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Vidas curtas no semi-arido

CB, Brasil, p.10
13 de Out de 2005

Vidas curtas no semi-árido
Municípios do sertão nordestino, com os piores índices de desenvolvimento, registram taxa de mortalidade infantil equivalente à de países da África Subsaariana: 86 em cada mil crianças morrem antes de 1 ano
Paloma Oliveto
Da equipe do Correio
A vida termina muito cedo para as crianças do semi-árido brasileiro. Para quem mora nos grandes centros urbanos, é difícil imaginar que no sertão nordestino as taxas de mortalidade ultrapassem a dos países subsaarianos, onde ocorrem, em média, 86 óbitos em cada mil nascimentos. Dez municípios do nordeste chegaram a essa marca no triênio 2001-2003. São as cidades brasileiras onde mais morrem bebês de até 1 ano de idade, segundo dados do Ministério da Saúde.
Lugares como Bela Vista do Piauí (PI), que está no topo do ranking, ultrapassam os índices do Congo, do Quênia e do Sudão, que registram taxas de 81, 79 e 63, respectivamente. É surpreendente que em um país com tantas riquezas quanto o Brasil, existam indicadores tão desfavoráveis, resultado de muitos anos em que a criança não foi prioridade”, diz Francisca Andrade, oficial de projetos do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef).
No Brasil, a média de óbitos em mil nascidos vivos é de 24,3, indicador aceitável pela Organização Mundial de Saúde (OMS). O problema está em uma região que concentra quase a metade dos piores índices de desenvolvimento humano do país, onde água tratada, esgoto, acesso a medicamentos e à alimentação é luxo para muitos. Os números refletem uma estrutura social injusta, que impede aos mais pobres o acesso aos bens básicos para a sobrevivência”, diagnostica Naidison Quintela Baptista, secretário-executivo da organização não-governamental (ONG) Movimento de Organização Comunitária.
Avanços
O secretário de Articulação e Gestão da Informação do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), Rômulo Paes de Sousa, explica que o combate à mortalidade infantil está ligado a um conjunto de fatores: boa cobertura de vacinação, acesso a alimentação adequada, saneamento básico e atendimento à saúde. Na avaliação de Sousa, o Brasil está avançando nos quatro itens, o que poderá refletir positivamente nas próximas estatísticas. O secretário reconhece que as desigualdade regionais ainda são muito grandes. Muitas políticas públicas são voltadas a quem já está incluído, e não aos excluídos. Assim, quem está na frente continua na frente”, avalia.
O secretário também alerta que os dados podem estar subestimados. Isso acenaria para a possibilidade de a mortalidade infantil, no semi-árido, ser ainda maior do que mostram os números do DataSus, banco de dados do Sistema Único de Saúde. Nessa região, a informação sobre mortalidade é muito ruim. Às vezes, os pais não registram nem o nascimento, quanto mais o óbito. Eu não estranharia se as taxas de mortalidade infantil fossem ainda maiores”, concorda Maria de Fátima Marinho, coordenadora da área de análise de informações epidemiológicas da Secretaria Nacional de Vigilância Sanitária do Ministério da Saúde.
Para conhecer melhor o perfil nutricional das crianças do semi-árido, o governo realizou a primeira Chamada Nutricional na região do semi-árido, em agosto passado. Vinte e três mil crianças com até 5 anos foram pesadas e avaliadas em 307 municípios e assentos rurais do sertão nordestino e do norte de Minas Gerais.
Um desses programas, o de construção de cisternas, é considerado por especialistas como um dos mais eficazes métodos de captação de água. Além de simples, é barato: cada unidade custa R$ 1,5 mil. Executado pela rede de ONGs Articulação do Semi-árido Brasileiro (ASA) e apoiado pelo Unicef, o Programa Um Milhão de Cisternas Rurais construiu, no ano passado, 36 mil cisternas. Suficientes para beneficiar 95 mil famílias.
O combate à mortalidade infantil passa por problemas estruturais, como saneamento, renda e educação, que exigem longo prazo. O Unicef investe em ações de baixo custo que têm um resultado muito bom, como o das cisternas”, diz a oficial de projetos Francisca Andrade. Depoimentos colhidos pela ASA entre pessoas que foram beneficiadas pelas cisternas mostram como o projeto podem aumentar a qualidade de vida. No tempo da seca, a gente chegava nas cacimbas e elas não tinham água. E como os locais são distantes, a gente chegava em casa cansada e preocupada com as crianças, que muitas vezes passavam fome, enquanto nos esperavam”, disse Margarida Sousa, moradora da comunidade Coronel José Dias, no Piauí.

Ranking da morte
No semi-árido, concentram-se 1.444 municípios do Maranhão, Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco, Alagoas, Sergipe, Bahia, Espírito Santo e Minas Gerais. Mais da metade da população da região, que tem 26,4 milhões habitantes, é composta por crianças e adolescentes. Na parte nordestina, estão os 10 municípios com as maiores taxas de mortalidade infantil no triênio 2001-2003.
Taxa de mortalidade (óbito por mil nascidos vivos)
? Bela Vista do Piauí (PI): 86,5
? Viçosa (RN): 80,3
? Telha (SE): 71,4
? Manari (PE): 64,9
? Francisco Macedo (PI): 63,2
? Amparo (PB): 62,5
? Prata (PB): 60,7
? Milton Brandão (PI): 60,6
? Senador Rui Palmeira (AL): 60,2
? Pedro Laurentino (PI): 59,8
Fonte: DataSus

Brasileiros sem registro
Cerca de 21% das crianças brasileiras nascidas vivas em 2003, o que corresponde a 650 mil, não foram registradas. Estes são os dados mais recentes obtidos pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A coordenadora da Mobilização Nacional pelo Registro Civil, realizada pela Subsecretaria de Direitos Humanos do governo federal, Leilá Leonardos, informou que Roraima é o estado que apresenta número maior de não registrados. Dos nascidos vivos em 2002, um total de 8.990 crianças nos hospitais do Sistema Único de Saúde (SUS), 5.354 tiveram registro.
As regiões Norte e Nordeste apresentam os maiores índices de sub-registro. Temos como fatores a falta de conhecimento da população, as grandes distâncias das moradias aos cartórios, bem como a falta de estratégia dos executivos municipais, para conhecer quem é a sua população e de levar o registro a ela”, afirmou. O objetivo do governo é erradicar o sub-registro em outubro de 2006.
Leilá lembrou que é por meio do registro civil de nascimento que a criança passa a ter uma identidade e a exercer os direitos políticos, sociais e civis. A cidadania começa com a documentação civil.”

Parceria na área de Saúde
Segundo a diretora do departamento de Ações Programáticas Estratégicas do Ministério da Saúde, Cristina Boaretto, as secretarias municipais e estaduais de Saúde e o governo têm desenvolvido um trabalho bem-sucedido na área de atenção à criança. Com as campanhas de vacinação e pré-natal, o cuidado com a criança começa na barriga da mãe”, diz. Boaretto destaca a importância do Saúde da Família para as comunidades do semi-árido.Atualmente, 76% dos 1.444 municípios que compõem o semi-árido contam com o programa.
Se na saúde, a população recebe tratamento, o mesmo não acontece em relação à infra-estrutura. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 42,2% da população infanto-juvenil não tem acesso a abastecimento de água adequado. Enquanto no Brasil 18,7% das casas com crianças e adolescentes não possuem rede de esgoto, no semi-árido, o índice sobe para 38,47%. Na área rural, passa para 66,58%, de acordo com o Unicef.
Equívoco
Para o secretário-executivo do Movimento de Organização Comunitária (MOC), Naidison Quintela Baptista, além do pouco investimento em saneamento básico, um dos principais erros dos programas voltados ao desenvolvimento da região está na insistência em se acabar com a seca. A seca, a gente não combate. O que tem de fazer é se adequar para conviver bem com ela”, acredita. Ele diz que experiências bem-sucedidas de organizações não-governamentais provam que apostar em criatórios de animais adequados ao clima, preservação e revitalização da vegetação típica e implementações de processos de captação de água tratada típicos para a região garantem a vida com qualidade dos moradores da região.
Com o projeto Cabra Escola, que consiste no subsídio à caprinocultura de corte, leiteira ou mista a famílias carentes do semi-árido, o MOC conseguiu reduzir a desnutrição em 40% e aumentar a renda familiar em 35% em dois anos em dez municípios do semi-árido baiano. Para Baptista, programas de transferência de renda, como o Bolsa Família, são importantes para garantir o acesso mínimo à alimentação, mas não resolvem o problema. É uma situação provisória. Mas a manutenção dessa redenção só acontece tratando das questões estruturais, como saneamento, educação e saúde, e criando condições para que as pessoas possam ter a própria renda”, diz. (PO)

CB, 13/10/2005, p. 10

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