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A violência da omissão

O Globo, Opinião, p. A10
15 de Fev de 2005

A violência da omissão

O estarrecedor, brutal e covarde assassinato da religiosa Dorothy Stang - morta com seis tiros em uma provável emboscada no sábado - é mais um perturbador sintoma da leniência das instituições com uma luta violenta no campo, travada há várias décadas na Região Amazônica. Também constitui uma evidência preocupante de que sucessivos governos têm conduzido muito mal as resoluções dos conflitos decorrentes do processo de reforma da estrutura agrária do país.
É bastante extensa, por exemplo, a relação de crimes cometidos no Pará, motivados pelos conflitos fundiários que se arrastam na região, sob o olhar inerte do governo e da Justiça paraenses. A missionária americana foi mais uma vítima da negligência oficial. Com o agravante de que, desde junho do ano passado, o Ministério da Justiça tinha conhecimento de que Stang e agricultores, assentados na região de Anapu, estavam ameaçados de morte. A resposta federal revelou-se obviamente inadequada: decidiu-se que se criaria um grupo de trabalho para analisar o caso. O Ministério Público Federal no Pará também já havia avisado as autoridades do Estado sobre as ameaças à missionária.

A brutalidade, viu-se, foi bem mais rápida. Depois do assassinato, o presidente Lula compensou a falta de firmeza inicial: acionou a Polícia Federal e enviou ministros ao Pará. Ontem, convocou integrantes de oito pastas para uma reunião, a ser realizada hoje na Casa Civil, para analisar os primeiros relatórios sobre a investigação do assassinato. Forçado a reagir, o Palácio do Planalto pretende federalizar as investigações e criar uma força-tarefa para acompanhar a apuração judicial.

É desastroso para o país que o Estado ofereça sucessivos exemplos de que age efetivamente apenas sob reação de tragédias. A vontade política costuma surgir com notável vigor sob o calor da desgraça. A reboque dos problemas, os governos mostram-se incapazes de responder às demandas da sociedade no mundo agrário e antecipar-se às atividades criminosas incrustadas no campo. O episódio emite, portanto, um alerta: é preciso reagir com maior empenho aos conflitos fundiários, em especial na área do assassinato.

Desde a década de 70, sublinhe-se, fazendeiros passaram a ocupar terras devolutas na região com autorizações expedidas pelo próprio governo federal. Estava em jogo ali a política de expansão da fronteira agrícola e de ocupação da Amazônia - estratégia incentivada pelo regime militar. Nos últimos anos, o Incra passou a usar essas terras para assentamentos rurais, despertando a reação dos fazendeiros. O Ibama vem ainda desenvolvendo ações de regularização fundiária e implementação de reservas naturais, limitando, por exemplo, a retirada da madeira. São ações necessárias. Mas a tais medidas convém garantir a segurança, a ordem e o respeito à propriedade e à vida. Na turbulenta reforma agrária brasileira, ambos vêm sendo ignorados.

Cabe agora apressar a implementação de postos avançados na região, com integrantes do Exército, da Polícia Federal, do Ibama e do Incra - tarefa agora prometida pelo Planalto. Requer ainda uma ação mais decisiva da Justiça. Muitos dos crimes cometidos no Pará nos últimos 20 anos estão impunes. Irrigam, assim, o terreno fértil para a violência brutal e injustificável que destrói vidas inocentes e fere implacavelmente a imagem do país.

JB, 15/02/2005, Opinião, p. A10

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