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Xingu a terra mágica

Planeta ed. 416 mai 2007, p. 18-24
Autor: MARIA, Andiara
31 de Mai de 2007

Xingu A terra mágica

Há 23 anos, o jornalista e documentarista Washington Novaes mergulhava em outra dimensão consciente de espaço/tempo. Durante dois meses, viveu em completa imersão no universo dos povos indígenas do Xingu.
Esteve entre os waurá, os yawalapiti, os kuikuro, os txukarramãe (hoje mentuktire) e os kren-akarore (atualmente panará). Partilhou com eles o cotidiano, conheceu hábitos e crenças. Emergiu de lá, trazendo a série de não-ficção "Xingu, a Terra Mágica", e o diário. "Xingu, uma Flecha no Coração". Agora, de volta ao paraíso, o documentarista mostra uma terra ameaçada.

Por Andiara Maria

Com "Xingu, a Terra Mágica", série de dez programas levada ao ar pela extinta Rede Manchete de Televisão, em 1985, o Brasil descobria encantado a beleza e os mistérios guardados neste seu microcosmo, à época, ainda praticamente desconhecido.

Pela primeira vez, via o índio sem preconceitos, se interessava por sua cultura, sua arte, magia, conhecimentos e organização social. Ouvia atentamente e reconhecia a sabedoria do cacique Raoni, iniciando então sua escalada ao pódio das celebridades internacionais.

Em 2006, Washington Novaes partiu para um reencontro com a "sofisticada simplicidade" dos povos do Xingu. Refez o mesmo percurso do passado, mas descobriu o previsível... o Xingu não é mais o mesmo. O paraíso está sufocado pelo "abraço da morte", como definiu, para o documentarista, o coordenador do Instituto Socioambiental, Márcio Santilli.

Ilhados entre pastagens, estradas, extensas áreas desmatadas para o plantio de soja, a poluição dos rios que deságuam no Xingu, até quando resistirão as florestas e o cerradão intocados do Parque Indígena Nacional? O grande rio que atravessa o parque começa a sentir os efeitos da devastação ao redor, e será ainda mais afetado agora pela construção de uma hidrelétrica no Kuluene, um de seus principais afluentes.

Nas aldeias, um inimigo ainda mais pernicioso ameaça os índios: a invasão cultural da sociedade envolvente. Suas marcas saltam aos olhos, nos flagrantes colhidos por Washington Novaes nesse seu retorno ao paraíso. As aldeias têm poços artesianos, placas de energia solar e motores a diesel para alimentara energia gasta com toda uma parafernália eletrônica.

Desaparecem os pajés
As parabólicas erguem-se poderosas sobre as ocas, conectando as pequenas comunidades isoladas à grande aldeia global. As escolas, embora bilíngües, reproduzem o sistema escolar tradicional. "Em todas as tribos, os mais velhos se queixam muito de que as escolas estão preparando seus jovens para viverem outra cultura, educam os índios para as coisas do branco", diz Novaes.

Cada vez mais dominado por nossas idéias de desenvolvimento, o jovem índio vai abandonando a sua cultura tradicional. Quer ser igual ao adolescente que ele vê na televisão, andar de tênis, camiseta bonita, bermudão e óculos escuros. Quer ter um som para dançar forró, DVD e - suprema ambição - passear de moto pela taba. Uma das imagens mais emblemáticas dessa atual realidade xinguapa será exibida já no primeiro programa da nova série do documentarista Washington Novaes: o cacique kuikuro Afukaká, hoje obeso, com a tanga indígena tradicional, percorrendo de moto a sua aldeia.

Depois de experimentar os motores e tantas outras facilidades oferecidas pela vida moderna, é natural que o homem não queira mais abrir mão do conforto. Mas o que vai acontecer às sociedades tradicionais, de repente invadidas pelos aparatos do mundo industrializado, se a civilização ocidental, que levou milênios para atingir o estágio de "desenvolvimento" em que se encontra, não conseguiu evitar suas conseqüências negativas? 0 acelerado processo de aquecimento global é apenas uma delas.

No caso dos povos indígenas, Washington Novaes aponta para o risco de perderem de vez sua identidade. Por isso, a série a ser lançada em junho pela TV Cultura já foi batizada como "Xingu, a Terra Ameaçada".
"0 mundo do índio é muito diferente do nosso", lembra Novaes. É regido pelos espíritos da água, do fogo, da terra, dos animais, das coisas. Enfim, tudo tem relação com o sagrado." Nesse território, segundo ele, a tecnologia e recursos científicos do branco são nulos.

"Por exemplo, tem as doenças do branco e as do índio. As doenças do branco estão sendo prevenidas com a vacinação, mas as doenças do índio só podem ser curadas por um pajé. E é aí que surge um problema, porque os jovens não querem mais ser pajés", explica o documentarista. Há 23 anos, ele chegou a encontrar 13 pajés em uma única aldeia de 300 habitantes. Hoje, na mesma aldeia, somente existem três.

Ser pajé não é nada fácil. 0 grande cacique Raoni tentou por três vezes e acabou desistindo. Para alcançar a sabedoria, primeiro, o índio tem de ser escolhido pelos espíritos. Depois, trilhar um longo e penoso caminho, marcado por sacrifícios que os mais novos já não estão dispostos a assumir.

Em 1984, Novaes testemunhou e registrou a pajelança feita para salvar um bebê e sua mãe de morrerem no parto. "Estávamos hospedados na casa do chefe waurá, Malakuyawá -um ser humano extraordinário, grande mediador de conflitos, falava pouco e fazia-se respeitar apenas com um olhar ou um gesto. Já tinha 36 horas que a moça sofria em trabalho de parto, e nada. Então, uma índia chegou avisando que todas as cabanas deveriam fechar as suas portas, porque Malakuyawá precisava ouvir os pássaros, para saber porque aquilo estava acontecendo."

"A aldeia ficou duas horas em sito de sua magia. Um universo que, para ser penetrado e compreendido, requer aquela "mudança radical de perspectiva" de que fala Novaes, com sua voz grave. "Quando você está lá, não pode deixar de sentir os efeitos da reaproximação com os ambientes naturais. 0 céu, aquela abóbada gigantesca, está sempre à vista. Tema terra, a mata, a água, isso é muito forte. É um retorno à simplicidade, ao silêncio, ao pequeno no cotidiano", comenta absorto.

Logo em seguida, ele começa a rir lembrando-se de um episódio do passado e acrescenta: A simplicidade é muita relativa. Em 1984, já tinha uns 15 dias que eu estava no Xingu. Eu caminhava em direção à lagoa, para tomar banho, e pensava como minha vida havia mudado naquele período. Estava admirado e contente com o meu despojamento. Aí eu cruzei com um índio nu, voltando do banho na lagoa sem nada nas mãos. Naquele momento, olhei para mim mesmo e me vi de bermuda, camiseta, óculos escuros, carregando uma sacola com sabonete, escova, pasta de dente, toalha, barbeador... Há uma distância muito grande entre as nossas culturas."

A magia de volta à tela
O ritual da "bateção dos marimbondos" que será mostrado num dos episódios da nova série sobre o Xingu, não deixa dúvidas dessa distância quase infinita. O cacique Raoni, que um dia foi símbolo internacional da causa dos povos da floresta, gostaria de poder mudar o passado. Junto com o chefe Megaron e outras lideranças dos mentuktire, ele protagonizou o que, para Novaes, é um dos momentos mais comoventes da série. De barco, pelo Rio Xingu, eles levaram a equipe até o local onde aconteceu o histórico primeiro contato com os irmãos Villas-Bôas, no meio da floresta.

"Ali existe apenas um pequeno marco de pedra", diz Novaes. "E eu estava gravando algumas entrevistas, quando de repente eles deram-se as mãos e cantaram a mesma música do encontro com Orlando e Cláudio. Foi algo muito bonito." Apesar da homenagem, Raoni confessou que tinham em mente matar os dois sertanistas, mas foram convencidos a mudar de idéia por um casal de velhos. Hoje, no entanto, ele pensa que talvez tivesse sido melhor evitar o contato com os brancos.

O espectador de "Xingu, a Terra Ameaçada" terá a chance de se conscientizar dos problemas que podem levar ao rápido desaparecimento de mais um paraíso terrestre. Mas verá também que o tempo de se encantar com as imagens deslumbrantes de um mundo natural não está de todo perdido.

Será hipnotizado pela mesma narrativa poética que garantiu 20 pontos do Ibope, em todo o País, na exibição do último episódio da série de 1985. A Festa do Pequi, a Festa do Espírito do Beija-flor, a Dança do Papagaio, o Kuarup, a Dança do Pirá são algumas das preciosidades da cultura indígena que estarão incendiando a tela com suas cores vibrantes, sons hipnotizantes, e a refinada arte das plumas, esculturas e pinturas corporais.

As imagens foram capturadas pelo mesmo olhar transcendente da câmara de Lula Araújo, diretor de fotografia, e trabalhadas com a mesma sensibilidade por João Paulo Carvalho, diretor de edição, ambos, junto com Washington Novaes, responsáveis pelo sucesso da série na década de 80. Desta vez, a direção de arte é assinada por Siron Franco, pintor goiano, reconhecido internacionalmente por seu talento.

Também integram a equipe Pedro Novaes, diretor de produção; Marcelo Novaes, fotógrafo de still; Pedro Moreira, técnico de som; João Novaes e Cláudio Pereira, produtores executivos; e dois jovens cineastas indígenas, como assistentes de fotografia: Maricá Kuikuro e Paturi Paraná, ambos formados pelo Projeto Vídeos nas Aldeias.

A equipe gravou 110 horas para produzir os novos documentários sobre o Xingu. Eles serão exibidos junto com os antigos, compondo uma série de 16 programas, de 54 minutos cada. No primeiro, veremos takes do passado e o reencontro de Novaes e sua equipe com seus personagens. Nos dez seguintes serão reexibidos os capítulos de "Xingu, a Terra Mágica". E os cinco últimos fecham a série "Xingu, a Terra Ameaçada".

A produção, uma parceria da WN Produções e a Intervídeo, levou sete anos para sair do papel. "E um projeto caro", diz Novaes. "Tem uma logística difícil, por conta da distância e da dificuldade de acesso. Não é fácil conseguir patrocínio." Felizmente para nós, o projeto conseguiu sensibilizar a Ancine, a Petrobras e a Natura e chega à telinha a partir de junho, pela TV Cultura de São Paulo, e demais emissoras públicas do País.

Um mergulho em outro espaço

"Chegar perto do índio, da cultura do índio, exige uma mudança radical de perspectiva, como se o olho passasse a ver pelo lado oposto, no sonho, no inconsciente. Entender o índio, entender a sua cultura e respeitá-lo, implica despirmo-nos desta nossa civilização. Porque o encontro com o índio é um mergulho em outro espaço, em outro tempo." Washington Novaes

Tempo prodigiosamente mais lento

"Um espaço aberto, de céu e terra, amplo, água e fogo. Um espaço colorido e pródigo, povoado por animais, vegetais, minerais e espíritos... Um tempo prodigiosamente mais lento, que permite consumir meses para polir o arco ou aguçar a flecha, convida a desfiar os dias na tarefa de dar à palha o entrelaçado perfeito da esteira ou do teto. Confere à cerâmica a forma fantasiada nas tintas da imaginação. Tempo para o índio varar a noite dançando. Tempo para receber o filho que nasce e despedir o ancestral que morre. Tempo para rir e chorar, cantar e dançar, plantar e colher," W.N.

Curtir a simplicidade

"Mas é preciso revirar os olhos e afugentar velhos conceitos para de fato enxergar, abrir os ouvidos ao silêncio, curtir o detalhe, perceber a minúcia, a sofisticada simplicidade, quase sempre fruto de uma tradição milenar, que passa de boca a ouvido, mão a mão, geração atrás da outra. É preciso reabrir portas fechadas dentro de cada um de nós, reencontrar a simplicidade perdida, a inocência, a solidariedade, a cor e a música." W.N.

Andiara Maria mora em Brasília. É jornalista e documentarista, com participações nos documentários "Tocantins", "Brasil-Movimento Ético", "Vila Velha Brilha", Araguaia Século 21", "A Teia do Povo Invisível" e "Avá-Canoeiro", entre outros.

Planeta ed. 416 mai 2007, p. 18-24

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