VOLTAR

Voz guarani

O Globo, Prosa e Verso, p.6
06 de Mar de 2004

Voz guarani
Kaiowás e ñandewas lutam contra a depressão para resistir

O povo guarani que habita o Mato Grosso do Sul nunca aceitou o confinamento imposto pelos brancos. Há anos a reação mais forte do índio tem sido silenciosa e dramática, mas incapaz de provocar mudanças: o suicídio. As estatísticas indicam mais de 200 casos nos últimos 12 anos, como o do adolescente que se enforcou na árvores, depois do casamento, e deixou escrito na terra, sob seus pés: "Eu não tenho lugar". Desde dezembro, porém, o clamor pela terra mudou de tom. Numa ação que surpreendeu os fazendeiros da região, os guaranis fizeram a maior mobilização de índios já vista no estado para ocupar, de uma só vez, 15 propriedades no extremo sul do Mato Grosso do Sul. Na parede de uma das fazendas ocupadas, escreveram: "aldeia YvyKatu", que significa "nossa terra", "nosso lugar".

Cerca de 32 mil guaranis kaiowás e ñandewas vivem hoje no Mato Grosso do Sul, o segundo estado brasileiro em população indígena. Ocupam 18 áreas, num total de 39 mil hectares. O historiador Antônio Brand, da Universidade Católica Dom Bosco (Campo Grande), afirma que o espaço é mínimo para o tamanho da população. Acuados e cansados de esperar a demarcação prometida, os índios optaram então por invadir como forma de pressão. Para Brand, porém, a explicação é mais ampla:

- Como nos demais lugares, a cidadania também chegou às aldeias do Mato Grosso do Sul e levou os índios a se organizar.

Enquanto o suicídio figurou como principal conseqüência da falta de terra, as autoridades pouco fizeram para resolver o problema. Só no ano passado, a Fundação Nacional de Saúde (Funasa) registrou 51 suicídios entre os guaranis do Mato Grosso do Sul. Nos últimos três anos, 80. A morte, neste caso, tem sido o desfecho de uma trajetória dramática. Confinados em espaços cada vez mais diminutos, os índios começam como bóias-frias, tornam-se alcoólatras e depois mendigos, enlouquecem e muitos desistem de viver.

- Claro que não é uma explicação matemática. Dizer que o suicídio está associado diretamente à questão da terra é uma visão simplista. Mas é possível dizer que, na raiz do problema, está o confinamento e a conseqüente destruição da estrutura social - disse Brand.

Sem espaço para plantar, os guaranis se assalariaram como bóias-frias. São obrigados a passar pelo menos dois meses fora de casa, trabalhando em usinas de açúcar e álcool. Quando voltam, não recuperam a relação que mantinham antes com a família.

Os guaranis no Brasil se espalham por todos os estados do sul e do sudeste. Mas só no Mato Grosso do Sul (centro-oeste) há uma concentração expressiva. Durante 70 anos, entre os séculos XIX e XX, depois da Guerra do Paraguai, a região foi dominada pela Companhia Matte Larangeiras, que chegou a controlar seis milhões de hectares de terras e empregar centenas de guaranis pagos com comida e banha. Nos anos 40, com o fim do monopólio da erva-mate, o governo Vargas distribuiu terras para colonos gaúchos, catarinenses e paranaenses. Os forasteiros empurraram os índios para áreas mais distantes.

Antônio Brand explica que o processo de demarcação de terras deste povo tem sido muito lento. De 1915 a 1928, foram demarcadas oito áreas pelo antigo Serviço de Proteção ao Índio (SIP), somando um total de 18 mil hectares. Depois disso, só nos anos 80 foram demarcadas mais áreas, num total de 21 mil hectares.

Passados os dois momentos, a demarcação estacou. Mais dez áreas estão sendo reivindicadas. Uma delas é a que gerou o conflito entre fazendeiros e índios de Porto Lindo, aldeia do extremo sul, na fronteira com o Paraguai, onde vivem três mil pessoas. Os guaranis querem a ampliação da reserva de 1.600 hectare para 9.470 hectares.

- Infelizmente, a história destes povos tem demonstrado que as demarcações só avançam quanto há pressão. Os índios já não acreditam mais nas autoridades e cansaram de esperar. Por isso, não dá para dizer que a invasão dos guaranis foi surpresa. Diante da inoperância das autoridades, era mais do que esperada - disse Brand.

Das 15 fazendas invadidas em dezembro, os índios permanecem hoje em apenas três. Eles recuaram depois de um acordo com o Ministério Público Federal e agora aguardam uma solução definitiva para as suas terras. Por pouco, a ação guarani não virou tragédia. Semanas depois da invasão, fazendeiros de Iguatemi e Japorã, municípios próximos, bloquearam a estrada que divide as duas cidades para impedir a passagem dos índios. Os invasores não se intimidaram. Armados de arcos e flechas, bordunas, foices e facões, abriram caminho a força.

Segundo o antropólogo Fábio Mura, contratado pela Funai, a área realmente pertence aos índios. Com um grupo de trabalho, ele passou 20 dias fazendo um levantamento de campo. Ouviu os índios mais velhos, procurou vestígios dos guaranis e documentos de época. Um dos mais valiosos, segundo ele, foi produzido em 1927 por um funcionário do antigo Serviço de Proteção ao Índio (SIP), que menciona a presença da etnia na área.

Chico Otavio esteve no Mato Grosso do Sul no fim de janeiro

O Globo, 06/03/2004, Prosa e Verso, p. 6

As notícias aqui publicadas são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos. Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.