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Vidas à margem

O Globo, Rio, p. 10-11
25 de Jun de 2012

Vidas à margem
Famílias moram na beira de cursos d'água sob ameaça de poluição e enchentes

Rafael Galdo
rafael.galdo@oglobo.com.br
Rogério Daflon
daflon@oglobo.com.br

RIO - Pedaços de madeira falseiam barracos. Às vezes há casas de tijolos, mas mal acochambradas. E, diante da porta ou das janelas, um rio de esgoto e lixo é a ameaça constante de enchentes e doenças. Na favela Canal do Anil, em Jacarepaguá, cerca de cinco mil moradores vivem em condições subumanas. E, com luxuosos condomínios da Barra e instalações olímpicas por perto, a vida ali parece que vai afundar a qualquer momento. Situação semelhante é enfrentada por uma numerosa população ribeirinha, que se espalha às margens de rios em todo o estado.
No Canal do Anil, poucos centímetros separam o piso do lar do quitandeiro Moisés Vieira da putrefata água do rio. No meio da casa, um corredor se abre para o canal, bem perto de onde canos despejam mais esgoto no rio. A família inteira mora numa espécie de sobrado de madeira, com dois andares que desafiam a lógica da engenharia.
- Eu mesmo construí. Tenho muito orgulho disso. Meu esgoto vai para o rio, porque é como faz todo mundo aqui. Nunca ninguém veio à comunidade fazer ligação de esgoto - afirma Moisés, que diz sonhar com a promessa de ganhar uma casa do governo. - Há cinco anos, um funcionário da prefeitura cadastrou minha família para receber uma casa em outro lugar. Só saio daqui se tiver algo certo.
Anos à espera de programa sociais
A história de Moisés retrata uma dura realidade da ineficácia das políticas habitacionais no estado. Como resultado, os mais pobres se deslocam para áreas de risco, como encostas e beiradas de rio. Quando enxergados por programas sociais que prometem realocá-los, muitas vezes esperam anos sem ver uma solução. Apesar do grande problema social, o IBGE não contabiliza, de forma segmentada, a população ribeirinha em seus censos.
No Complexo de Manguinhos, a apenas oito quilômetros do Centro do Rio, 18 comunidades ficam encravadas à beira dos rios Jacaré e Faria-Timbó e do Canal do Cunha. Ali, de acordo com o censo feito pelo governo do estado em 2009, a população no conjunto de favelas é de cerca de 31 mil pessoas. Mas não se sabe quantos vivem à beira dos três cursos d'água.
Na entrada dessas favelas, a pobreza já se apresenta. Mas é nas margens dos rios que a miséria revela um contexto assustador. Moradora de um barraco suspenso por madeiras improvisadas, bem perto das águas do Faria-Timbó, em Mandela I, Carmem Lúcia Mendonça, que está desempregada, vai aos prantos ao relatar seu dia a dia.
- É tudo muito precário. Minha casa é invadida por ratazanas imensas, lacraias, aranhas e mosquito - diz Carmem, que, a cada chuva, fica tensa, com medo de a casa cair na água. - Minha filha vai me dar uma neta. E queria sair daqui antes de ela nascer. Mas não vejo como. Os políticos me prometeram casa. Faz cinco anos. Até agora, nada.
Na Mandela I, quem estima o número de moradias à beira-rio é a associação de moradores local: em torno de mil domicílios. Já na Mandela de Pedra, num trecho conhecido como Avenida Atlântica, 60% dos moradores foram remanejados, sobretudo, para um conjunto habitacional do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). O restante continua à espera de uma casa nova. Três anos atrás, a previsão inicial, do estado, era de que o lugar se transformasse numa via ligando a Avenida Leopoldo Bulhões à Avenida Brasil. Agora, a promessa é de implantar um parque.
A ideia de criar áreas de lazer à beira-rio é uma diretriz do Projeto Iguaçu, do PAC, que, também com alguma descontinuidade, visa a reassentar as famílias instaladas próximas aos rios Sarapuí, Iguaçu e Botas, na Baixada. Ao coordenar um estudo sobre o projeto, Adauto Cardoso, pesquisador e professor do Observatório das Metrópoles do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (Ippur), da UFRJ, constatou que, em áreas pobres, quanto mais perto do rio, mais precária é a vida:
- Na beira dos rios, encontramos famílias com condições de renda mais precárias, pouca escolaridade e mais desestruturadas.
No Projeto Iguaçu, cerca de 1.500 residências foram retiradas de áreas de risco. Mas ainda há milhares de famílias às margens dos poluídos rios da Baixada. Só nas proximidades do Sarapuí, segundo levantamento feito a partir da base cartográfica do Censo 2010 do IBGE, são 16 comunidades, com uma população de aproximadamente 19 mil pessoas.
Mãe de sete filhos pequenos, a faxineira Janaína da Silva mora numa delas, a favela São Marcos, em São João de Meriti. As margens cheias de lixo e esgoto do Sarapuí são o quintal de sua casa. É ali que as crianças brincam e tomam banho de mangueira, já que na casa de Janaína não há chuveiro instalado. Sem muitas opções de lazer, quando faz muito calor é que surge uma de suas maiores preocupações: as crianças acabam pulando no rio.
- Fico desesperada, porque, além de ser um rio muito sujo, costumo ver corpos levados pela correnteza - afirma Janaína.
As declarações da faxineira revelam o outro lado de algumas comunidades à beira-rio: a violência. Em outra localidade do Sarapuí, Nova Jerusalém, em Duque de Caxias, uma mulher que não quis se identificar resolveu concretar a janela de sua casa que dá para o rio:
- Estava traumatizada de ver tantos corpos boiando no rio. Até pessoas ainda vivas, agonizando, já vi passar.
Até alguns diques foram ocupados
Perto dali, ficam algumas das favelas mais violentas da Baixada, conhecidas como Dique I e II. O abandono do poder público permitiu o domínio do tráfico, como pode ser ilustrado pela própria localização dessas comunidades. Nessas áreas, depois da grande enchente de 1988, que deixou 277 mortos e dois mil desabrigados no estado, foram construídos diques e canais às margens dos rios, a fim de escoar a água das cheias. Mas o sistema que deveria atenuar as enchentes acabou tomado por barracos.
Morador de Nova Iguaçu, o educador Aércio Barbosa de Oliveira, da ONG Fase, que atua na Baixada, lembra que os diques são do início dos anos 1990:
- O déficit habitacional da região levou famílias a ocuparem esses diques, pouco tempo depois de serem construídos.
Jorge dos Santos mora com a mulher e a filha num cômodo praticamente dentro de um dos canais do Sarapuí, na Dique I, em Caxias. Madeira, pneus, pedaços de telha de amianto e alguma estrutura de alvenaria sustentam a casa. A impressão, porém, é de que ela vai desmoronar.
- Aqui quando chove é um inferno - diz Jorge, que surpreende ao contar o que faz para sobreviver: - Faço ligações de água e esgoto a quem me pedir, para sustentar minha família.
Mas nem sempre são barracos como o de Jorge que ocupam margens de rios. O atual Código Florestal diz que, em faixas marginais, consideradas Áreas de Preservação Permanente (APPs), as construções devem estar a, no mínimo, 30 metros do leito. Mas em Rio das Pedras, prédios de até cinco andares, em alvenaria, estão sendo construídos na beira do rio. Mesmo com uma aparência de maior segurança, novamente se misturam péssimas condições sanitárias com a ameaça de enchentes.

Depois da tragédia, o retorno ao perigo
Sem opção de moradia, vítimas da enxurrada do ano passado voltam a viver na beira do Rio Preto

Rafael Galdo
rafael.galdo@oglobo.com.br
Rogério Daflon
daflon@oglobo.com.br

Há um ano e meio, imagens da pequena São José do Vale do Rio Preto, de pouco mais de 20 mil habitantes, correram o mundo. Na tragédia das chuvas na Região Serrana, com 918 mortos e mais de oito mil desabrigados, um vídeo do dramático resgate de dona Ilair de Souza, de 54 anos, salva da fúria das águas do Rio Preto por uma corda puxada por vizinhos, viraram o símbolo da maior catástrofe do estado. Dona Ilair sobreviveu, e o rio voltou a seu curso. Mas, correnteza abaixo, a destruição ainda expõe suas marcas. Na cidade, histórias daquele 11 de janeiro não são esquecidas, mas os erros do passado se mantêm. Muitos retornaram às mesmas margens arrastadas pelo aguaceiro que devastou a serra.
Casa nova sobre os escombros
Debruçados sobre o parapeito da varanda recém-construída, parentes do motorista Edneir Oliveira Faraco, de 51 anos, observam a água barrenta do Rio Preto. Há 17 meses, eles tinham perdido quatro casas na enxurrada. Suas ruínas estão no leito do rio. Mesmo assim, Edneir reconstruiu sua casa no mesmo lugar, e pretende fazer mais obras.
- Construímos um muro de contenção e atendemos às exigências de ocupação do terreno - afirmou Edneir, que, no entanto, já não tem mais o mesmo apreço pelo rio. - Fui criado aqui, amava esse rio e conhecia cada pedra dele. Hoje, não sei mais nada. Olho para o rio com desconfiança.
A tragédia vivenciada por Edneir foi a que causou mais mortes em 300 anos de enchentes no estado. Foi em setembro de 1711 que a cidade do Rio registrou sua primeira grande inundação, na mesma noite em que uma invasão francesa ocorria na cidade. Em abril de 1883, mais uma cheia, cujos estragos só seriam superados pela grande enchente de janeiro de 1966, com 250 mortos e 50 mil desabrigados nos então estados do Rio e da Guanabara. A partir daí, foram dezenas de catástrofes com intervalos bem mais curtos. Em quase todas elas, a mesma combinação: temporais e a cultura de se viver nas encostas ou na beira de rios.
Aluguel social para viver na beira do rio
Em São José do Vale do Rio Preto, quase toda a cidade é estruturada nas faixas marginais do rio. Boas casas e prédios de até cinco andares, com alicerces às vezes dentro d'água, criando verdadeiras palafitas de concreto. Ali na beira, enquanto algumas construções são erguidas ou reformadas, de outras restam resquícios daquele janeiro.
A casa de Maria Rosinete da Silva desapareceu. Na noite anterior à tempestade, ela ficara até tarde costurando. Cansada, passou a madrugada ressabiada com o intenso barulho do rio, mas não se levantou para ver o que acontecia. Só ao amanhecer ela percebeu que corria perigo. As águas do Rio Preto desceram a serra com força e volume que a costureira nunca tinha visto nem imaginado. Ela viu sua casa ser tomada pelo rio, e só se salvou por ter se agarrado numa corda, jogada providencialmente de cima de um morro por vizinhos.
- Tive muito medo. Até hoje, choro quando me lembro. Perdi minha casa e a confecção que mantinha dentro dela, com oito máquinas de costuras. Quebrei a perna, fiquei desabrigada num colégio por 17 dias, mais cinco meses em tendas do governo e, agora, vivo com R$ 400 de aluguel social numa casa que também encheu naquela tragédia - recorda Maria Rosinete, ressaltando que, com esse dinheiro, só consegue viver na beira do Rio Preto.
Maria Rosinete desenha um quadro preocupante. Segundo ela, as doações não foram repassadas à população pela prefeitura e o governo do estado não construiu casas. É uma de tantas promessas que não avançaram na Serra, apesar da liberação de verbas federais. Para Moacyr Duarte, pesquisador do Grupo de Analise de Risco Tecnológico e Ambiental da Coppe/UFRJ, o caso da serra mostrou a necessidade de se criar mecanismos de fiscalização dos recursos liberados de forma emergencial.
Ele frisa que a ocupação de cidades, como São José, repete um modelo histórico. A colonização, diz Duarte, avançou rios acima, e pequenas vilas surgiram nesses caminhos. Essas vilas se tornaram cidades, que aproveitavam a água para irrigação, abastecimento e navegação.
- O bairro de Campo Grande, em Teresópolis, estava ocupado desde a década de 1940, à beira do rio. Não se pensava numa tragédia por lá. E foi um dos lugares onde houve mais mortes. É preciso mapear as áreas suscetíveis a risco. E realocar a população ribeirinha. Como recurso transitório, a maior urgência é a de criar sistemas de alertas, com estratégias como o toque de sirenes em caso de chuvas fortes. Permitir que a população volte à área destruída é expô-la novamente ao risco.
Vale do Cuiabá, uma várzea fantasma
No Vale do Cuiabá, em Petrópolis, muitas das casas e até algumas mansões ficavam apertadas entre o Rio Cuiabá e uma antiga estrada vicinal. Foram justamente essas residências que ficaram submersas durante a enchente. Hoje, o vale dá a impressão, em muitos trechos, de uma várzea fantasma.
A localidade de Ponto Final é uma das representantes desse quadro. Das 22 casas que existiam lá, só oito ficaram de pé na tragédia. Hoje, o silêncio predomina. O mesmo ocorre no Buraco do Sapo, onde ficaram poucos habitantes. Um deles, José Quintela, presidente da associação de moradores local, conta que era vizinho de seis de seus irmãos. Além dele, só um permaneceu.
- Sobraram ruínas, casas tomadas por barro. Cento e três casas se enquadraram na área de exclusão, não podem ser mais ocupadas, a 30 metros do rio. Onde foi possível se instalar, vive-se na precariedade. É difícil acordar todo o dia e olhar de novo para a tragédia.

Não podemos repetir erros

Corpo a Corpo
Marilene Ramos

Presidente do Instituto Estadual do Ambiente, Marilene Ramos diz que a situação dos rios é proporcional à falta de investimentos em saneamento básico. Para ela, com novos recursos, não se pode repetir erros, como construir estações de tratamento de esgoto sem ligá-las a troncos coletores.

O GLOBO: O que explica esse mau estado dos rios?

MARILENE RAMOS: Indicadores como coliformes, sobretudo em rios urbanos, revelam uma concentração bem acima do recomendado. A fonte é o esgoto urbano sem tratamento. E essa situação é decorrente da falta de saneamento. Levantamento nosso, com base no ICMS Verde, aponta que 33% do esgoto é tratado no estado. Há cinco anos, eram 20%. Mas é ainda insuficiente para reverter o quadro.

O GLOBO: Desse quadro, quais regiões estão mais carentes de saneamento?

MARILENE: A Baixada Fluminense e São Gonçalo. Retomamos o antigo Plano de Despoluição da Baía de Guanabara (hoje, Guanabara Limpa). Com recursos de R$ 1,1 bilhão e a parceria da Secretaria estadual do Ambiente com a Cedae e os municípios, Estações de Tratamento de Esgoto (ETEs) estão entrando em operação plena. E vamos construir novas. Já vemos alguns progressos, como no trecho entre a Ilha do Fundão e a Ilha do Governador, com a dragagem e a ampliação da ETE Alegria. Com recursos do Fundo Estadual de Conservação Ambiental (Fecam), ela passou de 400 para 2.200 litros tratados por segundo. Em Icaraí, Niterói, também houve evolução. Já a Região dos Lagos, a ampliação do sistema de saneamento merece destaque. Com R$ 40 milhões do Fecam, aumentaremos a capacidade da ETE Sarapuí, de 900 para 3 mil litros por segundo. Não podemos repetir erros, como construir estação e, depois, correr atrás para ligar troncos coletores. Teremos R$ 2 bilhões nos próximos três anos para áreas de cursos d'água, como os rios Sarapuí, Alcântara e Meriti e o Canal do Mangue.

O GLOBO: Qual é o rio mais importante do estado?

MARILENE: O Paraíba do Sul é a nossa grande fonte de vida. Se o perdermos, não teremos outro.

O Globo, 25/06/2012, Rio, p. 10-11

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