VOLTAR

Volta grande para não chegar...

O Globo - oglobo.globo.com/blogs/nossoplaneta
Autor: BENSUSAN, Nurit
04 de Set de 2014

Volta grande para não chegar...

Nurit Bensusan -

Quem é que nunca se deparou com algo que possui um significado simbólico que transcende a própria coisa? É assim, por exemplo, que um casaco que foi usado por Elvis Presley vale muito mais do que um igualzinho que Elvis jamais vestiu. Um outro exemplo são as espécies de animais que ocupam um lugar especial no imaginário das pessoas, como pandas, elefantes africanos e tigres de bengala. E há também lugares que são emblemáticos e despertam toda sorte de ideias na cabeça da gente.
Entre eles, há locais que são reconhecidamente frutos da história humana, como as pirâmides do Egito, Machu Picchu, no Peru, ou Angkor, no Camboja. Outros, são paisagens naturais, como a Antártica, as praias do Havaí e o Grande Cânion, nos Estados Unidos. E há ainda aqueles onde as coisas se misturam e a história humana se confunde com a própria paisagem. É de um desses lugares que eu quero falar...

Um lugar desse tipo é a Amazônia. Desperta a imaginação das pessoas, mas poucos são aqueles que se dão conta de que o que vemos hoje nessa exuberante floresta é resultado de alguns milhares de anos de interação entre a biodiversidade e a ocupação humana. E, no interior dessa imensa floresta, há lugares e lugares... e um deles é o rio Xingu.

Esse rio, que nasce no Mato Grosso, atravessa o Pará e desemboca no rio Amazonas e que tem 2,7 mil km de extensão, está umbilicalmente ligado à história dos índios no Brasil e dos contatos entre eles e a sociedade envolvente (tradução: nós, os não-índios). Ali nasceu a primeira Terra Indígena, o Parque Indígena do Xingu, pela mão dos irmãos Villas-Bôas, em 1961. Por muito tempo, o rio Xingu foi conhecido como o rio dos índios e despertou mundo afora a imaginação e a curiosidade das pessoas: um lugar selvagem? Inacessível? Misterioso?

Hoje, o nome Xingu remete a coisas diferentes: o filme, que conta a história dos irmãos Villas-Bôas; a cerveja que leva esse nome; e, principalmente, a hidrelétrica de Belo Monte. Controversa, como sempre foram os projetos de "desenvolvimento" nessa região, as obras caminham, aos trancos e barrancos, talvez justificando a piada de chamar a hidrelétrica de "belo monte de problemas". Condicionantes ambientais não são cumpridas. Pessoas nas cidades e na floresta são prejudicadas. Estudos mostram que Belo Monte não vai gerar uma quantidade de energia significativa por causa da sazonalidade da vazão do rio. Muitos estão de acordo que a obra é um verdadeiro desastre.

Resta, diante disso, perguntar: por que Belo Monte? Para além da resposta mais pragmática, e certamente a pior, relacionada com a necessidade de energia para o "desenvolvimento" do país, acho que vale a pena considerar a possibilidade de que a concepção e a construção de uma hidrelétrica no rio Xingu seja uma forma proposital de romper com a ideia de um rio dos índios, "virgem", sem nenhum barramento, ocupando um espaço simbólico na cabeça de parte dos brasileiros - índios e não-índios - e funcionando como peça de resistência a esse modelo de "desenvolvimento" trilhado pelo Brasil. Agora talvez seja tarde demais para resistir a construção de Belo Monte, mas o sumiço da Volta Grande do Xingu, que terá sua vazão reduzida em mais de 80% por causa de Belo Monte, poderá, talvez, se consolidar como um símbolo dos equívocos e anacronismos desse modelo.

Acreditando nisso, eu vou conhecer a Volta Grande do Xingu (numa canoada organizada pelo ISA), antes que ela desapareça, e para que, pelo menos para mim, ela permaneça como um emblema de tudo que esse país poderia ter sido e não foi...

O Globo, 04/09/2014, Nosso Planeta

http://oglobo.globo.com/blogs/nossoplaneta/posts/2014/09/04/volta-grand…

As notícias aqui publicadas são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos. Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.