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Utopia Real

Rolling Stone, n. 55, abr. 2011, p. 98-103
Autor: MILANEZ, Felipe
30 de Abr de 2011

Utopia Real
Ao completar 50 anos de criação, o Parque Indígena do Xingu ainda oferece um porto seguro aos primeiros habitantes do Brasil

Por Felipe Milanez

Aterrissar no xingu, no norte do mato Grosso, é uma experiência mágica. O avião flutua sobre uma massa de floresta, corta por cima o rio e mira na direção da pista de terra. O contraste do marrom com o verde sempre me causa boa impressão. Verde-escuro da mata, verde-claro da beira do rio e um marrom marcante da pista de terra. Próximo à pista, também em forma geométrica, um círculo marrom, margeado por grandes casas de palha: é a aldeia Moygu, dos índios ikpeng. O teco-teco toca o chão e vai freando macio, diferentemente de um avião comercial, que chega abrupto ao asfalto. Na beira, tem início uma movimentação, sempre característica em todas as aldeias que já visitei no Xingu, com crianças, mulheres e homens olhando curiosos, certa ansiedade para ver quem chega, vestidos com pouca ou nenhuma roupa. O clima é de tranquilidade, muito diferente da última cidade de onde o avião decolou, seja em Brasília, seja nas cidades no entorno do Parque Indígena do Xingu, como Canarana, Sinop ou Gaúcha do Norte, onde reina a migração sulista. Há aqui algo diferente de qualquer outro lugar. "O paraíso amanheceu mais uma vez em paz": vem à memória a reportagem de Carlos Azevedo feita para a revista Realidade em 1966, enquanto vejo a aldeia e o sol ainda matinal. Deve ser a sensação de estar no paraíso. Algum lugar idealizado por histórias antigas, mas que existe de verdade como um mito: Xingu.

Eu saio do avião. alguns índios se aproximam, simpáticos e prestativos, oferecendo ajuda para carregar a bagagem. Crianças distribuem sorrisos curiosos. "Foi boa a viagem? Seja bemvindo", escuto de um senhor índio, em português fluente. Ele vira-se para um menino e pronuncia algumas frases na sua língua. Pergunto por Melobo, hoje chamado de Araká, um dos principais líderes do povo ikpeng. "Ele está na aldeia. Vai vir falar com vocês", responde o senhor. Marina, viúva do indianista Orlando Villas-Bôas, havia mandado um abraço, em um encontro que tivemos em sua casa, em São Paulo. Ela tinha recordado a época em que era enfermeira e quando esse povo foi trazido ao Parque, em 1967. "Estavam fracos, com fome e doenças contraídas de garimpeiros, sofrendo. Corriam risco de ser dizimados." Eu queria conhecer Melobo.

Em 14 de abril, o Xingu completa meio século de criação. O projeto foi tirado da gaveta e assinado em 1961 pelo presidente Jânio Quadros. Foi um dos maiores feitos do indigenismo nacional, mudando completamente a relação do Brasil com os índios ao demarcar um território para uso exclusivo deles, onde todas as aldeias pudessem conviver sem estarem ilhadas no meio de fazendas. O projeto estava parado desde que Getúlio Vargas o havia recebido, em 1952, de uma comitiva integrada pelo marechal Cândido Rondon, junto do médico sanitarista Noel Nutels, do maior antropólogo brasileiro, Eduardo Galvão, e dos ainda jovens Darcy Ribeiro e os irmãos Cláudio e Orlando Villas-Bôas. A ideia desse grupo, quase utópica, era criar um extenso parque de proteção da natureza que englobasse povos que viviam ainda sem contato com a colonização do Brasil, que começava a chegar com as frentes pioneiras.

Jânio era amigo de infância de Orlando do interior de São Paulo, e, assim que assumiu, fez um convite para que ele integrasse seu governo. O idealista Villas-Bôas recusou e Jânio teria dito: "Neste país, a gente não pode contar com os amigos em que confia". Orlando respondeu, utilizando sua astúcia política: "Se criar o parque do Xingu, o senhor dará a maior alegria da nossa amizade e eu aceito ser o diretor desse parque". Com temperamento intempestivo e pouco paciente para longos argumentos de intelectuais, Jânio, influenciado pelo amigo, assinou o decreto 50.455, prontificando-se a visitá-lo após sua criação. Essa é a versão não oficial, mas é plausível. Teria sido relatada por Orlando em conversas.

O então Parque Nacional do Xingu, que agora tem o nome oficial de Parque Indígena do Xingu, foi a maior mudança na relação do Brasil com os índios desde o surgimento do Serviço de Proteção aos Índios, criado por Rondon, em 1910. Jânio assinou um documento que nem Getúlio Vargas ou Juscelino Kubitschek tiveram coragem, tamanha era a pressão contrária dos fazendeiros. A área demarcada tinha apenas um quarto do que havia sido proposta. Mas, pela primeira vez na história da humanidade, um povo indígena poderia desfrutar de seu modo de vida tradicional sem ter de se submeter culturalmente à sociedade colonizadora. E as terras indígenas passaram a ser vistas como territórios, como natureza culturalizada.

Frente a empresas de colonização privada que loteavam o Mato Grosso, separar um imenso quinhão para os índios, uma população sem voz, foi uma tarefa hercúlea, possível de ter sido criada apenas pela genialidade de um grupo de idealistas. Em seu livro Confissões, Darcy relembra a reunião inicial para a criação do Xingu, em 1952: "Na conversa com Getúlio, não falei de direitos dos índios àquelas terras. Argumentei que no Brasil Central os fazendeiros derrubavam a mata e colocavam fogo para plantar capim. A terra se convertia em um deserto. A única forma de preservar aquele pedaço do Brasil original, para que os netos dos nossos netos pudessem vê-lo daqui a milênios, seria criar um parque, entregando aos índios sua preservação".

Melobo, hoje araká (os ikpengs mudam de nome ao longo da vida), me recebe com a simpatia de um líder. Fala português com sotaque forte, aprendido quando era jovem. "Seja bem-vindo", diz. O corpo é forte, magro e a pele, bastante rígida para quem beira os 70 anos. "Eu sabe toda a história", ele diz, em linguagem pronunciada com esforço. "Eu era muito guerreiro. Todo mundo era muito guerreiro." Ao longo de alguns dias de estadia, Araká passou a contar momentos de sua vida e de seu povo. Do sofrimento da chegada, do sentimento de exílio no Xingu, da vontade de retornar à terra original. O motivo da visita era a inauguração de um centro de memória e museu, chamado Mawo. Os jovens ikpengs são astutos, conectados com novas tecnologias, fazendo uma permanente transferência de conhecimento entre as culturas. Araká é um dos principais guias nesse processo.

O Parque do Xingu é uma área de quase três milhões de hectares, onde vivem cerca de 15 etnias diferentes. Falam línguas próprias, divididas entre quatro grandes troncos linguísticos. No alto Xingu, a longa convivência de séculos fez quase fundir culturas, criando uma união de povos. Já na região do médio curso do rio, onde vivem os ikpengs e os kaiabis, ou no baixo Xingu, onde estão os suyás e jurunas, a diferença entre a cultura material de cada povo é mais evidente para quem vê de fora. Essas divisões culturais, antigas, especialmente entre o alto Xingu, onde estão os rios formadores, e o resto do curso, permanecem até hoje, cada vez mais acirradas.

Antes da televisão em cores, eram as revistas que transportavam leitores distantes para paraísos míticos como o Xingu. O Cruzeiro, uma prestigiosa publicação de Assis Chateaubriand, dono dos Diários Associados, foi a referência para a construção de um imaginário social em torno do Brasil dos sertões. Foi quando Orlando, estrategista, aproximou-se de Chateaubriand e começou a utilizar a mídia para defender a causa indígena. O parque passou a receber jornalistas e fotógrafos do Brasil e do resto do mundo e um mito foi crescendo. Acompanhar uma expedição, descrever o Xingu, tornou-se objetivo jornalístico. Nenhum passou tantos anos no Xingu como Jesco von Puttkamer, falecido em 1994, que, entregando-se de corpo e alma para a causa indígena com o seu talento, passou a viver no parque e chegou a publicar diversas reportagens na prestigiosa National Geographic. As fotos agora pertencem ao acervo da Universidade de Goiás.

O Xingu tornou-se um símbolo da convivência de culturas, capitaneado pelos irmãos Villas-Bôas, sempre presentes na área. "Eles conseguiram criar uma imagem bonita, mostrar o lado positivo do índio", diz Marina, viúva de Orlando. "Nós todos, jornalistas-indigenistas ou indigenistas-jornalistas, tínhamos em Lévi-Strauss, Darci Ribeiro, Eduardo Galvão, Carmen Junqueira, e tantos outros, nossas referências maiores, teóricas, acadêmicas. Mas tínhamos o testemunho prático, real, do dia a dia, de Chico Meireles, Orlando e Cláudio, Apoena Meireles, Gilberto Pinto. Eram sertanistas históricos, referências humanas, com os quais convivemos", recorda-se o jornalista Edilson Martins, que cobriu o Xingu para o Jornal do Brasil. Dentre os sertanistas, havia sempre a reverência a Rondon, quem Orlando considerava "o maior homem do século 20". Para ele, Rondon era um humanista, admiração que expunha com retratos do Marechal espalhados por sua casa. Sua família guarda diversas cartas escritas, de próprio punho, pelo Marechal para Orlando.

Com o cinema e a TV, o Xingu começou a ganhar sons e movimentos e a eternizar seus rituais. Escritores criaram obras clássicas como Quarup, de Antonio Callado, inspirada no rito funerário xinguano, e A Majestade do Xingu, de Moacyr Scliar, cujo personagem tem origem em Noel Nutels, médico sanitarista russo que revolucionou o tratamento de saúde indígena, também um dos mentores do Xingu.

Canarana, antigo acampamento da expedição Roncador-Xingu, é hoje uma cidade planejada e próspera, cuja economia gira em torno da soja e da pecuária. Ela está localizada entre o Parque do Xingu e o território dos índios xavantes, em direção ao Araguaia. A cidade é a entrada do Xingu, e também local onde estão postos administrativos dos índios. Acompanho Siridiwe, cacique xavante da aldeia Etenhiritipá. Sua filha recém-nascida precisa de documento para poder viajar com ele. Na Funai, encontra Pirakumã, índio yawalapiti e funcionário do órgão. Os xavantes são vizinhos dos xinguanos e no primeiro projeto de criação do parque suas aldeias estavam incluídas. Foram retiradas por disputas políticas e pressão de fazendeiros paulistas, que loteavam a região. O território xavante, que era defendido por Chico Meireles, foi demarcado em ilhas. Pirakumã, articulado na burocracia, ajuda Siridiwe a obter o documento, assinando uma certidão da Funai.

Pirakumã e Siridiwe falam sobre suas aldeias e expressam descontentamentos sobre a política do governo federal - o escritório da Funai em Água Boa, cidade vizinha, que atendia os xavantes havia sido fechado. Reclamam do órgão, mas também do desenvolvimentismo - palavra mencionada com certa frequência por ambos. As recentes obras na Amazônia têm deixado apreensivos os índios. "O governo autoriza a construção de barragens nos rios, mas não consulta os índios. Acham que são donos de tudo, que são donos dos índios. Índio é minoria e esse desrespeito me chateia", desabafa Pirakumã.

Pirakumã é irmão de Aritana, filho de Canato, um dos maiores líderes políticos da história recente do Xingu, consagrado pelo Quarup de Callado. A sobrevivência étnica dos yawalapitis é tida como um dos grandes méritos da política de proteção implantada pelos Villas-Bôas. "Sua façanha mais extraordinária, ao meu ver, foi a criação, ou recriação, de todo um povo - os yawalapitis, que só existiam dispersos nas várias aldeias xinguanas, até que os Villas-Bôas os juntassem novamente", escreveu Darcy Ribeiro.

"Nahu, um chefe kuikuro, foi o primeiro índio que aprendeu português. Ele era primo de meu pai, e ensinou para ele. Se não fosse pelos grandes líderes indígenas, os nossos povos não teriam sobrevivido. Lutaram por nossa cultura. Eram guerreiros e diplomatas", conta Pirakumã. "Os Villas-Bôas viam os marcos na terra, dos loteamentos, e arrancavam, jogavam no rio. Eram os verdadeiros amigos e lutaram com nossos caciques." Pirakumã aprendeu as tradições com seu pai, mas teme pelo futuro. "Estamos preocupados com os jovens, como eles vão viver, proteger a nossa cultura", diz.

Várias comemorações relativas ao cinqüentenário do Parque devem ocorrer no primeiro semestre. Em agosto, o filme Xingu, dirigido por Cao Hamburguer, vai colocar o local na mídia. A Globo negocia um reality show da Marcha para o Oeste, levando jovens da cidade para o mato, incluindo uma estadia na aldeia dos índios kamaiurás. A negociação dessas grandes produções, capitaneadas por empresas com pouco tato no trato com a cultura indígena, serviu para colocar mais tensão na rivalidade entre as aldeias, já que apenas algumas serão beneficiadas. Os índios, que lidam de forma diferente com a memória, ficaram ressabiados com o uso das histórias de seus antepassados.

Araká era um jovem quando seu povo foi contatado pelos irmãos Villas-Bôas, em 1964, e trazido, em balsas, para o parque, em 1967. Eles estavam em guerra com os índios waurás, outra etnia xinguana, dos quais são historicamente inimigos. Mas também estavam cercados por garimpeiros. E suas terras, fora do parque, estavam na mira da colonização. Cláudio e Orlando não conseguiram demarcar a área. Os ikpengs foram removidos para o Xingu, onde teriam a assistência do Estado. A experiência foi traumática, mas sobreviveram. Eram pouco mais de 50, hoje somam mais de 300.

"O Orlando era bravo", recorda Carmen Junqueira, uma das mais destacadas antropólogas brasileiras. "Era preciso seguir um estrito código de ética do Xingu." Professora da PUC/SP, Carmen chegou no Xingu em 1965, por indicação de Eduardo Galvão e Darcy Ribeiro. Ela escreveu a tese sobre o - um ritual de homenagem aos mortos feito pelo os índios da região - e passou a ir todos os anos para a aldeia dos kamaiurás. Seu maior aliado, e fonte, é o poderoso pajé Tacumã.

As comunidades indígenas constituíram associações, com estatuto jurídico de ONGs, que se relacionam com diversas organizações e entidades, como o influente Instituto Socioambiental, bastante ativo no médio rio Xingu, mas que se mantém fora do alto Xingu por divergências com os caciques. Os povos hoje agem de forma independente, articulam seus interesses e buscam alternativas econômicas. Alguns iniciaram programas de turismo, outros estão envolvidos com programas de coleta de sementes, fazem artesanatos com alto valor e interesse no mercado.

Muitos jovens têm acesso às universidades e alguns cursam pós-graduação. A internet conecta algumas aldeias, com sinais via rádio, e isso tem servido, também, para politizar e engajar as lideranças. É comum espalharem e-mails de protestos ou organizarem encontros via redes sociais. As cidades do entorno crescem e recebem, cada vez mais, uma rede de serviços que tem seduzido moços e moças a buscar uma vida diferente da tradicional.

Vivendo entre dois mundos, entre dois universos culturais bastante distintos, eles têm conseguido utilizar ferramentas tecnológicas para proteger a cultura, gravando histórias, filmando rituais. Além de ter a natureza preservada, como prometeu Darcy a Getúlio, o Xingu, 50 anos depois da sua criação, segue como um notável exemplo de convivência de culturas.

Rolling Stone, n. 55, abr. 2011, p. 98-103

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