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A verdade sobre Belo Monte

O Estado de São Paulo (São Paulo - SP)
Autor: PINTO, Lúcio Flávio
21 de Mai de 2002

Vamos apresentar algumas das principais dúvidas e restrições ao projeto que a Eletronorte está apresentando à sociedade e que pretende ver transformado na quarta maior hidrelétrica do mundo

A Eletronorte, a subsidiária da Eletrobrás com jurisdição sobre toda a Amazônia Legal, região que ocupa quase dois terços do território nacional (embora a empresa mantenha sua sede em Brasília, que faz parte do Centro-Oeste), está em plena campanha. Pretende convencer a opinião pública que só dois tipos de pessoas podem tentar impedi-la de começar ainda neste ano, antes de a administração Fernando Henrique Cardoso chegar ao fim, a construção da segunda maior hidrelétrica do país: os mal informados ou os críticos de má-fé.
Aparentemente a empresa tem razão. O impacto ambiental que a hidrelétrica de Belo Monte poderia causar não tem parado de diminuir. A princípio se imaginava que ela alagaria 1.200 quilômetros quadrados de áreas marginais no curso médio do Xingu, no Pará. Hoje, a previsão é de que as águas represadas do rio transbordem para apenas 400 km2. Essa já é a área que o Xingu inunda em quase todos os períodos de cheia natural, que ocorrem de seis em seis meses. A única diferença seria que essa cheia se tornaria perene, não permitindo mais que as águas voltassem aos níveis da vazante semestral.
Com tal minimização, as famílias afetadas não chegariam a quatro mil, a maioria delas estabelecidas em favelas de Altamira, a cidade mais próxima da futura usina. Essas áreas urbanas mais baixas já são alagadas pelas maiores cheias do Xingu. Apenas uma pequena aldeia indígena poderia reclamar desse reservatório e dos demais efeitos da hidrelétrica. Mas esses efeitos poderiam ser mitigados por uma boa previsão de impacto ambiental, que a Eletronorte jura estar tentando fazer através de uma fundação de pesquisa da Universidade Federal do Pará, contratada sem licitação para fazer o EIA/Rima do projeto (e impedida de concluí-lo pelo Ministério Público Federal, que questiona na justiça a lisura, a eficácia, a legalidade e a legitimidade dos estudos, querendo anular o que já foi feito para que o trabalho comece a partir do zero).
Comparada com a hidrelétrica Tucuruí, atualmente a segunda maior usina brasileira depois de Itaipu, Belo Monte, que deverá ultrapassar a grande barragem do rio Tocantins, parece um sonho. Segundo os números da Eletronorte, que construiu a primeira e pretende viabilizar a segunda (passando-a depois à iniciativa privada, devidamente assistida financeiramente pelo BNDES e a Eletrobrás), Belo Monte vai gastar apenas um terço do concreto que foi empregado em Tucuruí, a campeã nacional do concreto. E Tucuruí tem uma capacidade de geração de energia 50% menor do que a usina do Xingu. Cada quilômetro a ser inundado por Belo Monte permitirá gerar 27,5 megawatts. Em Tucuruí, essa relação é 10 vezes menor: cada km2 alagado só permite instalar 2,8 MWs.
Belo Monte garantiria a partir de 2008, quando o cronograma da Eletronorte prevê a instalação da primeira de suas 20 máquinas, o atendimento a toda a necessidade de consumo adicional do Brasil (4 mil MW ao ano) durante três anos, algo que só a duplicação do gasoduto vindo da Bolívia poderia atender, como solução alternativa, ou oito usinas nucleares do porte de Angra II. A Eletronorte promete ainda que cada MWh instalado custará 12 dólares, "o mais baixo do mundo". Boas médias em outras usinas ficam em torno de US$ 20 por MWh.
Na esteira desses números, a empresa arrasta outras grandezas equivalentes, suficientes para fazer de Belo Monte uma maravilha da hidreletricidade mundial. Só espíritos de porco poderiam ser contra uma obra dessa qualidade. De fato, o desnível de 90 metros que o Xingu sofre no curso de apenas 50 quilômetros, em um trecho em que dá uma grande volta, se oferece como um presente da natureza (ou de Deus) para quem quer converter massa de água em energia mecânica. Complexidade surpreendente
Mas, como quase sempre acontece na Amazônia, raramente o que parece, é. O que se oferece simples esconde uma complexidade surpreendente. Muitos pagaram preço amargo por essa lição. Os empresários americanos Henry Ford, no Tapajós, entre os anos 20 e 40, e Daniel Ludwig, no Jari, entre as décadas de 60 e 80 do século passado, são dois notáveis exemplos.
Depois do desastre que provocou quando represou um rio próximo a Manaus, formando no Uatumã um reservatório equivalente ao de Tucuruí, que tem 2.875 Km2, para possibilitar uma capacidade de geração de energia, na hidrelétrica de Balbina, que representa apenas 5% do que nominalmente pode produzir a usina do Tocantins, a Eletronorte estaria se comportando melhor em relação ao início do aproveitamento energético da bacia do Xingu, o 25o maior rio do planeta, que drena 8% do território brasileiro? O amadurecimento habilita a empresa a enfrentar melhor, como nenhuma outra, esse novo desafio? Desta vez a Eletronorte está jogando limpo, oferecendo à opinião pública todos os elementos de avaliação e julgamento, não conseguindo a aprovação unânime (ou largamente majoritária) porque adversários mal intencionados do projeto não o permitem?
Se todas as respostas podem ser respondidas afirmativamente, sem manipulações e engodos, seria por inabilidade que a Eletronorte ainda não venceu a batalha do convencimento? Apesar da campanha que vem fazendo, em todos os lugares nos quais pode marcar presença e por todos os meios a que consegue ter acesso, as dúvidas se mantêm. E até se adensam, na medida em que a discussão se aprofunda.
Preocupada em cumprir um cronograma exageradamente apertado, que parece ignorar atropelos como o litígio judicial com o MP federal em torno do EIA/Rima, queimando etapas na base do rolo compressor, a Eletronorte dá a impressão de que começar a construir Belo Monte, de qualquer maneira, continua a prevalecer sobre a tarefa de convencer os formadores de opinião. Ainda atua com base na lógica do fato consumado, que torna acadêmicas ou decorativas as discussões laterais.
Se as dúvidas e restrições não tivessem consistência, é claro que todos estaríamos de mãos dadas com a estatal para começar a assegurar, desde já, na Grande Volta do Xingu, um excepcional rio interior amazônico que deságua num delta maravilhoso, três anos de consumo adicionado de energia no Brasil. A experiência, entretanto, ensinou que a grandeza e a complexidade da Amazônia, sua condição especial de última reserva para muita coisa de grandioso ou excepcional que ainda se espera do Brasil, recomenda um ritmo de ação e uma forma de abordagem nem sempre compatíveis com os prospectos e propósitos dos executores de grandes obras.
Essa cautela se aplica em particular aos "barragistas", um grupamento profissional dotado de tradição, por um lado, e de obstinação, por outro. Mas nem sempre autorizado a dar a última palavra sobre o aproveitamento de grandes e complicados rios como os amazônicos. Ainda mais quando esse aproveitamento é exclusivista e excludente, abstraindo o conjunto da bacia e a diversidade dos meios de uso da água.
Nesta coluna, pretendo apresentar algumas das principais dúvidas e restrições ao projeto que a Eletronorte está apresentando à sociedade e que pretende ver transformado na quarta maior hidrelétrica do mundo, talvez num prazo apertado demais, utilizando uma metodologia não exatamente tendente ao diálogo democrático, aberto, sem pressuposto fechado, sem parecer discussão para inglês ver. É claro que a Eletronorte pode ignorar essa manifestação. Acatando-a, conseguirá desfazer e desautorizar todas as minhas ponderações e restrições, sem que com isso tenha avançado um milímetro na sua campanha de convencimento nacional.
Mas pelo menos neste espaço, que é um espaço único (ecoa, através de São Paulo, para o mundo internáutico, uma voz da Amazônia), se poderá afirmar que a Eletronorte tem mesmo razão e só os mal informados ou mal intencionados é que podem ser contra Belo Monte, se a empresa, respondendo a todos os questionamentos, conseguir demonstrar a justeza da sua posição. Será uma gota d´água, talvez, em relação aos 60 milhões de litros de água que o rio Xingu chega a descarregar por segundo, nos seus piques de cheia. Mas uma gota d´água límpida, transparente e saudável como costuma ser um precioso produto humano: a verdade.

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