VOLTAR

Wangari, exemplo de coragem

OESP, Vida, p. A22
Autor: MAATHAI, Wangari Muta
24 de Out de 2004

Wangari, exemplo de coragem
Pioneira em várias áreas, a queniana Nobel da Paz Wangari Maathai não mede esforços na luta pelos direitos humanos

Nairobi

Wangari Maathai é uma pioneira. Hoje é a primeira mulher africana a receber um prêmio Nobel. Mas também foi a primeira na África Ocidental a conquistar um doutorado universitário (de Biologia, em Atchinson, EUA) e a primeira decana da Universidade de Nairóbi, Quênia. Nasceu na cidade de Nyeri, a 150 quilômetros de Nairóbi, em 1940. Tem três filhos e uma energia infinita para sua luta pelos direitos humanos e por uma vida mais digna para os quenianos. A África a conhece muito bem.

Sobretudo, graças à demanda permanente pelo perdão da dívida externa no Terceiro Mundo e à longa luta contra o sangrento regime do ditador queniano Daniel Arap Moi (1978-2002), o que lhe rendeu várias passagens pela prisão. No atual governo democrático, Wangari é vice-ministra do Meio Ambiente e, embora com algumas divergências, decidiu continuar nele.

Também na vida privada Wangari teve de romper barreiras culturais e abrir caminhos. Enfrentou em 1980 o pedido de divórcio do marido, um ex-parlamentar do Quênia, que alegou que ela possuía "caráter demais, era educada demais e bem-sucedida demais para ser controlada".

Vestida sempre com trajes típicos de cores brilhantes, calorosa e expansiva, com um sorriso enorme que confere ainda mais brilho a seus olhos, Wangari se mostra sempre segura de si e de seu caminho.

Em entrevista exclusiva, durante uma reunião organizada pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma) em Nairóbi, ela contou como começou o árduo caminho que a levou a receber o prêmio Nobel da Paz de 2004. "Há quase 30 anos, em 1975, comecei a averiguar entre as mulheres quais eram suas principais necessidades. A maioria mencionou a falta de madeira para combustível, a necessidade de energia, de comida, de água. Grande parte dos quenianos vive graças aos cultivos tradicionais de subsistência. E muitas dessas mulheres vinham de uma zona onde prosperava o que chamamos de 'cultivos em cash', ou seja, produtos como o café ou o chá, que são um bom negócio para o mercado e por isso foram invadindo mais e mais regiões e deslocando seus habitantes. Ao deixar de cultivar seus alimentos, essas famílias tiveram de começar a comprá-los, mas não tinham renda suficiente para isso", disse Wangari, com sua fala cadenciada, embora firme e com um tom de voz que, às vezes, lembra as famosas cantoras negras de jazz.

A seguir, alguns trechos desta conversa:

Foi a partir desta apuração que nasceu a idéia de plantar árvores?

Sim, desse modo elas teriam madeira suficiente para combustível. Pensei também que, se semeassem frutas, elas teriam comida, e que tudo isso seria o benefício colateral de se proteger o solo e evitar a desertificação. Assim nasceu, em 1977, o Green Belt (Cinturão Verde), um movimento que desde o início se envolveu nos problemas cotidianos, como a comida, a água, as doenças. Nasceu com a consciência de que esses problemas existem porque o meio ambiente está tão deteriorado que já não pode sustentar a vida. Se falta água é porque os bosques foram destruídos sem controle: o regime de chuvas mudou, o nível da água baixou e a quantidade de alimento diminuiu perigosamente.

Isto e sua luta pela democracia a transformaram na inimiga número 1 do regime ditatorial?
A ditadura nos perseguiu desde o início. Certos governos têm medo quando os pobres se organizam. Sentem isso como uma ameaça. Por isso lutamos pela democracia.

Agora pode-se dizer que há democracia?

Continuamos trabalhando para isso. Temos um sistema multipartidário, um Parlamento que funciona e um governo que escuta os cidadãos. Em termos gerais, podemos dizer que hoje muitas vozes distintas podem se expressar. Não é um governo 100% perfeito, mas seguimos em frente.

Qual é hoje o principal desafio do Quênia?

Erradicar a pobreza e a desigualdade. Nossa riqueza em recursos naturais deve ser compartilhada de forma eqüitativa. Sabemos que existem aqueles que são excessivamente ricos à custa dos demais, que, geralmente, são a maioria e pobres. O problema é que, nos 24 anos da ditadura de Moi, toda a infra-estrutura foi destruída. As pessoas empobreceram e perderam a capacidade de influir e exigir. A corrupção se apossou de tudo. Vamos levar um tempo para normalizar o país. Agora o desafio é este: reconstruir o Quênia.

A senhora falou de recursos naturais. A África e a América do Sul têm em comum sua enorme riqueza, por exemplo, de reservas de água potável, um bem cada dia mais escasso. Há quem tema que certos países poderosos procurem saquear esses recursos como se fez no passado, por exemplo, com o ouro.

Na África, este é um problema conhecido. Sabemos que nos tiraram os recursos e que o benefício dessa exploração não ficou com os africanos. Isto foi possível porque nossos líderes não se envolveram com o povo, e sim com seus próprios interesses, e mantiveram nossa população na ignorância sobre o que se passava. Por isso a democracia é tão importante. Agora podemos ter esperanças de que a África seja dos africanos, seja protegida da espoliação. Por isso pedimos à comunidade internacional que promova a justiça e a eqüidade. Não só em seus países, mas em todos.

Olhando um pouco para o que está acontecendo mundialmente, pareceria que a comunidade internacional tem exatamente a intenção oposta.

É certamente mais difícil no atual processo de globalização, que tende a concentrar capital, tecnologia e poder em alguns poucos países, e para isso eles precisam de nossos recursos. Por isso deve-se lembrar os líderes internacionais de que eles têm um dever moral. É preciso insistir diante das potências que a força não lhes dá direitos e que, se não se tomar consciência, o mundo inteiro, e sobretudo nossas populações, terão um futuro nefasto. A designação do Prêmio Nobel tem esta mensagem: "Vocês, os desamparados, não sucumbam frente aos poderosos e ricos. Continuem a luta."

O que a senhora vai dizer aos líderes internacionais quando receber o prêmio em Oslo?

Ainda não pensei. Mas tenha isto claro: enquanto houver no mundo gente que vive mal, ninguém estará seguro. Isso vale tanto no plano internacional quanto no local, quer dizer, enquanto houver quenianos abandonados, não protegidos pelo Estado, ninguém poderá estar seguro.

Como a senhora vê o futuro?

Tenho esperanças. Mesmo em países como os Estados Unidos, há uma enorme quantidade de gente que luta contra as injustiças que existem em outros lugares do mundo, gente que eleva sua voz contra a desigualdade e está do nosso lado. Veremos o que acontece em novembro com as eleições. Mas creio que temos de agradecer aos cidadãos americanos que se preocupam conosco, fazer-lhes saber que apreciamos seus esforços. É bom que os EUA não sejam uma ditadura e que as pessoas ainda possam elevar sua voz para dizer não. Apesar de o país ser tão poderoso, há muitos americanos que sabem que os EUA não podem viver isolados, que eles precisam do resto do mundo.

Uma longa história de saque de valiosos recursos africanos

Néstor Restivo
El Clarín
Buenos Aireas

Desde que se soube que os australopitecos pisaram na Etiópia há 4 milhões de anos, fala-se da África como berço do homem. Mas já faz tempo que o continente apresenta os índices socioeconômicos mais miseráveis da humanidade. A região não se sai melhor no quesito meio ambiente, compartilhando com o resto do mundo problemas destinados a agitar este século.

Primeiro a colonização e seus saques; depois os modelos econômicos recentes agravaram as crises ambientais, diz a ONU. Nos séculos 18 e 19, os africanos sofreram um brutal tráfico de escravos, com milhões de vítimas. E para o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma), "grande parte da atual degradação ecológica africana é o legado de tempos menos favoráveis, incluindo o comércio de escravos e o colonialismo".

Depois que conquistadores como Cecil Rhodes (não confundir com W. Cecil Rhodes, do Citibank, um homem-chave da dívida do Sul nas duas décadas passadas) se estabeleceram na África e as potências européias dividiram o continente entre si, na Conferência de Berlim, em 1885, muitas empresas ocidentais começaram a explorar recursos naturais como diamante, ouro, cobre, urânio, cobalto, marfim e madeira. Congo, África do Sul, Angola, Zâmbia, Zimbábue e outros países drenaram riquezas, mas hoje o continente deve US$ 400 bilhões e é o mais empobrecido.

Segundo o Pnuma, as selvas da África têm a mais veloz taxa de desflorestamento do mundo, o que subtrai recursos que melhorariam a vida dos africanos.

A falta de qualidade e de acesso à água, apesar dos rios e lagos, são os dois fatores que mais limitam o desenvolvimento. Isso detém o avanço agroindustrial e agrava pandemias. Há uma vulnerabilidade extrema a alterações do clima e à mudança climática mundial. Isso aumenta as inundações, as secas e a desertificação.

Apesar da rica biodiversidade, o continente perde rapidamente suas fontes biológicas, com danos ao hábitat, exploração excessiva de recursos ou atividades ilegais, o que apenas compensa o valioso conhecimento nativo sobre os recursos. Os laboratórios multinacionais, por sua vez, aproveitam a flora africana.

Em sua costa, há exploração excessiva e poluição. A maioria vive em áreas rurais, mas a urbanização não planejada gera problemas. Para o Pnuma, foram obscurecidas formas de vida nativas que inerentemente respeitam mais o meio ambiente do que algumas formas modernas de desenvolvimento. E numa região onde os pobres e enfermos são maioria, depende-se mais das fontes naturais para a sobrevivência.

OESP, 24/10/2004, Vida, p. A22

As notícias aqui publicadas são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos. Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.