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20 anos do Acampamento Terra Livre e a emergência climática

Le Monde Diplomatique - https://diplomatique.org.br
Autor: Mariana Castro
03 de Mai de 2024

A demarcação das terras indígenas, o enfraquecimento dos setores agropecuários e o combate às desigualdades de raça, gênero e classe são três pilares importantes de um mesmo compromisso de enfrentamento à emergência climática no Brasil

Entre os dias 22 e 26 de abril deste ano, celebramos o vigésimo Acampamento Terra Livre (ATL) com uma mobilização que representa não apenas a importante demanda por justiça ambiental e indígena, mas também um chamado à ação para toda a sociedade brasileira e internacional. É um lembrete de que a preservação dos territórios indígenas e o respeito aos direitos dos povos originários são cruciais para enfrentar os desafios climáticos que afetam a todos nós.

Liderado pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) em colaboração com outras organizações em todo o país, o ATL é o principal evento político dos povos indígenas no Brasil. Seu objetivo é reunir líderes e organizações indígenas de todas as regiões para discutir e se posicionar sobre os direitos constitucionais e originários, bem como sobre as políticas anti-indígenas do Estado brasileiro. Criado em 2004, o primeiro ATL teve início com uma ocupação liderada por povos indígenas do sul do país, diante do Ministério da Justiça, na Esplanada dos Ministérios. Rapidamente, essa iniciativa foi abraçada por líderes de outras regiões brasileiras, cujo sentido era pressionar a Nova Política Indigenista no primeiro governo Lula.

Segundo registros do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), o comunicado do primeiro ATL afirmava que os direitos indígenas estavam sob ameaça devido à pressão exercida por grupos econômicos e políticos que almejavam a apropriação de terras indígenas, dos recursos e a destruição das culturas e sociedades originárias. Esses grupos, que se organizam de Norte a Sul do país, "empregam chantagem e negociações políticas para promover um movimento no Congresso Nacional com o objetivo de modificar os artigos da Constituição que garantem nossos direitos."

Duas décadas depois, a carta segue muito atual. O 20o ATL foi o mais participativo da história das mobilizações indígenas em número de pessoas e representatividade, reunindo cerca de 9 mil indígenas de 200 povos diferentes de todas as regiões do país e toda a Amazônia brasileira.

Essa mobilização se torna ainda mais importante para barrar a proposta do Marco Temporal e reconhecer a emergente crise climática que vivemos: de acordo com a Organização Mundial de Meteorologia (WMO na sigla em inglês), 2023 foi o mais quente dos últimos 120 mil anos do planeta e 2024 vai na mesma direção, com março marcando o mais alto registro de temperatura já registrado e a Terra alcançando o décimo mês consecutivo com recorde de calor.

Nesse contexto, as lutas dos povos originários são essenciais para qualquer esforço significativo de combate à crise climática. Eles têm liderado a resistência à ocupação de indústrias extrativistas e ao desmatamento das terras em que habitam há séculos e quase sempre são afetados de forma mais precoce e intensa do que outras populações.

SEM DEMARCAÇÃO NÃO HÁ DEMOCRACIA: ATL 2023 E O PRIMEIRO ANO DE GOVERNO LULA
O ATL de 2023, primeiro encontro realizado sob o novo governo do presidente Lula, reuniu cerca de seis mil indígenas de 200 povos entre 24 e 28 de abril daquele ano, na Praça da Cidadania, em Brasília. Naquela ocasião, além da unidade contra a proposta do marco temporal, que requer que eles comprovem ocupação de terras até 5 de outubro de 1988, os povos indígenas se somaram na luta contra o golpe bolsonarista de 08 de janeiro e em defesa da democracia. O ATL de 2023 foi exitoso em mostrar o vínculo do projeto autoritário de Bolsonaro com o avanço de uma agenda legislativa de ataques aos direitos indígenas.

Para Alva Rosa Tukan, o projeto do marco temporal representa uma ameaça para 63% das atuais reservas indígenas, expondo essas terras ao garimpo ilegal, ao desmatamento, à mineração e a outras atividades prejudiciais ao meio ambiente. Além disso, mais de 30 projetos de lei em tramitação no Congresso representam uma ameaça para os direitos indígenas, tais como o PL 191/2020, que visa regular a mineração em áreas tradicionais, e os PLs 2633/2020 e 510/2021, que visam regularizar a grilagem de terras e o PL 2159/2021 flexibiliza as regras de licenciamento ambiental, colocando em risco a preservação dos recursos naturais e das comunidades.

A questão da emergência climática foi um eixo estruturante no 19o ATL. Kleber Karipuna, coordenador executivo da Apib, enfatizou que a luta pela demarcação dos territórios indígenas vai além do direito ancestral à terra, sendo essencial para a sobrevivência de toda a humanidade: "Não há mais dúvidas que os territórios indígenas contribuem no combate à crise climática. A demarcação é a solução para a justiça climática e para a manutenção da democracia".

Com o tema "O futuro indígena é hoje. Sem demarcação não há democracia!", o ALT 2023 foi marcado pelo decreto de emergência climática, uma iniciativa realizada pelos próprios indígenas, reiterando a urgência de combater o racismo ambiental e as violações de direitos causadas pelas mudanças climáticas. Segundo as lideranças indígenas, a principal forma de lidar com a emergência climática no Brasil é a partir da demarcação das terras indígenas. Enquanto as principais lideranças globais discutem infinitamente soluções para enfrentar as mudanças climáticas sem conseguir grandes feitos, os povos originários afirmam: "Não existe solução para a crise climática sem terras e povos indígenas".

O Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), com dados do MapBiomas, em parceria com a Apib, mostrou que, em 2022, 29% do território brasileiro ao redor das TIs está desmatado, enquanto dentro das mesmas o desmatamento é de apenas 2%. Isso reforça a importância da demarcação plena das terras indígenas na preservação ambiental. Naquela ocasião, o presidente Lula, que vem exercendo um papel de liderança importante no discurso pró clima no mundo, parecia levar a sério o movimento indígena e afirmou que não deixará nenhuma terra indígena sem demarcação durante os quatro anos de seu mandato.

Na marcha "Povos Indígenas decretam emergência climática", com cerca de 5 mil pessoas presentes, a ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara afirmou: "Nós vamos seguir trazendo pra cá a pauta prioritária dos povos indígenas, que é a demarcação dos territórios. Só assim vamos conseguir conter essa crise climática. Sem demarcação, não há solução para a crise. Saímos de quatro anos de ataque, de uma pandemia que matou muitos dos nossos parentes, mas estamos aqui vivos, de pé, com a nossa resistência secular, pra dizer que estamos aqui pra apresentar a nossa contribuição não só pro Brasil, mas para o mundo. Estamos aqui para reafirmar mais uma vez que não vamos permitir nunca mais um Brasil sem nós".

No último dia do ATL de 2023, Lula esteve presente e homologou seis territórios indígenas que já estavam demarcados. Por outro lado, segundo a coordenação executiva da Apib, há 14 terras aptas para homologação aguardando apenas a assinatura da Presidência da República, enquanto outras 600 terras indígenas estão pendentes há anos, aguardando o início do processo de demarcação. No total, são 1.393 TIs em diversas fases que precisam ser demarcadas. Além da demarcação, a Apib reivindica a criação de diversas políticas para os territórios, destacando que a demarcação das terras indígenas beneficia toda a sociedade. A luta pela demarcação de terras representa a convergência das lutas que marcaram o primeiro ATL do Lula III, ou seja, a luta pelos direitos indígenas, pela democracia e pelo enfrentamento às mudanças climáticas.

Além disso, durante o ATL, foi anunciada a reativação do Comitê Indígena de Mudanças Climáticas (CIMC), criado em 2015 e paralisado durante o governo Temer devido à redução dos espaços de participação social no governo federal. O CIMC tem como objetivo posicionar o movimento indígena na discussão das mudanças climáticas em nível nacional e internacional, além de fortalecer o diálogo com os governos. Sinéia do Vale, do povo Wapichana, lidera a retomada e a coordenação do CIMC nacional. Ela destaca que a proposta de retomada está sendo discutida com as organizações indígenas com a intenção de estabelecer CIMCs regionais, aumentando a discussão para além da Amazônia, levando o debate para todos os biomas e territórios.

"NOSSO MARCO É ANCESTRAL. SEMPRE ESTIVEMOS AQUI": 20 ANOS DE ATL EM 2024
O ATL de 2024 foi realizado em um contexto mais adverso e complexo para os povos indígenas. Em outubro de 2023, o Congresso Nacional aprovou a lei do chamado Marco Temporal, medida amplamente contestada pela sua inconstitucionalidade. Embora o presidente Lula tenha inicialmente vetado a legislação, os parlamentares derrubaram o veto em dezembro de 2023. Atualmente, a situação está sendo avaliada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), que vetou a validade da lei.

Além disso, segundo um relatório da Comissão Pastoral da Terra (CPT), em 2023 o Brasil testemunhou um número recorde de conflitos no campo, sendo registrados 2.203 conflitos agrários no país. Os povos indígenas foram as principais vítimas da violência rural, representando 29,6% dos casos, seguidos por posseiros, sem-terra e quilombolas. Por isso, a demarcação das terras indígenas é tão incontornável.

A aprovação do Marco Temporal pelo Congresso, após a decisão do STF contra o marco temporal, trouxe mudanças significativas nas regras para o uso e exploração das terras indígenas, desafiando a postura pró-meio ambiente do governo Lula. Essa legislação permite a instalação de projetos agropecuários, construção de hidrelétricas e rodovias em áreas indígenas, levantando preocupações sobre o impacto ambiental e social dessas atividades. No primeiro dia do ATL de 2024, Gilmar Mendes iniciou uma mediação para discutir a tese, ao mesmo tempo em que suspendeu os pedidos de inconstitucionalidade da lei.

Essa escolha levanta questionamentos sobre o comprometimento do Judiciário com os direitos indígenas e a proteção ambiental, principalmente num contexto de significativas derrotas para as lutas indígenas e ambientais. Ainda no primeiro ano de governo Lula, a bancada ruralista conseguiu aprovar o enfraquecimento dos ministérios dos Povos Indígenas (MPI) e do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA). Com a aprovação das mudanças na MP 1154, o ministério liderado por Sônia Guajajara perdeu a competência para demarcar Terras Indígenas, enquanto a pasta de Marina Silva foi despojada do Cadastro Ambiental Rural (CAR) e outras responsabilidades. Essas alterações resultaram na perda de funções cruciais para ambos os ministérios. Em resposta, representantes de diversas organizações da sociedade civil enviaram um manifesto às lideranças do Congresso Nacional, assinado por 790 entidades.

Em abril de 2024, na véspera do vigésimo ATL, a decisão do presidente de demarcar apenas duas terras indígenas, em vez das seis demarcações esperadas, gerou surpresa e decepção. Isso sugere pressões políticas sobre o governo, especialmente do poder do agronegócio, que tem influência significativa no Congresso e pode afetar outras políticas governamentais. Diante desse cenário, a organização do ATL optou por não convidar o presidente Lula para o evento, refletindo uma insatisfação e desconfiança crescentes entre os povos indígenas em relação às políticas e compromissos do governo em relação às suas comunidades e territórios.

No quarto dia de ATL 2024, aproximadamente 9 mil pessoas participaram da marcha "Nosso marco é ancestral. Sempre estivemos aqui", em direção a Esplanada. Depois, 40 lideranças indígenas se reuniram com o presidente Lula que se comprometeu, uma vez mais, a demarcar mais terras indígenas.

Neste 20o ATL, o debate sobre as mudanças climáticas seguiu forte. Na carta aos Três Poderes, os povos originários nos lembram que "o nosso tempo é agora, urgente e inadiável. Enquanto se discute marcos temporais e se concede mais tempo aos politicos, nossas terras e territorios continuam sob ameaça, nossas vidas e culturas em risco e nossas comunidades em constante luta pela sobrevivencia". O enfrentamento à emergência climática deve ser tão urgente quanto a demarcação das terras indígenas. Aqui e agora.

A Plenária das Mulheres Indígenas, realizada pela Articulação Nacional das Mulheres Guerreiras da Ancestralidade (ANMIGA), debateu o papel fundamental que as mulheres indígenas têm na defesa dos territórios e no enfrentamento à emergência climática. Nesta assembleia, a fala da deputada federal Célia Xakriabá afirmou que não há combate às mudanças climáticas se não falarmos também sobre a violência contra as mulheres indígenas, pois junto com o garimpo, o desmatamento e a mineração chega também a violência contra as mulheres que defendem seus territórios. A ativista e antropóloga Elisa Pankararu disse que: "as mudanças climáticas não são previsão, já está posta. Quem sofre é a nossa gente, que mora na periferia e no campo. E quem é responsável por essa catástrofe? Nós que não somos, nós não desmatamos, nós não poluímos o rio".

Além disso, ela nos lembra que "não podemos pensar os biomas separadamente porque somos um corpo. Se qualquer um dos nossos biomas for massacrado e extinto, os outros também vão cair". No primeiro ano do Lula III, houve uma queda significativa no desmatamento da Amazônia. De acordo com os dados do sistema Deter, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), em 2023 houve uma redução de 50% no desmatamento da Amazônia em comparação com os índices do ano anterior. Por outro lado, no Cerrado, a taxa apresentou um aumento de 43%.

Uene Karipuna, por sua vez, apresenta as demandas dos povos originários para uma transição energética justa e o fim da exploração de combustíveis fósseis no Brasil. A carta apresentada no ATL, elaborada pela Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB) e a Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste e Minas Gerais (APOINME), solicita uma definição de prazo para o encerramento da produção de petróleo e gás fóssil, além de investimentos em uma transição equitativa, popular e inclusiva.

SUSTENTANDO O CÉU RUMO A COP 30
A carta do vigésimo ATL ressalta uma preocupação fundamental: a COP 30 ocorrer na Amazônia brasileira não é motivo de comemoração enquanto os direitos territoriais e os saberes ancestrais dos povos indígenas não forem reconhecidos como a principal solução para a emergência climática. Com os povos indígenas podemos aprender sobre as relações entre seres humanos, plantas, animais e ecossistemas que são incontornáveis para enfrentar as mudanças climáticas e desenvolver políticas de adaptação. Por isso, nossas ações hoje devem ser entendidas como performances cíclicas, guiadas pela reflexão dos nossos conhecimentos ancestrais e pelo desejo de sermos bons ancestrais para as gerações futuras. Portanto, a demarcação das terras indígenas, o enfraquecimento dos setores agropecuários e o combate às desigualdades de raça, gênero e classe são três pilares importantes de um mesmo compromisso de enfrentamento à emergência climática no Brasil. E é isso que nós demandamos dos próximos dois anos de governo Lula III.

Mariana Castro é Doutoranda em Ciência Política pela IESP-UERJ, pesquisadora no Observatório Interdisciplinar das Mudanças Climáticas e no Laboratório de Análise Política Mundial da mesma universidade.

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