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"Vocês, caraí (brancos) não pediram licença para entrar aqui"

O estado de S. Paulo-SP
04 de Nov de 2001

Disse um velho índio, durante audiência no Tribunal Federal de Justiça

O Cimi surgiu em 1977. Mas o que é o Cimi? "Somos um órgão da CNBB, um grupo missionário que presta assessoria aos índios e procura conscientizá-los de seus direitos e dos cuidados que devem tomar na luta contra o governo e os fazendeiros; sabemos que a luta será longa e que não hão de faltar contratempos, mas vamos em frente", explica Maucir, que defendeu uma dissertação de mestrado intitulada O Direito Indígena no Ordenamento Brasileiro: Uma Obrigação da União. Segundo ele, existe uma unanimidade entre antropólogos, indigenistas, ONGs e Cimi em relação à atitude e as palavras de um índio velho que, numa audiência do Tribunal Federal de Justiça, afirmou: "Nosso direito é sagrado!" E perguntou: "Se vocês, caraí (brancos), não pediram licença para entrar aqui, como é que agora querem nos dizer o que podemos e o que não podemos, o que é nosso direito e o que não é?" O coordenador-geral do Cimi em Mato Grosso do Sul, Nereu Schineider, endossa os argumentos de Maucir. "Os índios estão encurralados em apenas 600 mil hectares do total de 30 milhões de hectares que compõem o Mato Grosso do Sul; será que eles não teriam direito a pelo menos 2 milhões de hectares?" sugere. Na semana passada, o presidente da Funai, Glênio da Costa Alvarez, esteve em Campo Grande para reunir-se com representantes do governo estadual, de ONGs, de aldeias indígenas e da Cimi. Declarou que o Mato Grosso do Sul é o Estado com o maior número de conflitos entre índios e fazendeiros, tendo superado Rondônia, o campeão anterior. "Existem 54 áreas de litígio entre os dois grupos", garantiu Alvarez, confirmando dados fornecidos pelo Cimi. Os caiovás-guaranis e os terenas são os que mais reivindicam terras nos municípios de Paranhos, Caarapó, Dourados, Juti, Dois Irmãos do Buriti e Sidrolândia. O presidente estava muito contrariado porque um laudo da Funai, que ampliava de 2 mil para 17 mil hectares a reserva indígena terena em Dois Irmãos do Buriti foi desconsiderado pela Justiça. "Os fazendeiros estão apenas adiando o que acontecerá em breve", previu Alvarez, em tom ameaçador. O juiz Odilon de Oliveira, da 3.ª Vara Federal de Campo Grande, deferiu liminar contra a desapropriação, reconhecendo que os proprietários não tiveram o direito de contestar o laudo. Os terena reclamam os 15 mil hectares de que querem se apossar desde março do ano passado, quando tomaram cinco pessoas como reféns e invadiram uma área de 100 hectares, onde estão até agora. As terras que cobiçam pertencem a 32 proprietários. O juiz Oliveira também ordenou a retirada dos caiovás-guaranis que tomaram a fazenda Brasília do Sul, depredada e incendiada sob o comando de um certo Marco Veron, paraguaio que se diz cacique e promove tumultos em Caarapó e Juti. Defesa - Os advogados Luiz Fuzaro e Jonas Ricardo Correia, que atuaram em defesa do proprietário dessa fazenda, lembram que somente em 1910, quando nasceu o Serviço de Proteção ao Índio (SPI), se começou a considerar os silvícolas merecedores de cuidados oficiais. Antes da Independência e mesmo no Império, as áreas por eles ocupadas eram consideradas devolutas. E assim continuaram sendo até a Constituição de 1934, que lhes garantiu as terras onde "se achem permanentemente localizados". Portanto, esclarecem os advogados, "não tinham direito a terras que tivessem ocupado no passado, mas já não ocupassem, ou onde não tivessem localização permanente". A Constituição atual menciona "terras tradicionalmente ocupadas pelos índios". Os advogados entendem que o advérbio "tradicionalmente" significa "não as terras em que os índios estiveram localizados ou habitaram no passado; mas as por eles ocupadas no momento de incidência da lei magna". "A Funai, ao tentar demarcar propriedades protegidas pela Constituição com fundamento em fatos passados, fere o princípio do direito adquirido, do ato jurídico perfeito e da coisa julgada, somando a isso a violação do direito de propriedade." O assessor jurídico do Cimi contesta esse ponto de vista: "O direito do índio não prescreve, pois se funda na imemoriabilidade", diz Maucir Paoletti, enfatizando que "se houve força maior impedindo a continuidade da posse, isso não atrapalha o direito que eles têm; os fazendeiros e colonos do Mato Grosso do Sul possuem títulos sólidos, outorgados pelo governo do Estado ou da União, por isso o Poder Público deve achar o jeito de indenizá-los". O ex-deputado e atual prefeito de Dourados, Laerte Tetila (PT), geógrafo e professor da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul, igualmente reconhece os direitos de fazendeiros e colonos. Mas, afirma que "nenhuma escritura se sobrepõe à posse da terra indígena, que é imemorial". Tetila, que administra um município de 170 mil habitantes, tem a "responsabilidade cidadã", -- já que as terras de índios estão sob o domínio da União e a administração da Funai - de acompanhar os problemas de duas aldeias. Uma, encostada na cidade, abriga 9 mil caiovás e terenas em 3.500 hectares. "É um campo de concentração humano, o pior da América Latina, sem espaço vital para a sobrevivência dos moradores", denuncia. A outra, no distrito de Panambi, reúne 251 índios, crianças e adultos, chefiados pelo cacique Paulito, que tem mais de 110 anos, em 60 hectares. "Acontece que nos anos 50, o governo federal dividiu 1.200 hectares, pertencentes à aldeia de Panambizinho, em lotes de 30 hectares; deu dois lotes para os índios e nos demais instalou 38 colonos oficialmente titulados", conta Tetila. "Há dois anos a Funai provou que a área era indígena e agora o governo precisa indenizar os colonos em R$ 8 milhões." O prefeito esclarece que as terras das duas aldeias são de lactosolo eutrófico, roxo, de primeira qualidade, ao contrário da parte oeste do Estado onde predomina o lactosolo distrófico, típico de campo e cerrado. Também diz que os índios querem refazer seus "tekohás", espaços que abrangem o núcleo do aldeamento e as terras circundantes "sempre da melhor qualidade, com boas águas, num tamanho suficiente para a caça, a pesca, a vida". Mas se esquece de que na aldeia de Dourados os índios não cultivam nada e arrendam suas terras aos colonos plantadores de soja. No Panambizinho, a área foi demarcada como indígena por um decreto de Collor em 1991. Os colonos não saíram. Em 1996, um novo decreto (n.o 1.775) assinado por Fernando Henrique Cardoso e pelo então ministro da Justiça, Nelson Jobim, anulou o decreto de Collor e determinou que a demarcação de terras tradicionalmente ocupadas pelos índios "será fundamentada em trabalhos desenvolvidos por antropólogo de qualificação reconhecida e por um grupo técnico composto preferencialmente por servidores da Funai, que deverá realizar estudos de natureza etno-histórica, sociológica, jurídica, cartográfica, ambiental e o levantamento fundiário necessários à delimitação". As demandas entre agropecuaristas e índios oferecem desvantagem aos primeiros. As terras por eles ocupadas não serão desapropriadas; serão apenas demarcadas pela Funai. A diferença entre um verbo e outro está na indenização. Que incide apenas sobre as benfeitorias do imóvel. Pois o solo ocupado pelos índios é domínio da União. Que não tem por que pagar pelo que é seu. (C.S.A.)

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