VOLTAR

3 milhões de toneladas de perigo

OESP, Vida, p. A22
31 de Out de 2004

3 milhões de toneladas de perigo
Em Itaguaí (RJ), terreno da Cia. Mercantil e Industrial Ingá abriga montes - e até uma bacia - de resíduos tóxicos nocivos à saúde

Karine Rodrigues

O terreno de 1 milhão de metros quadrados da Cia. Mercantil e Industrial Ingá, onde, até a década passada, produzia-se um zinco de alta pureza, dos mais disputados do mercado nacional, é hoje uma zona de perigo. Cercada e vigiada durante 24 horas, a área, situada em Itaguaí, no sul do Estado do Rio, está sob intervenção federal desde o ano passado. A medida foi tomada para isolar da população um legado nocivo ao meio ambiente e à saúde: uma bacia de 200 milhões de litros e mais 3 milhões de toneladas de resíduos, ambas contendo substâncias tóxicas como chumbo, cádmio, arsênio e zinco.
A solução para o passivo ambiental da empresa, que entrou com pedido de falência em 1998, deveria ter sido apresentada em setembro, segundo ordem da Justiça. Mas o grupo criado por determinação do governo federal para elaborar o projeto desrespeitou o prazo, adiando o fim de uma novela que se que se arrasta há mais de 15 anos, quando foi aberto contra a Ingá o primeiro inquérito por degradação do meio ambiente. O destino do resíduo é alvo de ação civil pública proposta pelos Ministérios Públicos Federal e Estadual, processo que tramita na 7.ª Vara Federal Criminal desde outubro do ano passado e tem como réus a União, o Estado do Rio e o município de Itaguaí.
Titular da 7.ª Vara, a juíza Salete Maccaloz decidiu pedir a intervenção da área ao constatar o furto e a comercialização de material contaminado. "Caminhões estavam entrando para retirar toneladas de rejeitos sólidos, vendidos pela massa falida para empresas que processavam o material e produziam adubo para ser usado em plantações de arroz. Não é apenas um crime de meio ambiente, mas de lesa-pátria", ressalta ela, que já foi diversas vezes conferir, in loco, a situação do passivo ambiental. Também por decisão da juíza, as três esferas governamentais foram obrigadas a arcar com os custos do trabalho de tratamento dos efluentes tóxicos e com a obra de reforço do dique de contenção da bacia de rejeitos.
Nomeado coordenador do projeto Ingá Emergência, iniciado por decisão da juíza para sanar os problemas mais urgentes do passivo ambiental, João Alfredo Medeiros conta que vários tipos de equipamentos foram retirados da área industrial da Ingá. "Não é possível quantificar o número de pessoas que podem ter ficado contaminadas ao manipular o material retirado daqui. Além disso, existe dentro da empresa uma quantidade de cádmio e arsênio sólido suficiente para matar mais de 10 mil pessoas. Sem falar nos outros tipos de substâncias tóxicas", detalha ele, durante visita à empresa, apontando para a montanha de resíduos a céu aberto contendo metal pesado.
As conseqüências do furto de material de uma área de risco Medeiros conhece muito bem. Ele participou do trabalho de descontaminação causado pelo acidente com Césio 137 em Goiânia, em 1987, quando a violação de uma cápsula da substância, por sucateiros, resultou na morte de quatro pessoas e causou problemas de saúde em pelo menos 200. O material estava dentro de um equipamento encontrado na ruína do antigo Instituto Goiano de Radioterapia.
Durante uma caminhada pela fábrica, Medeiros mostra os antigos filtros e dornas que operavam no processamento de zinco, realizado com dois tipos de minérios, e criavam cerca de 500 toneladas de resíduos diariamente. Uma rotina que durou mais de 40 anos. "Está mais do que na hora de encontrarmos uma solução para o problema", diz o professor do Instituto de Química da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), alertando que o adiamento só põe em risco todo o trabalho que vem sendo feito de forma emergencial desde o ano passado.
"Conseguimos consertar o filtro que realiza o tratamento da água contida na bacia de rejeitos e agora ela corre para o meio ambiente sem qualquer impedimento e sem substâncias tóxicas, mas há problemas que ainda precisam ser resolvidos", diz ele, destacando que o dique de contenção no entorno da bacia, reforçada pelo governo do Estado por ordem da Justiça, ainda apresenta pontos de vazamento.
Basta andar no entorno da bacia para identificar os locais onde o problema ocorre. Como o mangue fica ao lado, a vegetação que recebe água contaminada está seca, sem cor, um contraste com o verde predominante. "Descobrimos cinco pontos de vazamento e construímos caixas coletoras que bombeiam a água contaminada de volta para a bacia de rejeitos líquidos. Chega a vazar cerca de 10 litros por hora", detalha, acrescentando que, uma semana antes, achou mais um vazamento.
Além do problema das infiltrações, o grupo de 20 pessoas que trabalha na empresa por ordem judicial, para realizar o trabalho de tratamento dos efluentes, fica de olho no céu, rezando para não haver grandes temporais durante o período chuvoso. Caso isso ocorra, a bacia de rejeitos pode transbordar, como aconteceu em 1996 e em 1997, quando a Baía de Sepetiba, criadouro natural de várias espécies de camarões e peixes, foi fortemente poluída. No ano passado, durante as chuvas de verão, também houve vazamento. "Além da vegetação, muitos peixes e aves morreram. Hoje temos cerca de 40 centímetros de folga até o transbordamento, mas não podemos ficar à mercê da natureza", observa o professor.
Promotor do Estado que acompanha o caso, Emiliano Brunet disse que pode solicitar que se determine ao grupo criado pelo Ministério do Meio Ambiente, com a participação de técnicos das três esferas de governo, a apresentação imediata do projeto para o passivo ambiental, sob pena de multa diária. "Vamos conversar com o Ministério Público Federal, que também é autor da ação, para decidirmos o que fazer", informou o titular da Promotoria de Tutela Coletiva de Nova Iguaçu.

Projetos, há muitos. E nenhuma solução
Especialista apresenta alternativas para o passivo ambiental, como reaproveitamento do zinco abandonado
RIO - Não é por falta de projeto que o passivo ambiental da Ingá ainda não foi resolvido. Desde 1998, o professor João Alfredo Medeiros apresenta a proposta de reaproveitar o zinco contido no passivo ambiental, que, embora seja tóxico, é usado depois de processado por diversos tipos de indústrias, seja na produção de pneus ou na fabricação de produtos farmacêuticos, como pós e pomadas. O problema é fazer com que a União, o Estado e o município de Itaguaí, os três réus da ação civil pública, aceitem a proposta.
Segundo o professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que já vinha realizando análises químicas na empresa há seis anos, o reaproveitamento do zinco é uma maneira produtiva de tratar do passivo, já que o procedimento poderá gerar empregos para a região, dar um destino adequado para parte do resíduo e ainda resultar em renda para a massa falida da empresa, que tem créditos a pagar no valor de quase R$ 130 milhões, entre os quais dívidas trabalhistas, fiscais e previdenciárias.
"Há uma grande quantidade de zinco aqui. Análises preliminares indicam que há teores entre 5% e 6% da substância. Ou seja, há, em média, cerca de 150 toneladas de zinco, se considerarmos apenas os resíduos que podem ser vistos, pois deve existir muito material enterrado", diz ele, acrescentando que o material pode ser processado dentro da própria empresa, gastando cerca de R$ 5 milhões para botar a área industrial em pé, que tem equipamentos da década de 1950.
"Uma intervenção na estrutura atual seria suficiente para criarmos uma unidade econômica autônoma capaz de realizar o serviço até a criação de uma área industrial mais moderna, que custaria cerca de US$ 9 milhões e demoraria pouco mais de dois anos para ficar pronta", avalia o professor da UFRJ. Segundo ele, embora existam alternativas cabíveis para solucionar o problema do passivo ambiental, a idéia de reaproveitar o zinco tem um diferencial importante. "Só de empregos criaríamos cerca de 250", diz.
Entre as outras saídas consideradas estão, por exemplo, a construção de um aterro industrial em um terreno adquirido pela Ingá em Seropédica, a 25 quilômetros da empresa, com um custo avaliado em torno de US$ 100 milhões, e o transporte do material para o aterro de uma empresa particular, algo que sairia por não menos do que US$ 200 milhões, segundo Medeiros. Também foi analisada a possibilidade de encapsular os rejeitos, ou seja, fazer uma cobertura de solo.
O projeto escolhido, ressalta Medeiros, deve sempre levar em conta a descontaminação da área, que vem sendo cobiçada por empresas por causa da proximidade do Porto de Sepetiba. "Não adianta nada a massa falida vender o terreno para qualquer um, pois é preciso um compromisso de que o passivo ambiental vai ser tratado. E tudo o que está aqui dentro precisa ser descontaminado", alerta o químico.

OESP, 31/10/2004, Vida, p. A22

As notícias aqui publicadas são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos. Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.