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Venezuela vive crise ambiental com uma 'onda de destruição'

Valor Econômico, Especial, p. A12
18 de Jan de 2022

Venezuela vive crise ambiental com uma 'onda de destruição'
A mineração surge como uma forte ameaça para a floresta Amazônica venezuelana. Grupos ambientalistas alertam que a extensão de terras usadas para mineração ao sul do Orinoco triplicou nas últimas duas décadas

Por Gideon Long - Financial Times, do Parque Nacional Canaima (Venezuela)
18/01/2022

Visto de cima, o Parque Nacional Canaima, sudeste da Venezuela, apresenta uma paisagem magnífica. Mesetas gigantescas se erguem da selva exuberante. Rios escuros serpenteiam pelo mato.
Declarado patrimônio natural da humanidade pela Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco), o parque é um refúgio de biodiversidade e abriga o Salto Ángel, a cachoeira mais alta do mundo.
Com a queda na receita com petróleo, Maduro vem promovendo a mineração, que invade a Amazônia venezuelana
Mas a vista aérea para o lado oeste é bem menos atraente. A região está cheia de manchas de terra nua e marrom - sinais que revelam atividades de mineração. Trilhas de terra cortam a floresta até acampamentos improvisados. A destruição ambiental, visível do ar, deteriora a margem oeste do rio Caroní, fronteira do parque.
"As minas estão bem na beira do parque, dentro da zona de segurança que a Unesco exige para seus Patrimônios da Humanidade", diz Cristina Burelli, fundadora do SOS Orinoco, grupo que tem como objetivo a proteção da Amazônia venezuelana. "Em muitos casos, elas estão até dentro do parque."

Canaima está ameaçado, mas não é o único, acrescenta Burelli. Em 20 anos, os governos chavistas de Hugo Chávez, primeiro, e de Nicolás Maduro agora presidiram o que ela chama de "desmantelamento sistemático das instituições ambientais da Venezuela".
As recentes crises políticas, econômicas e humanitárias da Venezuela têm sido bem documentadas. A cobertura dos meios de comunicação concentrou-se na luta pelo poder entre Maduro e a oposição apoiada pelos EUA; no colapso econômico do país; no impacto das sanções dos EUA; e no êxodo resultante delas, de cerca de 6 milhões de migrantes.
Já os problemas ecológicos não foram tão bem documentados, mas ativistas dizem que deveriam ser igualmente preocupantes para a comunidade internacional.
Ao norte, a degradação da infraestrutura da PDVSA eleva o número de acidentes, com vazamentos de petróleo
Com o colapso econômico e queda da receita do petróleo, o regime de Maduro vem buscando fontes alternativas, como a exploração de seus abundantes recursos naturais. Ele promoveu a mineração em áreas da Amazônia - e em 2016 designou parte dela como arco de mineração -, principalmente de ouro, mas também de diamantes, coltan (mineral composto de columbita e tantalita), bauxita, minério de ferro e cobre.
Ao mesmo tempo, a infraestrutura petrolífera do país está cada vez mais dilapidada. Vazamentos e manchas de petróleo são comuns e contaminam um dos países de maior biodiversidade do planeta.
O venezuelano Francisco Dallmeier, diretor do Centro de Conservação e Sustentabilidade do Smithsonian Conservation Biology Institute em Washington, descreve o que acontece no sul da Venezuela como um "ecocídio".
"Temos uma das regiões mais ricas do planeta, alguns recursos naturais fantásticos, temos todo um sistema de áreas protegidas que foi criado para proteger esses recursos, e agora temos o início de uma onda de destruição, e não há indicação de que as coisas vão mudar".
O desmatamento não começou nos governos de Chávez e Maduro, mas nos últimos 20 anos cerca de 3.800 km2 de cobertura florestal da Amazônia venezuelana - 1% do total ou o equivalente a 532 campos de futebol- foram destruídos.
Além disso, o ritmo tem se acelerado. Metade dessa área foi perdida nos últimos cinco anos.
Cicatrizes na terra. Só uma parte modesta da floresta amazônica fica na Venezuela - menos de 6%. Mas a escala da Amazônia é tal que mesmo essa pequena parcela representa uma vasta faixa de terra. Metade do território da Venezuela - quase toda a região ao sul do rio Orinoco - é, ou já foi, floresta tropical. É uma área maior do que a da Califórnia.
Até há pouco tempo a floresta venezuelana tinha escapado em boa parte da destruição por extração de madeira, agricultura e mineração em partes do vizinho Brasil e em outros lugares. Segundo a Rede Amazônica de Informação Socioambiental Georreferenciada (RAISG), um consórcio da sociedade civil que usa imagens de satélite para monitorar a Amazônia, 82,9% da parte venezuelana está intacta, em comparação com 74,5% da Amazônia como um todo.
Mas isso está mudando. A mineração surge como uma forte ameaça. A RAISG diz que a extensão de terras usadas para mineração ao sul do Orinoco triplicou nas últimas duas décadas. Entre 2015 e 2020, aumentou em 20%.
Em 2016, Maduro estabeleceu o "arco de mineração" na margem sul do rio, área rica em ouro, diamantes, coltan e outros minerais. Esse arco vai da fronteira da Venezuela com a Colômbia no oeste até a fronteira leste com a Guiana e cobre 12% do território nacional, uma área do tamanho de Portugal.
O governo alega que a mineração no arco é regulamentada, mas muitas notícias indicam que existe um violento vale-tudo, entre gangues criminosas e insurgentes colombianos, pelo controle de recursos lucrativos extraídos ilegalmente. Em 2021, a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) descreveu o que acontece como "um experimento descontrolado e muitas vezes violento na exploração de recursos, regiões e comunidades".
Em 2020, a ONU publicou um relatório com relatos sobre a violência no arco, baseado em entrevistas com moradores locais. O arco também deixa transforma a região, pois "a técnica mais usada é a mineração a céu aberto, em que grandes cortes ou buracos são feitos na terra", segundo a ONU.
Ambientalistas dizem que a mineração a céu aberto acaba com a biodiversidade e pode liberar gases perigosos e contaminar águas subterrâneas. Supostamente a mineração está limitada ao arco, mas grupos ambientalistas dizem que a atividade tem invadido parques nacionais, inclusive Canaima.
A partir de imagens de satélite e fotografias aéreas, a SOS Orinoco mapeou 27 áreas de mineração na beira do parque, muitas no próprio rio Caroní, e mais 32 dentro dele. Uma das áreas fica a apenas 24 km do Salto Ángel.
Ambientalistas também alertam para a contaminação das águas pelo mercúrio usado na mineração de ouro. A SOS Orinoco estima que até 70% do curso do Caroní - o segundo maior rio da Venezuela, com quase um mil km de extensão - "pode estar sob risco de contaminação resultante do uso de mercúrio nas operações de mineração de ouro".
Testes realizados pela ONG em membros da comunidade pemón - principal grupo indígena da região - mostraram que "na maioria dos casos" os níveis de mercúrio "excediam o limite estabelecido pela Organização Mundial da Saúde (OMS)" como seguro para consumo humano. "As maiores concentrações foram observadas em amostras de menores de 18 anos que não trabalham em minas", apontou a ONG.
Trabalho brutal. Nas comunidades mineiras, a exploração não é só de recursos, mas muitas vezes também dos trabalhadores.
O turismo costumava ser uma das principais fontes de emprego em Canaima, mas isso secou com o colapso econômico da Venezuela. Um guia turístico pemón, que passou semanas trabalhando em uma mina de ouro à beira do parque, descreveu ao "Financial Times" as condições do local.
Eles trabalhavam em equipes de seis pessoas - cinco mineiros e um cozinheiro - e dormiam em beliches em acampamentos básicos bem ao lado da mina. A equipe ficava com 40% dos lucros de todo o ouro garimpado e os donos das minas com o restante.
"Você é pago em ouro. E pode trocá-lo por dinheiro no local, mas com uma taxa de câmbio muito ruim", explicou ele. "Caso contrário, você pode levá-lo para Puerto Ordaz [uma cidade ao norte de Canaima], para derretê-lo e transformá-lo em um pequeno lingote. Aí você pode vendê-lo por mais."
"Éramos vigiados o tempo todo", disse ele. "Os donos diziam a um mineiro: 'Vou lhe pagar mais se você ficar de olho nos outros e garantir que eles não roubem'. Mas eles diziam isso a todos nós. Eles nos jogavam uns contra o outros."
"O trabalho era brutal - turnos de 24 horas às vezes - e havia muita violência no acampamento. Fui embora o mais rápido que pude."
Outro guia pemón disse que centenas de jovens deixaram Canaima para trabalhar nas minas de ouro e abandonaram seus projetos agrícolas e turísticos de pequena escala. "Nós, pemón, não somos mineiros, mas com todos os problemas que a Venezuela tem, a indústria do turismo entrou em colapso. Não tivemos escolha."
O impacto da mineração no parque e seu entorno é difícil de avaliar. "É difícil entrar em alguns desses lugares e obter informações, e é perigoso", diz Dallmeier.
Mas há muito a perder. Canaima tem uma abundância de fauna silvestre - tatus, tamanduás, pumas, onças, preguiças, antas, macacos, sapos, cobras, araras, beija-flores e tucanos, assim como cerca de 500 espécies de orquídeas e uma variedade extravagante de plantas.
As mesetas características do parque - os tepuis - estão entre as formações geológicas mais antigas do mundo, e cada uma abriga um ecossistema único.
"Existe um grau extraordinário de riqueza de espécies nesses cumes isolados", aponta um relatório sobre patrimônio mundial preparado para a Unesco. "Eles têm alguns dos maiores fenômenos de endemismo de plantas no norte da América do Sul."
Vazamentos de petróleo. Enquanto a ameaça à Amazônia vem da mineração e da agricultura, mais ao norte, na costa caribenha da Venezuela, ela vem do petróleo.
Desde que foi encontrado petróleo no Lago Maracaibo, há um século, a Venezuela produziu trilhões de barris e houve vazamentos e manchas de óleo. Em 1997, por exemplo, o navio petroleiro Nissos Amorgos encalhou no lago e 25 mil barris de petróleo foram derramados.
Mas ambientalistas dizem que a situação vem piorando nos últimos anos, embora o país produza muito menos petróleo.
Empresas americanas e europeias saíram do país ou reduziram suas operações ao mínimo, o que deixou grande parte do setor nas mãos da estatal Petróleos de Venezuela (PDVSA), que passa por dificuldades financeiras e não tem recursos para manter sua deteriorada infraestrutura. Sindicalistas dizem que incêndios e explosões em refinarias são relativamente comuns, assim como o rompimento de oleodutos e vazamentos.
Klaus Essig, oceanólogo venezuelano que foi diretor de meio ambiente do Instituto Nacional de Espacios Acuáticos, um órgão do governo, descobriu que, segundo dados da própria PDVSA, houve 46.080 vazamentos de petróleo - grandes e pequenos - nas áreas de operações da empresa entre 2010 e 2016, uma média de 18 por dia. Desde então, a PDVSA se recusa a divulgar esses números, mas não há sinais de que a situação tenha melhorado.
"Houve um aumento nos derramamentos de petróleo nos últimos anos, com certeza", diz Eduardo Klein, professor associado do Departamento de Estudos Ambientais da Universidade Simón Bolívar, em Caracas. "Apesar de que hoje produzimos apenas um terço do petróleo que costumávamos produzir, a situação é pior."
Klein destaca uma série de três derramamentos em apenas alguns meses em 2020, perto da refinaria El Palito, a oeste de Caracas. Só o primeiro derramou 22 mil barris de petróleo no mar, e parte disso chegou aos manguezais do Parque Nacional Morrocoy. "É possível observar como os manguezais morreram por causa do petróleo", diz Klein. "Se o derramamento todo tivesse atingido [o Parque Nacional] Morrocoy, teria sido um desastre total."
No Lago Maracaibo, onde ficam as instalações petrolíferas mais antigas da Venezuela, o problema são os vazamentos nos 10 mil km de oleodutos submarinos. "É como um prato de espaguete, com dutos sobre dutos sobre dutos, e a maioria tem mais de 50 anos", diz Klein.
Falta de dados. Um dos maiores desafios para os ecologistas venezuelanos é a falta de informações oficiais confiáveis.
O governo Maduro não produz mais nem dados econômicos básicos, muito menos estatísticas ambientais complexas de selvas distantes e profundezas oceânicas. No site do Ministério do Meio Ambiente os dados estão desatualizadas em quase dez anos.
Para esta reportagem, o "FT" procurou ouvir os Ministério do Meio Ambiente e das Minas, o chefe do Serviço de Parques Nacionais e a PDVSA. Não teve resposta de nenhum deles.
"Eles simplesmente não se importam com o meio ambiente, na minha opinião", diz Klein.
Essa indiferença oficial foi vista na Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas COP26, no ano passado, em Glasgow, onde grande parte do mundo se comprometeu a parar com o desmatamento e a revertê-lo até 2030. Dos países amazônicos, Brasil, Colômbia, Peru, Equador, Guiana e Suriname assinaram o compromisso. A Venezuela não.
É tão grande o sigilo e o medo de notificar sobre a degradação ambiental que a SOS Orinoco tem de proteger a identidade de seus pesquisadores devido ao temor de represálias da parte do governo e de mineradoras, e, quando Klein e a entidade independente Sociedade Venezuelana de Ecologia pediram autorização do governo para avaliar os danos causados pelo vazamento de petróleo de Morrocoy, os números lhes foram recusados.
"Temos que depender da participação e colaboração do cidadão com projetos científicos", diz Klein. "Formamos um site e conseguimos que pessoas da área postem suas fotos dos danos."
O primeiro dos três vazamentos de petróleo próximos a El Palito, em 2020, teve o dobro da magnitude do que ocorreu poucas semanas depois nas ilhas Maurício, onde um petroleiro japonês encalhou num recife de coral. Apesar disso, enquanto o vazamento das ilhas Maurício gerou protestos internacionais e uma operação de saneamento, o da Venezuela passou, em grande medida, despercebido. O regime de Maduro nunca o reconheceu oficialmente.
De vez em quando o governo toma conhecimento dos danos em seus parques naturais. Em 2018, em um raro pronunciamento sobre Canaima, Maduro descreveu o que estava acontecendo ali como um "ecocídio", atribuindo-o a grupos armados, a indígenas e a "uma máfia política de direita".
"Os danos causados ao parque de Canaima e ao sistema fluvial que o cerca é terrível, doloroso", disse Maduro, ao prometer que seu governo reprimiria os perpetradores. Quatro anos depois, pouco parece ter mudado.
A Unesco, que manifestou preocupação por Canaima, pediu ao governo venezuelano que apresentasse um relatório detalhado sobre a situação do parque até dezembro deste ano.
Os ecologistas dizem que, apesar da destruição dos últimos anos, ainda há tempo para salvar a Amazônia venezuelana e até reverter o desmatamento, mas que esse tempo é limitado.
Dizem que o governo tem de garantir que a mineração se restrinja só ao arco de mineração e que seja suspensa nos parques. A ONG ambiental venezuelana Provita defende "políticas de gestão que respeitem a população indígena". Outros ambientalistas dizem que uma das respostas está em estimular projetos de pequena escala de agricultura sustentável, que permitirão que as populações locais abandonem a mineração.
"A Amazônia venezuelana, tal como a Amazônia da Guiana e de Suriname, está em situação melhor do que a observada em outros países da região", diz Irene Zager, diretora de pesquisa da Provita. "Mas temos de agir agora e adotar medidas arrojadas para protegê-la." (Tradução de Lilian Carmona e Rachel Warszawksi)

Valor Econômico, 18/01/2022, Especial, p. A12

https://valor.globo.com/mundo/noticia/2022/01/18/venezuela-vive-crise-a…

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