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A voz dos índios

O Globo, Opinião, p. 7
Autor: TERENA, Marcos
16 de Jan de 2006

A voz dos índios

Marcos Terena

Os povos indígenas do Brasil se sentem orgulhosos por pelo menos dois motivos nesse início de ano. Primeiro, o diagnóstico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que proclama às quatro direções do vento - houve um crescimento inédito da população indígena no país. O outro, a eleição histórica de Evo Morales, do povo Aymara, da Bolívia, como primeiro indígena a se tornar presidente da República em todas as Américas.
O discurso afirmativo de Evo Morales tende a materializar um novo despertar à auto-estima indígena, a valorização da identidade cultural como povos originais e o amor à "Pachamama", ou Mãe Terra. Não se pode desconsiderar o reflexo direto que se impõe a partir de agora em relação aos direitos indígenas em países como o Brasil, inclusive no acesso de representação e empoderamento político.
Com tal estímulo, no Equador e Peru, o movimento indígena se organiza com um perfil que amplia direitos históricos e humanos em direitos coletivos, sociais, econômicos, ecológicos e de representação política. Sendo maioria nesses países, esses indivíduos se descobrem como peça chave de ponto de equilíbrio e não de ruptura que decide o futuro de muitos políticos, até a Presidência da República. São indígenas que aplicam o princípio básico da tese democrática: votar e ser votado.
Como indígenas aliados de um pensamento a favor da paz, da tolerância, do meio ambiente e de uma economia auto-sustentável, sabemos das expectativas amigas e inimigas diante da eleição de um indígena como mandatário de uma Nação. O presidente Evo Morales não pode ser responsável pelos 500 anos de fracassos na relação índios e brancos e nem deve, em nome da "governabilidade", romper com seu passado ou trair a soberania de sua origem tradicional. Ao agir na busca de acertar, mesmo que para isso incorra em erros, o importante é não se deixar levar pelas mordomias do poder ou das alternativas de ideologias fracassadas do "homem branco", sejam elas de esquerda, direita ou centro, quase sempre comprometidas com o grande capital que vitima sempre os mais pobres - independentemente da cor, raça, etnia ou crença.
Convém observar que, em toda história indígena, valores e imagens apropriadas a cada situação na relação com o mundo colonizador sempre foram concebidos como verdade pelo próprio sistema intelectual do colonizador, mesmo que de boa fé. Daí o mito do "grande chefe", "índio ideal" ou do "bom selvagem".
Por outro lado, de maneira folclórica e também corrosiva, do "índio preguiçoso", "indolente", "incapaz", contribuindo sistematicamente para anular a realidade indígena e de seus valores humanos, tão afáveis e sinceros para as novas relações, como para o rompimento diante da traição.
Se um país como a Bolívia, de maioria indígena Aymara, Quéchua ou Guarani, elege um indígena para o cargo máximo, no Brasil, mesmo no governo de um ex-companheiro da classe popular e batalhadora como Lula, a voz indígena nunca foi ouvida e muito menos respeitada, cabendo-nos o calvário do paternalismo e a deterioração de nossos recursos ambientais e minerais pela falta de um programa indigenista oficial.
Mesmo assim, os povos indígenas brasileiros não admitem ser tratados como parte do passado, mas do futuro, principalmente de um país megadiverso como o nosso. É tempo de reconhecer o universo de 230 sociedades distintas que detêm direitos reconhecidos a 13% do território nacional, onde estão valores de uma ciência e conhecimentos tradicionais de uso socioeconômico sustentável do meio ambiente, e que requerem agora não mais apenas a condição de "clientes" da instituição indigenista, mas de "sócios majoritários" com direito à presidência da entidade.
O quadro apresentado pelo IBGE, que mostra o crescimento populacional indígena e identifica segmentos então invisíveis em centros urbanos, e o fator Evo Morales obrigam, até por uma questão de elegância e respeito, o governo federal e a sociedade nacional a reorganizarem suas agendas de diálogos com os povos indígenas. Esse movimento pode ser facilitado pelas lembranças daquele movimento iniciado no final dos anos 70 por um grupo de estudantes indígenas em Brasília, que souberam juntar tradição e modernidade para resgatar a profética frase da União das Nações Indígenas: "Posso ser o que você é, sem deixar de ser quem sou!"

Marcos Terena é fundador da União das Nações Indígenas e Presidente do Comitê Intertribal (ITC).

O Globo, 16/01/2006, Opinião, p. 7

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