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Xingu contra o fogo

Revista Status
Autor: SERVA, Leão; ASSIS, Rogério
05 de Nov de 2011

Xingu contra o fogo
Com suas aldeias e florestas ameaçadas, os índios do Parque do Xingu criam brigada anti-incêndio para evitar o aumento das queimadas causadas por mudanças climáticas e desmatamentos no entorno da reserva

Por Leão Serva e Rogério Assis (fotos), do Parque do Xingu

"COM VOCÊS É DIFERENTE? Aqui, a primeira coisa que um homem faz quando volta de uma viagem é...", o índio Malali faz com a mão um sinal universal para transar, interrompendo as frases ditas com seu português cheio de sotaque. Eles só pensam naquilo! Os índios waurás, que moram no Parque Indígena do Xingu, são mais francos do que seus amigos brancos, fazem muitas piadas e brincam com sensualidade o tempo todo.
Seu comentário foi feito para quebrar o gelo ao final de um dia cansativo, na mesa comunitária onde comem juntos todos os waurás que estão envolvidos com o treinamento de combate a incêndio florestal. Os índios do Xingu estão aprendendo técnicas de bombeiros e Malali é um dos 16 pioneiros da brigada da aldeia Piyulaga. A equipe antifogo tem homens e mulheres de todas as idades e, nos próximos meses, deverá ensinar os outros moradores da aldeia a combater focos de queimadas que vêm aumentando de forma inédita na região e que tanto preocupam os waurás e as outras 15 etnias do parque indígena mais famoso do Brasil.
O Parque Indígena do Xingu é conhecido em todo o mundo principalmente por imagens das festas marcadas por danças e lutas de guerreiros com cabelo cortado em forma de cuia e a pele pintada de preto e vermelho. Nos últimos anos, contudo, chamas amarelas e também vermelhas têm queimado as florestas do parque de um jeito totalmente inédito, assustando seus moradores pela velocidade com que aparecem, pela quantidade e pela resistência dos focos às técnicas tradicionais de combate e pela extensão da destruição.
O caso mais chocante talvez tenha sido o da aldeia Kisedjê que, no dia 18 de agosto, viu queimar completamente todas as casas em poucos minutos. O episódio chocou até a top model Gisele Bündchen, que visitou o Xingu pela primeira vez em 2004. Em setembro, tocada pela tragédia, Gisele promoveu na internet um leilão de vestidos para arrecadar fundos para a restauração da aldeia. A iniciativa juntou R$ 16 mil, o que pode parecer pouco, mas para os índios certamente é um recomeço.
Incêndios que podem queimar vilas inteiras em um piscar de olhos assustam as aldeias do parque, formadas sempre por grandes casas cobertas por palha sapé, altamente inflamável quando seca. Alarmados, os waurás pediram ajuda à ONG Instituto Socioambiental (ISA), que organizou o treinamento de técnicas de combate ao fogo e doou equipamentos como bombas de água e outros instrumentos.
Deitado com a cabeça sobre as pernas cruzadas da mulher, no meio da floresta, o índio Acari descansa enquanto aguardamos a chegada de mais cargas de água para encher as bombas e atacar um grande foco de incêndio. Ele brinca com os brancos: "Vocês não podem namorar outras mulheres quando viajam? Nós namoramos." Depois de fazer ponta em uma minissérie da TV Globo ("A Muralha") e no filme "Xingu", de Cao Hamburguer (ainda inédito), Acari aprendeu a fazer o canastrão, finge não ligar para a esposa. Mas a verdade é que ela fala mal o português e não entende as brincadeiras do marido, que é o líder da brigada contra incêndio dos waurás.

FOGO DISCRETO
O treinamento que acompanhamos no Xingu nos últimos dias de setembro teve muita prática e pouca teoria: um grande incêndio ameaçava chegar à aldeia Piyulaga. As "aulas" foram dadas na selva, ora apagando pequenos focos, ora criando barreiras para evitar que grandes chamas se espalhassem, mais adiante cortando árvores queimadas para que suas brasas não se espalhassem, acolá aspergindo água para resfriar um foco.
O fogo ali é diferente dos grandes incêndios que as tevês têm mostrado nos EUA e na Europa: é um fogo mais discreto, que se espalha pelo chão, pela camada de folhas e detritos (serrapilheira) e recobre o chão da floresta, que normalmente serve de adubo para o solo pobre da região, na transição entre os biomas Amazônia e Cerrado. Com o ressecamento progressivo do clima, resultante do aumento do desmatamento no entorno do parque, a serrapilheira virou um combustível pronto para incendiar.

Os índios são acostumados a usar o fogo em diversas atividades diárias: abrir roças, queimar lixo, cozinhar dentro e fora de casa e aquecer no frio. Os relatos dos últimos tempos, entretanto, mostram que as técnicas tradicionais passaram a ser uma ameaça quando o clima seca: foi quase por acaso que começou o grande incêndio que queimou cerca de 15 km da floresta próxima à beira da estrada que liga o Posto Leonardo (principal sede da Funai no Xingu) à aldeia waurás, em setembro.
Os waurás contam que o fogo começou próximo à antiga aldeia dos índios yawalapitis, quando uma família usou fogo para abrir uma roça. Um velho yawalapiti dessa aldeia, por sua vez, diz que foi um grupo de índios de outra aldeia que pescava no Posto Leonardo e fez um fogareiro para assar peixe. O certo é que o fogo "escapou". O índio apelidado Matã, waurás morador do Posto Leonardo, diz que foi tudo rápido e rasteiro, primeiro apareceu uma grande fogueira na direção da velha aldeia Yawalapiti e logo estava sem controle: "Eu via o fogo correndo como se fosse uma fila em direção a Piyulaga." A fila a que ele se refere é a mata contígua à estrada, mais exposta ao Sol, o que facilita a ocorrência de incêndios. Com o agravamento sistêmico da seca, esse efeito se radicaliza.

ILHA DE FLORESTA
O Parque Indígena do Xingu completou 50 anos em agosto. O presidente Jânio Quadros assinou sua criação poucos dias antes de renunciar, bêbado, em 25 de agosto de 1961. Tornou assim realidade a bandeira de uma campanha iniciada cerca de 10 anos antes pelos irmãos Orlando, Cláudio e Leonardo Villas Boas, que propunham uma grande reserva para proteger as várias etnias identificadas na região de Mato Grosso por expedições de viajantes nas décadas anteriores. É habitado hoje por 16 grupos indígenas com cerca de 5,5 mil pessoas espalhadas por 2,8 milhões de hectares, o mesmo tamanho do Estado de Alagoas. Essa área corresponde a 10% do território originalmente proposto pelos irmãos Villas Boas, mas ainda assim é uma das maiores e mais preservadas áreas de florestas do País.
Ao reduzir a área proposta para o parque, em 1961, o governo deixou de fora do traçado as nascentes dos rios que cruzam a reserva e formam o Rio Xingu. Na época, parecia impossível que as florestas da região desaparecessem. Mas em 50 anos isso realmente aconteceu: em volta do parque praticamente só se vê atualmente fazendas de gado e soja, retalhos geométricos de mata isolada em volta de rios e ocupações urbanas sem saneamento básico que foram degradando o ambiente dentro do parque, contaminando o ar e as águas com agrotóxicos, assoreando os rios e ressecando o ar.
Esse diagnóstico já foi feito há alguns anos: os rios do parque estão degradados, assoreados, poluídos e com menos peixes. "Agora se pode andar pelo rio. Não era assim quando nós chegamos aqui", disse o cacique dos waurás de Piyulaga, Auaulukumã, em uma saudação à equipe da brigada anti-incêndio. Depois da água, os xinguanos perceberam o problema com o fogo, que atacou de forma muito intensa nas estações de seca (o inverno) dos últimos dois anos.
Para se ter uma ideia do ritmo atual da destruição, ao longo de seus 50 anos de história o parque perdeu somente 1,8% de sua cobertura florestal original. Apenas em 2010, porém, o fogo teria atingido uma área correspondente a 10% da floresta do parque a julgar por uma análise preliminar feita pelo ISA a partir de dados gerados pelo satélite do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Isso não quer dizer que a mata tenha sido destruída totalmente. Ela ainda pode se regenerar, como uma pessoa com queimaduras, mas exige cuidados. E fica cada vez mais frágil e suscetível a novos incêndios.
Há grande temor inclusive sobre o que pode acontecer no ano que vem nas áreas queimadas este ano. As inéditas brigadas anti-incêndio, equipadas com bombas de água e abafadores e treinadas para técnicas de combate ao fogo, fazem exatamente sua preparação para evitar que 2012 seja outro ano com o Xingu ameaçado pelo fogo descontrolado.
O Parque do Xingu fica no norte do Estado de Mato Grosso, exatamente na transição entre o cerrado e a floresta amazônica, na região chamada de Amazônia Oriental, que os cientistas classificam como a área mais exposta à degradação acelerada de toda a Amazônia. No entanto, apesar dessa fragilidade, Mato Grosso tem sido o Estado brasileiro campeão de desmatamento e queimadas nos últimos anos, funcionando como uma "vanguarda" da devastação da região. Na área ocupada pela bacia do Xingu no Estado de Mato Grosso, com 17,7 milhões de hectares (seis vezes a área do PIX) e que inclui tanto o parque quanto as nascentes do rio e seus afluentes, o desmatamento já corresponde a 37%. Considerando que na área do parque (16%) a floresta está preservada, isso quer dizer que fora das áreas indígenas a devastação é de cerca de 47% - quase a metade de uma área que, há meio século, era totalmente virgem.
UMIDADE ZERO
Há muitas décadas os cientistas alertam para o fato de que a floresta funciona como uma umidificadora do ar amazônico e a sua destruição iria causar secas mais frequentes e intensas. Pois bem: nos últimos anos, a região viveu as duas maiores secas de sua história, em 2005 e 2010, sendo esta última mais violenta do que a anterior. Fora desses dois picos, também a estiagem anual tem sido mais intensa do que nunca antes. Este ano, por exemplo, Manaus teve no dia 11 de agosto a menor umidade relativa do ar de sua história (ou pelo menos desde que a medição é feita, há 100 anos), com 18%, índice típico de deserto, quando sua média é de 80%.
O cenário que parecia apocalíptico no final dos anos 1980 (quando cientistas alegavam que, ao ritmo da época, a devastação completa da floresta amazônica se daria em 50 anos) está infelizmente se realizando: em menos de 25 anos, cerca de 35% da floresta foi degradada, metade com corte total, metade com a degradação irreversível da mata por ataques diversos que a esgarçam e a condenam à morte em pouco tempo.
O Xingu foi criado no centro geográfico do Brasil para ser um símbolo da alma brasileira, que se projetava marcada pela diversidade étnica e pelo respeito ao meio ambiente. Neste momento o parque espelha exatamente o contrário, a incapacidade do País em cuidar do ambiente que alimenta essa diversidade étnica em seu coração.
Nas primeiras noites de outubro uma tempestade muito forte caiu sobre o Parque do Xingu, marcando a chegada da temporada de chuvas após quatro meses de rigorosa estiagem. Naquela noite longa, de raios e trovões, com direito a muitas goteiras na maloca de sapé, a chuva apagou os últimos focos de fogo que ainda resistiam e afastou o risco imediato de novos incêndios. Mas as mudanças climáticas que fizeram surgir esses fogos radicais persistem como uma ameaça de mais e mais incêndios para a temporada de estiagem dos próximos anos. Até lá, os índios do Xingu vão ter de entender a sua posição ao mesmo tempo frágil e exótica na batalha global com o aquecimento do planeta.

Revista Status, 05/11/2011

http://www.revistastatus.com.br/2011/11/05/xingu-contra-o-fogo/

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