VOLTAR

Vícios e omissões de laudo da Funai explicam e acirram conflitos na reserva Raposa Serra do Sol

Cidade Biz
Autor: Antonio Machado
19 de Mai de 2008

Documento já fora contestado por peritos da Justiça Federal de Rondônia e por uma comissão da Câmara

Na polêmica sobre a homologação da Reserva Indígena Raposa Serra do Sol, no extremo norte de Roraima, o governo Lula, que acirrou o conflito ao desqualificar o argumento dos opositores da decisão e a recomendação da Comissão Externa criada pela Câmara em 2004 para analisar o contencioso, refugiou-se atrás da Polícia Federal.

De algum modo caiu em contradição ao criminalizar o que também é um movimento social, só que de sinal contrário ao de grupos de sem terras. Tipo MST, que invade fazendas, bloqueia a ferrovia da Vale em Carajás, no Pará, e só sai se o alvo do esbulho for à Justiça requerer mandato de reintegração de posse nem sempre cumprido pela Polícia Militar dos estados. Em Roraima, ainda não tombou ninguém, mas a seriedade da questão indígena já há muito está tombada.

O governo abraçou a tese da Fundação Nacional do Índio, Funai, a responsável pelo laudo antropológico em que se apóia a demarcação, e justifica o conflito com a versão simplista de confronto entre interesses de fazendeiros invasores e grupos indígenas. Não o é.

O outro lado, em que se perfilam as Forças Armadas, temerosas da autonomia dos territórios indígenas e, no caso, colado à Guiana e ao lado da Venezuela, acusa a ação de entidades estrangeiras, as tais ONGs, e a Igreja Católica de tramar contra a soberania. É de fato suspeito que para cerca de 17 mil índios, um chute, pois ao governo nunca ocorreu recensear essa população, a Funai tenha proposto lá em 1992, no governo FH, a demarcação de 1,7 milhão de hectares, área equivalente à soma de Portugal com a Bélgica.

A aceitação do laudo que substancia tal decisão, que vem da era FH e se consuma no governo Lula, nunca foi pacífica. Uma comissão de quatro peritos acionada pela Justiça Federal de Boa Vista fez picadinho desse laudo num longo e exaustivo parecer (íntegra aqui).

Assina o laudo a antropóloga da Funai Maria Guiomar de Melo, que em março de 2004 depôs na Comissão Especial da Câmara que tratou do assunto. Falou muito e convenceu pouco. Reconheceu falhas no laudo, mas as atribuiu a dificuldades de logística e a mudanças freqüentes das regras de desapropriação de terras indígenas.

Se fosse feito com os recursos atuais, de 2004, sugeriu, poderia o documento ser mais bem fundamentado. Acha-se o que ela falou aqui. As inquirições dos deputados são demolidoras.

Lula se tornou refém

A esta altura parece que Lula se tornou refém de interesses de ativistas indígenas, ainda que nem os fazendeiros peçam o fim da reserva, apenas manter as suas fazendas, que ficam no extremo sul da área, sem intrusão das terras indígenas.

O governo de Roraima, por sua vez, quer manter os municípios na reserva. São habitados também por índios, que defendem a demarcação por ilhas, excluindo poucas áreas urbanas, para que mantenham o estilo de vida a que se adaptaram ao longo de décadas. Ou desde início do século passado, conforme estudos ignorados pelo laudo da antropóloga da Funai.

É esse documento que merece ir a julgamento, como o submeteu a Câmara e o reprovou. Não os fazendeiros e o governo de Roraima.

Câmara deu a solução

É falso que os arrozeiros dentro da área demarcada se resumam a seis, como acusou o ministro da Justiça, Tarso Genro, e que não tenham títulos. Algumas propriedades foram reconhecidas pelo INCRA antes da peça da antropóloga Maria Guiomar. Uma, ao menos, data de 1932.

Ela diz que isso não invalida a desapropriação. Está certa. Mas contesta o que seu laudo omite: que na área já havia a presença centenária de não índios. Ou, ao contrário, que houvesse índios. A área em litígio, além disso, é nada: equivale a 7% da reserva como afirma o relator da Comissão Externa, deputado Lindberg Farias, do PT, hoje prefeito de Nova Iguaçu. Ele defendia manter essa área.

Laudo define decisão

O laudo da confusão, na verdade, é pleno de vícios. Não resulta de um grupo de 27 técnicos, pois dois pelo menos negam que tenham feito parte. Só Maria Guiomar o assina. A peça tem cinco partes e só uma é de sua autoria. A parte jurídica é de um advogado do CIR, Conselho Indígena de Roraima, não da Funai. Os erros de português ofendem uma peça que sustenta decisão presidencial. O caso está no Supremo Tribunal Federal. A leitura do laudo sugere a sentença.

"O documento, no lugar de ser um relatório do grupo técnico, é uma coletânea de cinco peças completamente independentes e sem conexão alguma entre si", lê-se no laudo pericial encomendado pelo juiz federal Helder Girão Barreto, primeiro a estranhar o que fez a Funai. "Não se teve nem mesmo o cuidado de utilizar no documento uma mesma fonte (letra) deixando claro que as partes eram oriundas de diferentes pessoas." Os peritos também manifestaram espanto com o "descaso com a falta de uma simples revisão ortográfica".

Encontra-se numa das partes do laudo da Funai o seguinte: "Os fazendeiros vieram de fora, trouxeram o gado que espantou a caça e vive pastando no lavrado e na lavoura dos índios. E os garimpeiros poluiem (sic) os rios, trouxeram a cahaça (sic) e postituíram (sic) as índias". E tem coisa pior.
Quatro ministros da Justiça, dois de FH, dois de Lula, avalizaram essas, digamos, "distrações".

**********************************

E MAIS:

Polêmica de má fé

Problema das reservas indígenas é mais de ausência do Estado onde ele se faz mais necessário

A polêmica da demarcação da reserva indígena Raposa Serra do Sol, no extremo norte do país, em Roraima, na fronteira com Venezuela e Guiana, reavivada pelo general Augusto Heleno, comandante militar da Amazônia, em seminário sobre o tema "Brasil, ameaças à sua soberania", no Clube Militar, está no ar há mais de três décadas.

O debate de fundo não é sintoma de "visão racista e intolerância cultural", como afirmou o presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai), Márcio Meira. Ou que a política indígena é "lamentável" e "caótica", como disparou o general. Ou, ainda, que a formação da reserva foi uma "bela obra jurídica e política", a idéia do ex-ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos, em cuja gestão se deu a homologação da Raposa Serra do Sol pelo presidente Lula, em 2005.

O que três décadas de desacordo e desarmonia atestam é a completa incapacidade de as forças políticas fazerem cumprir a Constituição como patrimônio de todos os brasileiros. A pretexto de se promover o bem o que mais se tem promovido é a desagregação nacional, numa cena em que dramática é a ausência do Estado - que excede em poder em Brasília e é fraco como um cordeirinho onde sua presença se faz mais necessária, como os territórios indígenas, as áreas rurais de assentamento agrário e as zonas degradadas dos centos urbanos.

Nestas dominam o tráfico e milícias. Naquelas, grupos políticos travestidos de movimentos sociais, como o MST, e cresce uma tal de Ligas dos Camponeses Pobres, para quem o governo Lula é do FMI; PC do B e PSTU fazem o "jogo dos traidores"; e Chávez é "marionete de burgueses". Deus do céu! Em terras indígenas, ONGs ambientalistas, muitas do exterior, circulam à vontade.

Comum a tais grupos opacos é a captura dos órgãos públicos afins, como o Incra pelo MST, a Funai pelas ONGs e a polícia pelo crime.

Os problemas da Raposa Serra do Sol não deveriam durar um minuto nos gabinetes dos governantes, se prevalecesse o bom senso e atos governamentais não fossem tomados de costas para o Congresso e a sociedade. Sua área, de 1,678 milhão de hectares, equivale à soma de Portugal e Bélgica. Tamanha extensão foi decidida por um grupo de antropólogos da Funai em 1993 para atender não mais que 8 mil a 17 mil índios, nem isso se sabe bem, de quatro grupos étnicos.

Utopia do índio nu

É muita terra para pouca gente. O laudo antropológico foi buscar a ancestralidade da presença indígena e considerou a extensão tida como necessária para os hábitos de caça e pesca, isso quando o que pleiteiam líderes indígenas são meios para se manter com autonomia e acessar as facilidades da sociedade de consumo. É utopia o índio selvagem, nu, dormindo em rede. Mas não é esse o busílis.

Políticos, sociedade civil de Roraima e as Forças Armadas pedem menos de 10% da área demarcada, excluindo fazendas e uma faixa de 15 km de fronteira, aí incluída uma vila. Disputa-se pouco para o circo armado. E nem é rever, mas corrigir os erros de demarcação, como propôs a Comissão Especial criada pela Câmara em 2004. É isso o que cabe agora o Supremo Tribunal Federal dirimir.

Está mal de cabeça

Formada por 13 deputados federais e seis consultores técnicos da Câmara, o relatório final dessa Comissão é o que melhor havia para subsidiar as discussões sobre a Raposa Serra do Sol. O governo a ignorou. Houve a preocupação de excluir da Comissão deputados de Roraima. A relatoria foi entregue a um deputado insuspeito para a causa indígena: Lindberg Farias, hoje prefeito de Nova Iguaçu pelo PT, ex-presidente da UNE e ex-militante do PC do B e do PSTU.

O que disse Farias em seu relatório. Que "apenas 7,2% das terras de Roraima estão disponíveis para exploração econômica, segundo dados da Embrapa". "O arroz produzido alimenta uma população de 2 milhões de pessoas" no norte. "A área cultivada (por fazendeiros na Raposa Serra do Sol) representa só 0,6% da reserva". Se o governo lutar por tais 0,6%, está mal de cabeça.

Quem faz terrorismo

Os dados de Farias dão uma pista de quem faz terrorismo em torno da reserva da Raposa Serra do Sol, cuja área não é contestada, mas sua extensão, e a ausência de discussão das preliminares do grupo de antropólogos que propôs sua demarcação, aceita de peito aberto pelo governo FHC em 1998. O ministro da Justiça da época, Nelson Jobim, hoje ministro da Defesa de Lula (sempre os mesmos), cometeu o que foi interpretado como um deslize técnico: aceitou o laudo, mas mandou refazer a demarcação para excluir fazendas e cidades.

O ministro só podia recusar ou aceitar o laudo em sua íntegra. O seu sucessor, hoje senador Renan Calheiros, baixou outra portaria, cujos termos foram homologados por Lula e o STF mandou suspender a sua aplicação até que julgue recurso do governo de Roraima.

Na meia luz desse debate há também a resolução das Nações Unidas, assinada pelo governo Lula em setembro do ano passado, que trata do direito dos povos indígenas à sua autodeterminação. A resolução afirma que os povos indígenas podem criar instituições políticas, sociais, econômicas e jurídicas próprias, além de vetar operações militares em seus territórios.

A declaração não é um marco legal obrigatório, mas abre caminho para um texto mais forte, este sim compulsório aos países membros da ONU: a Convenção Internacional para os Povos Indígenas. Lula também não sabia de nada disso?

As notícias aqui publicadas são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos. Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.