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A voz da vítima

OESP, Notas e Informações, p. A3
18 de Fev de 2005

A voz da vítima

O sonho de quem investiga um assassínio é ouvir a vítima. Os encarregados de elucidar a execução da missionária católica nascida nos EUA e naturalizada brasileira, Dorothy Stang, podem chegar perto desse ideal impossível se derem atenção ao depoimento que ela prestou à CPI da Terra, em maio de 2004, e que foi mantido em sigilo a pedido dela própria por questões de segurança, que, afinal, se mostraram inócuas, uma vez que ela seria executada pelos pistoleiros que havia procurado na véspera do crime para tentar persuadi-los a não cometê-lo. Trazido agora a lume, esse depoimento não deixa dúvidas quanto ao motivo do atentado: a luta da irmã Dorothy contra a devastação da floresta amazônica por madeireiras.

No depoimento em tela, ela contou que a empresa Copam Madeiras e sete pessoas extraíam ilegalmente madeira em Anapu e agiam com violência contra pessoas da região - violência da qual seria vítima. "Eles entram aqui com combustível, todo o maquinário está por aqui devastando tudo", disse ela na ocasião, conforme registra gravação, à qual Rosa Costa, do Estado, em Brasília, teve acesso. No mesmo depoimento, a freira não poupou as autoridades por sua omissão: "(Madeireiros e posseiros) sabem que o problema vem de longa data e ninguém faz nada. Então, eles continuam porque isso não é de hoje, eles sabem que se fazem esses levantamentos, mas tudo fica no mesmo." Nove meses depois, o presidente da CPI, senador Álvaro Dias (PSDB-PR), disse que, na ocasião em que o depoimento foi prestado, alertara o Ministério da Justiça quanto à necessidade de enviar uma força-tarefa para proteger a população, mas nada foi feito: "Foi preciso que ocorresse um crime brutal, com repercussão internacional, para finalmente o governo cumprir o seu dever."

Os fatos, relatados pela vítima e relembrados pelo presidente da CPI que a ouviu, desmancham o castelo de areia de propaganda oficial que o chefe da Casa Civil, José Dirceu, tentou erguer, ao atribuir a motivação do crime a uma eventual represália dos criminosos à repressão policial contra a atividade ilícita deles. E desmistifica, de forma categórica e definitiva, a farsa ideológica cinicamente encenada pela hierarquia católica, que tenta utilizar o cadáver ensangüentado da missionária como um estandarte rubro para defender a reforma agrária. Após a divulgação da nota oficial da CNBB, que já comentamos aqui, o presidente da Comissão Pastoral da Terra (CPT), dom Tomás Balduíno, assumiu uma postura de papagaio de pirata da desgraça alheia para inculpar o agronegócio pelo assassínio da freira e pela violência que impera numa região que, apesar da notória ausência do Estado (que, aliás, a vítima, o prelado e o senador condenaram), não está entre as piores zonas de devastação da Amazônia. Pelo menos foi isso que registrou o deputado José Geraldo (PT-PA), segundo quem 80% da floresta na chamada Terra do Meio está preservada.

Esse parlamentar petista, membro da CPI da Terra, participou da comitiva que compareceu ao enterro da missionária e que foi pedir ao ministro da Defesa e vice-presidente José Alencar (no exercício da Presidência no sábado do crime, pois o presidente Luiz Inácio Lula da Silva estava fora do País) proteção policial para quatro ativistas de movimentos sociais no Pará. Segundo ele, "o grande motivo da grilagem é a madeira". Essa constatação (assim como a denúncia da vítima e a queixa do presidente da CPI) dá a dimensão do escárnio das tentativas meramente retóricas feitas pelo presidente da CPT para tentar envolver, sem indício nenhum, o agronegócio na guerra entre grileiros e posseiros na região: "O agronegócio é violento. Onde o agronegócio é mais forte também é mais forte a violência. Não é só violento contra as pessoas, mas contra a natureza e a floresta."

A óbvia tentativa de tornar a irmã Dorothy Stang mártir da violência entre latifundiários improdutivos e miseráveis trabalhadores rurais sem-terra, feita por um alto dignitário da Igreja Católica no Brasil, viola uma das virtudes cristãs fundamentais: o amor à verdade. A verdade é que nem o agronegócio, nem muito menos o MST, tem o mínimo interesse pelas terras cobertas pela floresta amazônica. O que o MST deseja são as terras cultivadas pelos "agronegociantes" - de preferência em São Paulo, Paraná e Rio Grande do Sul. Dom Tomás Balduíno age como os fariseus execrados por Cristo.

OESP, 18/02/2005, Notas e Informações, p. A3

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