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46 milhões na seca

O Globo, País, p. 3
25 de Jan de 2015

46 milhões na seca
Estiagem aguda ameaça fornecimento de água e luz no Sudeste e Nordeste e afeta economia

TIAGO DANTAS
tiago.dantas@sp.oglobo.com.br

A seca que castiga o Sudeste e o Nordeste já prejudica a vida de 45,8 milhões de pessoas e leva as três maiores regiões metropolitanas do país a conviver com o risco iminente de racionamento, relata TIAGO DANTAS. Há 936 municípios em estado de emergência devido à estiagem, que também pode afetar a produção industrial e a geração de energia. -SÃO PAULO - Um quinto da população brasileira já está sofrendo os efeitos da seca neste início de ano em todo o país. Levantamento feito pelo GLOBO com base em informações de comitês de bacias hidrográficas e governos estaduais mostra que ao menos 45,8 milhões de pessoas vivem em regiões em que os níveis dos reservatórios estão abaixo do normal e a quantidade de chuvas é menor que a média histórica. A falta d'água já tem causado, em estados do Sudeste e do Nordeste do país, racionamento em áreas urbanas, redução na irrigação de propriedades rurais e cancelamento da navegação. Caso se prolongue, a estiagem ameaça a geração de energia nas hidrelétricas e a produção industrial, segundo especialistas.
Ao longo de 2014, a seca levou 1.265 municípios de 13 estados do Nordeste e do Sudeste a decretarem situação de emergência, de acordo com o Ministério da Integração Nacional -hoje, 936 cidades estão nessa situação. O procedimento, geralmente adotado por cidades pequenas e médias, autoriza os gestores públicos a pedir recursos federais para ações de socorro e serviços emergenciais. O número de municípios que sofrem impactos causados pela seca, porém, pode ser maior, já que nem todos recorrem ao expediente. No estado de São Paulo, onde ao menos 64 cidades estão sofrendo problemas relacionados à estiagem, só três tiveram o pedido de situação de emergência reconhecido pela Secretaria Nacional de Proteção e Defesa Civil.
CEARÁ: SECA ATINGE 5,5 MILHÕES
No Ceará, onde a seca afeta 5,5 milhões de pessoas, 176 das 184 cidades do estado decretaram emergência. Os estados do Nordeste convivem com os efeitos da crise desde 2012. O Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco, estima que 19 milhões de pessoas estejam sendo afetadas na região abastecida pelo rio em Pernambuco, Bahia, Sergipe, Alagoas e norte de Minas Gerais. O reservatório de Três Marias terminou a semana com 10,23% da sua capacidade, o que levou o comitê a questionar as regras para geração de energia na barragem. Além disso, a navegação e a pesca em alguns pontos do Velho Chico foram comprometidas.
No Sudeste, a gravidade da situação ficou mais em evidência neste mês, já que o início do verão não trouxe as chuvas necessárias para recuperar os reservatórios. Como resultado, as três maiores regiões metropolitanas do país convivem com a possibilidade iminente de desabastecimento. Embora o governo do Rio negue o risco de racionamento, o volume morto do reservatório Paraibuna, o maior da bacia do Paraíba do Sul, que abastece a Região Metropolitana, está sendo utilizado pela 1ª vez desde sua criação, nos anos 1970. O sistema Paraopeba, que abastece a Grande Belo Horizonte, pode secar em três meses, segundo a Companhia de Saneamento do Estado de Minas Gerais, afetando cerca de 2,5 milhões de pessoas.
Na divisa com o Espírito Santo, o problema é no Rio Doce. Em Governador Valadares a vazão do rio está dez vezes mais baixa do que o esperado para esta época do ano - caiu dos habituais 1.090 metros cúbicos por segundo para 110. Na cidade capixaba de Colatina, o mesmo rio atingiu, na segunda-feira, o nível de nove centímetros, enquanto costuma correr com uma altura de pelo menos dois metros, segundo o Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio Doce, onde vivem 3,5 milhões de pessoas.
Em São Paulo, o sistema Cantareira, também maior do estado, pode ficar sem água em julho, caso o ritmo das chuvas e a quantidade de água retirada para abastecimento continuem os mesmos, de acordo com o estudo feito pelo Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden). Somando-se os paulistas abastecidos pelo Cantareira e pelo Alto Tietê, há 16,5 milhões de pessoas atingidas pela crise hídrica no estado.
Para enfrentar a crise, os governos devem mostrar a gravidade da situação com a maior transparência possível para a população, além de investir na redução de consumo e do desperdício e em campanhas educativas, segundo o coordenador do grupo de estudos de recursos hídricos da Academia Brasileira de Ciências José Galizia Tundisi. Professor da Universidade de São Carlos, Tundisi diz que a falta de água pode gerar uma espiral de consequências que afeta até a economia:
- A primeira coisa que a gente pensa quando fala de crise hídrica é o consumo humano. Mas a falta d'água não afeta só abastecimento, mas também a economia, a produção de energia, a produção de alimentos, as indústrias que utilizam a água como insumo. Até a saúde humana é afetada numa situação como essa. A qualidade da água se altera consideravelmente em níveis mais baixos - afirma o professor.
O meteorologista Luiz Carlos Baldicero Molion, pesquisador da Universidade Federal de Alagoas, afirma que deve levar mais seis anos para que o Sudeste volte a ter um regime de chuvas acima das médias históricas. Ele chegou à conclusão após analisar a série de chuvas em São Paulo desde 1888. Segundo ele, o estado teve ao menos outros três ciclos de secas de oito a nove anos ao longo do último século:
- Fazendo análise estatística, notamos que o Sudeste teve períodos de seca severa no início da década de 1930, depois de 1959 e em 1976. Como percebemos que a chuva tem ficado abaixo da média desde 2012, concluímos que é mais um período com poucas chuvas de longo prazo, que deve durar até 2020 ou 2021.

Memória da escassez
DE DIA FALTA ÁGUA...'

No último dia 14, no terceiro dia no cargo, o novo presidente da Sabesp, Jerson Kelman, chegou a cogitar rodízio no abastecimento de água em São Paulo. Quatorze anos atrás, Kelman já precisava lidar com o racionamento de água: presidente da Agência Nacional de Águas (ANA) num período em que o nível dos reservatórios das regiões Sudeste, Centro-Oeste e Nordeste chegou a 32%, ele declarou, em outubro de 2002, que, se não chovesse em duas semanas no Sudeste, 47 cidades teriam racionamento de água. Voltando mais no tempo, há 50 anos, em 65, SP terminava de atravessar aquela que, até então, fora a pior estiagem nos últimos 74 anos, e que havia feito secar o reservatório Billings - mostrando que são antigos e estruturais os problemas do país no planejamento do setor hídrico.
Em 63, o Billings chegara a 4,25% da capacidade: foi reduzido, segundo noticiado na época, a um "estreito córrego". Em janeiro de 64, iria a 1,21% da capacidade.
No Rio, as crises de abastecimento começaram nos anos 1920; em 37, houve o que foi chamado de "crise de sede". A 1ª adutora do Guandu viria em 58. Naquela década, os episódios de falta d'água foram parar na marchinha "Vagalume": "Rio de Janeiro / Cidade que nos seduz/ De dia falta água / De noite falta luz".
Na década seguinte, em 64, o nível do reservatório de Lajes - que, então, fornecia 40% da água potável consumida na Guanabara - caiu para 386 metros, o que significava apenas um metro de água acima do fundo.
"Foram tantas as esperanças na nova adutora do Guandu, que agora, um mês depois de inaugurada a grande obra, a falta de água em numerosos pontos da cidade deixa a todos desolados", era uma das notícias de maio de 66 sobre o abastecimento no Rio. Em fevereiro daquele ano, o problema já tinha atingido até a cerveja: "Continua a falta de cerveja e refrigerantes em toda a cidade, motivada, segundo os fabricantes, pela carência absoluta da matéria-prima indispensável ao processamento: água", dizia o texto de outra notícia da época.
Chegaram os anos 2000, e o Rio continuou a sofrer com ameaças de desabastecimento. Em 2001, o Paraíba do Sul passou pela maior estiagem em 40 anos. Em 2002, o sistema Acari, que abastece a Baixada, operou com 50% da capacidade; também caiu o nível dos rios Macacu e Guapiaçu, que abastecem Niterói e São Gonçalo. Em 2003, o Paraíba foi ao nível mais baixo em 50 anos, e a distribuição de água foi "racionalizada".
Ano passado, com o agravamento da mais recente crise hídrica no Sudeste, o uso da água do Paraíba chegou a causar atritos entre os governos de Rio e SP. Em SP, a população passou a ouvir sobre rodízios de água, multas para consumos acima da média e bônus para quem economizasse. Em maio, começou a ser usado o volume morto do sistema Cantareira. Em julho, SP admitiu viver a pior crise de abastecimento de sua História.

Nove em cada dez municípios em estado de emergência estão no NE
Na região, 15,8 milhões sofrem com a estiagem; situação tende a se agravar

TIAGO DANTAS
tiago.dantas@ sp.oglobo.com.br

-SÃO PAULO- O Nordeste concentra nove em cada dez municípios do país que estão com decretos de situação de emergência em vigor atualmente, segundo a Secretaria Nacional de Proteção e Defesa Civil. Em toda a região, cerca de 15,8 milhões de pessoas sofrem com os efeitos da estiagem que, segundo meteorologistas, começou em 2012 e já no ano seguinte foi considerada a pior dos últimos 50 anos pela Organização Meteorológica Mundial.
A situação tende a se agravar nos próximos meses. Até abril, as chuvas na região devem ficar abaixo da média histórica, segundo relatório divulgado esta semana pelo Centro de Previsão do Tempo e Estudos Climáticos (CPTEC), do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Em maio, já deve ter início a estação seca, com reservatórios quase sem água.
No Ceará, 130 açudes do estado estão operando com menos de 10% da sua capacidade. No geral, o estado tem disponível 20% de toda a possibilidade de armazenamento, segundo a Companhia de Gestão dos Recursos Hídricos (Cogerh). Até agora, só oito cidades cearenses não decretaram situação de emergência.
O nível do açude que abastece as cidades de Acari e Currais Novos, no Rio Grande do Norte, está em 2%,e a previsão é que o reservatório seque em dois meses, segundo José Procópio de Lucena, presidente do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio Piancó- Piranhas-Açu. A bacia abastece 1,3 milhão de pessoas em 147 cidades do Rio Grande do Norte e da Paraíba.
- Os reservatórios de pequeno e médio porte já secaram todos. Os reservatórios maiores estão com 20%, quando eram para estar com 50% nessa época do ano - disse Procópio.
Segundo Procópio, cidades da bacia hidrográfica estão sendo abastecidas com caminhão-pipa, prefeituras estão estimulando a perfuração de poços artesianos e os agricultores são orientados a fazer irrigação à noite para evitar a perda da água por evaporação.
Em algumas das cerca de 500 cidades banhadas pelo rio São Francisco, a seca vem acompanhada de outros problemas, como agravamento da pobreza, desmatamento e erosão, segundo o presidente do comitê da bacia hidrográfica local, Anivaldo Miranda. Segundo ele, comunidades ribeirinhas são as que mais sofrem:
- Essa seca atual no Nordeste chegou ao terceiro ano consecutivo e até hoje o poder público não foi capaz de criar estratégias eficientes para combater esse problema. Parece que falar em racionamento é dizer um palavrão, mas não é. É uma chave de segurança.
Caso o nível das represas continue caindo, será preciso garantir o uso da água do São Francisco para consumo humano, diz Miranda:
- Hoje, já temos um conflito com geração de energia e há outro conflito em potencial com a agricultura de exportação.

Brasil desperdiça cerca de 37% da água tratada
Segundo o Ministério das Cidades, perdas são maiores no Amapá e em Roraima

-SÃO PAULO - O Brasil perde cerca de 37% da água tratada, segundo relatório feito com base em dados de 2013 do Sistema Nacional de Informações do Ministério das Cidades. O desperdício é causado por vazamentos nos canos de distribuição, defeitos na rede, fraudes e ligações clandestinas. O relatório também mostrou que o brasileiro gasta, em média, 166,3 litros de água por dia, acima do recomendado pela Organização Mundial da Saúde: 110 litros.

Os estados que mais desperdiçam água potável ficam na Região Norte: Amapá, com 76,5%, e Roraima, 59,7%. Estados do Nordeste, que são afetados pela seca, também aparecem na lista: Sergipe perde 59,3% e Rio Grande do Norte, 55,3%. As menores perdas em 2013 foram registradas em Goiás (28,8%) e no Distrito Federal (27,3%).

Em São Paulo, a Sabesp informou que seu índice de perda foi de 31,2% em 2013, menos que os 34,3% que aparecem no relatório do Ministério das Cidades. Segundo a companhia de saneamento paulista, a perda com vazamentos em 2014 foi de 19,5% do volume produzido. Outros 10,5% foram perdidos por fraudes. A Sabesp afirma investir R$ 1,45 bilhão no programa de redução de perdas desde 2009, o que fez o índice recuar 10 pontos. Outros R$ 3 bilhões ainda devem ser investidos.

O índice de perda no Brasil é considerado alto por especialistas em gestão de recursos hídricos. Na Inglaterra, a média é de 20% de perda nos canos. No Japão, a taxa é de 3%.

O Globo, 25/01/2015, País, p. 3

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