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Vende-se sangue de índio suruí e caritiana

O Globo, Opinião, p. 7
Autor: SANTOS, Ricardo Ventura; COIMBRA JR, Carlos
09 de Mai de 2005

Vende-se sangue de índio suruí e caritiana

Ricardo Ventura Santos e Carlos Coimbra Jr

Sangue de índio, ainda mais se combinado a DNA e biopirataria, é assunto bombástico. Esse coquetel está na ordem do dia, com debates na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) sobre biopirataria em curso na Câmara dos Deputados.
Aos fatos. Amostras de DNA e culturas de células (linfoblastos) de dois povos tupis de Rondônia, os caritianas e os suruís, podem ser adquiridas através da internet (a partir de US$ 85, a depender do tipo de material). Quem oferece é a empresa americana Coriell Cell Repositories, de Nova Jersey, que não teria fins lucrativos, com as taxas revertidas na manutenção das amostras. Fazem parte da coleção de Variabilidade Biológica Humana da empresa, cujo catálogo contempla amostras de povos nativos de várias outras partes do mundo.
Têm sido publicadas matérias fantasiosas sobre os usos dessas amostras. Uma delas é que se poderia descobrir por que os caritianas e os suruís seriam "resistentes" a doenças de todos os tipos, como as hepatites virais, o que poderia levar a descobertas lucrativas. Grande falácia - os índios não são resistentes à hepatite. Pelo contrário, trata-se de grave problema de saúde que acomete as populações indígenas de toda a Amazônia.
Através de respeitadas bases bibliográficas internacionais em biomedicina (como o Medline), constata-se que as amostras caritianas e suruís têm sido utilizadas principalmente em investigações sobre variabilidade biológica humana (isto é, origens e relações genéticas entre populações das várias partes do mundo), sem associação, pelo menos até o momento, com pesquisas clínicas.
Um aspecto surpreendente do caso caritiana e suruí é que se sabe da situação desde 1996. Já foi abordada em uma outra comissão sobre biopirataria da Câmara dos Deputados e chegou a entrar na agenda do embaixador brasileiro em Washington. Na época, a empresa foi contatada, tendo a embaixada obtido a (vaga) resposta de que as amostras teriam sido coletadas em consonância com as legislações vigentes, inclusive aquelas dos países de origem.
Depois de um tempo em banho-maria, o tema voltou recentemente à baila, com ares cada vez mais de filme policial. Fala-se até do envolvimento da Interpol para descobrir quem teria coletado e levado as amostras dos índios de Rondônia para o exterior.
Na verdade, o acesso a essa tão procurada informação é muito simples. Basta uma rápida visita a uma boa biblioteca universitária (daquelas que ainda compram livros e assinam periódicos) para consultar a revista "Human Biology" (volume 63, número 6, p. 778, 1991). Está tudo lá: quem coletou, quando, onde, sob quais condições e como as amostras caritianas e suruís foram parar na Coriell.
É fundamental averiguar se a equipe de pesquisadores que coletou essas amostras, no final dos anos 80, tinha ou não permissão do governo brasileiro para tal. Ao que nos consta, isso nunca foi esclarecido. Se as amostras foram coletadas e exportadas sem permissão, o delito está caracterizado. Se houve chancela das esferas competentes, outros elementos entram em jogo.
Quinze anos atrás, as pesquisas sobre genética indígena utilizando DNA estavam nos primórdios. Foi somente em 2000 que a Comissão Nacional de Ética em Pesquisa baixou uma resolução (n 304) que regulamenta o estabelecimento de bancos de DNA, de linhagens de células e de outros materiais biológicos relacionados aos povos indígenas. Um dos itens frisa a necessidade de anuência explícita dos doadores.
Portanto, quando as amostras caritianas e suruís foram coletadas, havia um vácuo de regulamentação específica sobre a coleta e o armazenamento de amostras biológicas humanas, em particular de DNA. Isso de modo algum reduz a grave questão moral que envolve os pesquisadores responsáveis e a empresa Coriell, que é associar o uso das amostras a pagamento. É uma prática que os índios (e não somente eles) consideram moralmente ofensiva e, portanto, inadmissível.
Esse quadro de indefinição crônica quanto ao caso dos caritianas e dos suruís gera problemas de variadas ordens. Inclusive cria uma situação de suspeição quanto à pesquisa biomédica em geral, o que é problemático. Para ficar em um exemplo, a análise de amostras de sangue é imprescindível em investigações clínico-epidemiológicas sobre doenças endêmicas de grande importância no perfil de adoecimento e morte dos povos indígenas.
Para além de esclarecer a situação, é necessário um esforço de diplomacia internacional, envolvendo tanto o governo brasileiro como instituições científicas. Pelo caráter emblemático do caso, não se deve descartar a realização de esforços para, até mesmo, a devolução das amostras, como demandado pelos índios de Rondônia.
É possível que o próprio futuro das pesquisas sobre a história biológica da Humanidade, como o recém-anunciado Projeto Genográfico, iniciativa multimilionária patrocinada pela IBM e a National Geographic Society, com seu componente a ser desenvolvido no Brasil, passe pelo equacionamento desse caso, de tão intensa visibilidade.
Usando uma expressão dos brancos, "o sangue sobe à cabeça" dos índios por conta dessa situação. Toda razão para os caritianas e os suruís. Afinal, já se vão quase dez anos e se está ainda próximo da estaca zero.

Ricardo Ventura Santos é pesquisador titular da Fiocruz e professor adjunto da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Carlos Coimbra Jr. é pesquisador titular da Fiocruz.

O Globo, 09/05/2005, Opinião, p. 7

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