da UniSol.
5o. lugar
Quem é ela
57 anos, gaúcha, solteira, dois filhos
Socióloga
Lidera a UniSol (Universidade Solidária)
Fundada em 1995, a entidade é uma Oscip (Organização da Sociedade Civil de Interesse Público) que capta recursos dos setores público e privado e reúne universidades, empresas e Estado para que atuem em projetos de voluntariado e trabalho comunitário
São 14 funcionários, 20 voluntários
e outros 20 mil professores e universitários voluntários nos projetos
Seu orçamento em 2005 é de R$ 2,9 milhões, captados do poder público, de empresas parceiras e de um fundo próprio de investimentos
Média de 200 mil beneficiários diretos por ano

Sonia Maria da Silva
Do poder de Brasília, empreendedora recebe o que vai para a lixeira; com essa matéria-prima e com inconformismo, dá fonte de renda e orgulho a 200 famílias
Líder de cooperativa faz lixo renovar cidadania
Marlene Peret
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
Sobrenome: Silva. Cargo: presidente. Residência: Distrito Federal. Escolaridade: ensino fundamental. Compromisso: social.
Coincidências à parte, esse é o resumo da biografia de Sônia Maria da Silva, 43, líder da cooperativa 100 Dimensão, localizada no coração do país. O que liga Sônia ao poder de Brasília é o lixo. De lá, ela tira a matéria-prima que, transformada em renda, alimenta 200 famílias de Riacho Fundo, região pobre do Plano Piloto.
Mulher, negra e pobre, sabia que a vida não seria fácil. Para atingir objetivos, pôs em prática todas as suas características. Da mãe, herdou o pragmatismo; do pai, a solidariedade; do irmão mais velho, o patriotismo.
Filha de mãe solteira e irmã de outros seis, de pais diferentes, a líder da 100 Dimensão foi criada dentro de rígidos padrões. A mãe, Odete Maria José da Silva, auxiliar de enfermagem, trabalhou até descobrir um câncer. Fria e severa, quase não dava carinho aos filhos. Sônia se lembra bem disso.
"Toda vez que caía, chorava, nem tanto pela dor, mas pela busca do carinho. A resposta era sem pre a mesma: Seca as lágrimas, levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima." Sem mágoas, diz acreditar que a mãe era sábia e só quis prepará-la para a dureza da vida.
O pai, Arlindo José dos Santos, Sônia só conheceu aos 12 anos, sem a mãe saber. A revelação foi feita por uma amiga da família. Assim que se apresentou, foi acolhida por ele, pela madrasta e por 17 irmãos. Generoso, criava mais cinco órfãos. No pai, ela entendeu a origem de seu espírito solidário.
Casada e mãe de dois filhos, o segundo com síndrome de Down, viu a vida virar de ponta-cabeça. Para cuidar do filho, abandonou o trabalho como auxiliar de enfermagem, mesma função da mãe. A renda do marido não conseguiu segurar as despesas: venderam tudo e foram morar em uma barraca na periferia. Inconformada, reunia-se com outras famílias do assentamento para debater como gerar renda. Até que, um dia, por acaso, ouviu na TV: "O lixo é a solução do mundo". Esses segundos mudaram sua vida.
Transformando lixo em artigos de moda, de papelaria e em móveis, a 100 Dimensão atendia 20 famílias em 2000. Hoje, são 200. A renda mensal de cada um gira em torno de R$ 400. O que realça seu valor social é o centro comunitário, com assistência odontológica, capacitação profissional, educação e atividades artísticas.
Eleita pela Caixa Econômica Federal uma das dez em Melhores Práticas em 2003/2004, a 100 Dimensão foi o tema vencedor do Prêmio Vladimir Herzog 2005 na categoria documentário.
Exemplo vivo do impacto social da cooperativa, Angela, 20, travesti que deixou a prostituição, tornou-se a mais célebre representante dos gays de Riacho Fundo. Hoje, as bolsas que desenvolve a partir de lacres de latinhas de refrigerante ou de cerveja são exportadas para os EUA.
Embora singular, Sônia conjuga suas ações sempre no plural, usando o "nós". Nas reuniões que preside, nunca senta-se na ponta da mesa. Expressões como "à frente de" são imediatamente trocadas para "ao lado de".
A empreendedora separa a cooperativa da vida pessoal. Para a organização, a meta é construir uma megausina de plásticos, que reunirá outras 13 cooperativas locais. Na vida, dois sonhos: casar-se de véu e grinalda e reencontrar o irmão mais velho, Antonio Francisco da Silva, que saiu de casa aos 20, após brigar com a mãe. A última carta trazia no remetente a cidade de Guarulhos (SP).
6o lugar
Quem é ela
43 anos, brasiliense, separada, dois filhos
Só fez o ensino fundamental
Lidera a 100 Dimensão
Fundada em 2000, a cooperativa (com fins lucrativos) transforma lixo em artigos de arte, moda, papelaria e utensílios domésticos, gerando renda para 200 famílias. Mantém centro comunitário modelo que inclui arte e capacitação profissional
Atua no Distrito Federal com preservação ambiental, desenvolvimento comunitário e emprego
São 200 funcionários e 50 voluntários
Seu orçamento em 2005 é de cerca de R$1 milhão, captado pela venda de produtos feitos pelos associados
Média de 700 beneficiários diretos por ano

Eliana Tiezzi Nascimento
Descoberta de que o papel reciclado ajudava pacientes com transtornos psíquicos graves a desengavetar planos pessoais e voltar à vida em sociedade deu origem a projeto social
Acaso ensina psicóloga a reciclar papel e pessoas
Bruna Martins Fontes
EDITORA-ASSISTENTE DE CONSTRUÇÃO E IMÓVEIS
Uma experiência de vida traumática costuma ser a inspiração para empreendedores criarem um projeto social. A psicóloga e psicanalista Eliana Tiezzi Nascimento, 44, não passou pelo batismo de fogo. No desenrolar de sua trajetória profissional, partiu da observação apurada para mudar a vida das pessoas que encontrou.
Espinhoso foi convencer os outros de que sua idéia daria certo. "Disseram que eu estava ficando louca. Parei de contar para colegas o que estava fazendo, porque recebi muitas críticas", lembra Eliana, referindo-se ao projeto Papel de Gente, que hoje reúne 25 pacientes psiquiátricos que têm transtornos psíquicos (como neurose grave e psicose).
Em uma casa na Aclimação (zona oeste de São Paulo), eles reciclam papel para fazer cadernos, cartões, agendas e outros brindes vendidos a empresas parceiras.
Mas "o papel reciclado", conta, "é só um meio". O fim é preparar as pessoas para voltar ao mercado de trabalho e à vida social e incentivá-las a traçar projetos pessoais.
Tudo começou com um pedido de Natal. Em 1994, a psicóloga trabalhava em uma clínica psiquiátrica e passava por uma "crise dos sete anos" no trabalho. "Os pacientes vinham em crise, melhoravam e saíam. Mas alguns voltavam e iam perdendo capacidade cognitiva e concentração. Não via sentido no que eu fazia."
Mas o pedido natalino partiu da direção da clínica: ensinar os pacientes a fazer cartões de Natal. Como, por segurança, era proibido usar tesoura, estilete e até pincel, entrou em cena o papel reciclado, que a psicóloga conheceu ao ver um programa infantil com a filha. "A direção topou, e os pacientes se envolveram muito."
Foi então que Eliana percebeu o papel do reciclado. "Um paciente me disse: Esse papel é horroroso, isso é um lixo. Muitos falaram assim, e eu comecei a perceber que as falas mostravam que o papel era um bom intermediário para falar sobre as questões internas."
Estimulados a transformar o "papel feio" em peças bonitas, os pacientes se empolgaram e começaram a vender o que produziam. "Sentiram que o que faziam era valorizado pelos outros, situação à qual não estavam acostumados, pois uma produção psicótica não faz sentido para a sociedade."
Reciclagem interna
Eliana também notou que a venda dos artefatos reacendeu desejos que há muito haviam sido abafados pelos efeitos do sofrimento psíquico _como comprar uma roupa nova ou convidar uma "paquera" para sair.
Juntando todos os ingredientes, ela formatou um projeto social. Mas, ao colocar os preceitos no papel, sofreu bastante resistência de seus pares. Especialmente porque achava que não era arriscado dar tesouras aos pacientes. "Para o sistema, o paciente tem sempre de viver em contenção", avalia.
Hoje, ela recebe pacientes encaminhados por serviços de saúde, a maior parte da rede pública, para a etapa de sociabilização eles continuam fazendo tratamento psiquiátrico. Quando o projeto pessoal deles está pronto e eles se sentem preparados para lidar com os obstáculos, é hora de deixar a Papel de Gente.
Como eles, Eliana também tem seus desejos: fazer de sua iniciativa uma franquia social, cotas nas empresas para pacientes psiquiátricos e uma espécie de Bolsa Trabalho para eles. "Esse contato muda o imaginário coletivo. São pessoas que têm uma doença, mas que também têm outros interesses. Independentemente da patologia, a vida não pode parar."

7o. lugar
Quem é ela
44 anos, paulista, solteira, uma filha
Psicóloga e psicanalista
Lidera a Papel de Gente
Criada em 1994, a entidade é uma Oscip (Organização da Sociedade Civil de Interesse Público) em que a confecção de produtos com papel reciclado é um meio de reinserção social de pessoas com transtornos psíquicos, como neurose grave e psicose
Atua em São Paulo, na área de saúde mental
São cinco funcionários e 20 voluntários
Seu orçamento em 2005 é de R$ 1,5 milhão (venda de produtos e patrocínio)
Média de 91 beneficiários diretos por ano

Karen Warsman
Arquivo que reúne e conta histórias de pessoas comuns nasceu do prazer quase proibido de ouvir a conversa alheia e do real interesse pelo outro
Museu de colecionar gente é obra da vida de historiadora
Andressa Ronhni
DA REPORTAGEM LOCAL
Ela é difícil de rotular. E sabe disso. Quando Jonas, 5, traz à tona sua curiosidade infantil e insiste em entender qual é a profissão da mãe, ela responde: "Eu gosto de contar a história das pessoas".
Não satisfeito, ele retruca: "Você deveria ser advogada", uma atividade, ao que parece, já domada pelo imaginário dos pequenos.
Karen Worcman, 43, está acos tumada às perguntas. É uma historiadora que escolheu a tan gente entre a docência e o concurso público e desenvolveu um projeto que desafia rótulos. Por isso seus interlocutores sempre a observam, em princípio, com olhos questionadores.
"O museu é algo difícil de encaixar. Minha profissão, também. Já aprendi a conviver com isso", pondera. "São conceitos difíceis de serem explicados, acho que é porque são inovadores mesmo."
Bota inovador nisso. A idéia que Karen formatou é a de um museu sem paredes, mas com endereço fixo, onde as pessoas não vão para ver, mas para serem vistas. Além disso, ela quis dar voz justamente àqueles que não são ouvidos, àqueles quaisquer, que têm histórias boas para contar justamente por serem comuns. E criou um museu de colecionar gente.
No acervo virtual (www.museudapessoa.net) há depoi mentos registrados em áudio, vídeo e texto. A ele podem ter acesso tanto os que pretendem contar como os que querem ouvir histórias de vida. O museu conta com 18 programas de formação, 54 projetos de memória institucional, além de 4.600 depoimentos cadastrados.
Influências
A idéia nasceu de um estalo. Eram meados da década de 1980; o cenário, os corredores da Universidade Federal Fluminense, no Rio de Janeiro, onde Karen buscava ferramentas para entender como a história se formava. "A forma como encaramos a realidade depende da história de cada um. Eu tenho, desde criança, um interesse grande pelo outro."
Nascida em uma típica família judaica, Karen teve na figura do pai, um imigrante polonês fugido da guerra, o exemplo maior de vida e dedicação. "Ele era uma pessoa altamente empreendedora e me ensinou que as coisas deveriam ser construídas, criadas."
As histórias de família, que povoaram toda a sua formação, foram decisivas para que a historiadora enxergasse o mundo a seu modo e se interessasse pelo que os outros tinham para contar.
Foi durante o ensino médio, na efervescência dos movimentos estudantis contra a ditadura, que Karen se engajou de vez no compromisso de olhar o outro.
O tripé de influências foi completado por uma característica determinante: a angústia de descobrir seu papel no mundo a fez recusar os modelos tradicionais. Conceber um projeto inovador foi como acalmar muitas perguntas que lhe tiravam o sono.
As mãos ágeis confessam a inquietação da mulher que as carrega. É difícil não se sentir logo íntimo, puxar um banco e estender a conversa. Karen diz: "É dom, o que se há de fazer?", e logo solta um segredo que a revela por inteiro: "Eu adorava ouvir a conversa dos outros quando era pequena".
Aos poucos, tanto Jonas como o mundo vão entendendo o que essa mulher pretende _e não é pouco. "Sou ambiciosa, completamente abusada", diz, mais próxima da servidão que da soberba.
E resume a si mesma: "Eu sou movida a muitas perguntas e me fascino com o que os outros me contam. Ouvir histórias é como colecionar outras vidas".
8o lugar
Quem é ela
43 anos, carioca, casada, dois filhos
Historiadora com pós-graduação em lingüística
Lidera o Instituto Museu da Pessoa.net
Fundado em 1992, o museu toledona histórias de vida de pessoas comuns e prega que escutar o outro é um instrumento para a democratização da memória social
Tem sede física em São Paulo, mas, por ser virtual, não tem limitação geográfica. A iniciativa foi replicada no Canadá, nos EUA e em Portugal
Lida com memória comunitária
São 19 funcionários e um voluntário
Seu orçamento em 2005 é de R$ 2,3 milhões (prestação de serviços, parcerias e patrocínios)
Média de 444 beneficiários diretos por ano

FSP, 06/12/2005, Especial, p. 1-14

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