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Urbe da floresta

O Globo, Ciência, p. 38
29 de Ago de 2008

Urbe da floresta
Cientistas descobrem que Amazônia teve rede urbana complexa há 350 anos

Ana Lucia Azevedo

Por séculos gerações de exploradores buscaram cidades perdidas na Floresta Amazônica. Buscavam o brilho do lendário Eldorado. Não perceberam que a Amazônia pré-colombiana abrigou, sim, grandes concentrações urbanas. Mas estas não brilhavam. Tinham o marrom e o verde da floresta. Num estudo publicado na edição de hoje da revista "Science", pesquisadores americanos e brasileiros descrevem a descoberta de uma complexa rede urbana no Alto Xingu, Mato Grosso. De 1250 a 1650, povos de origem arauaque abriram estradas e canais, cavaram valetas defensivos e construíram aldeias interligadas por uma área de 20 mil quilômetros quadrados.
Estima-se que, em seu auge, essa sociedade do Xingu teve 50 mil habitantes, organizados sob um poder político e religioso que irradiava das principais aldeias para as menores. A descoberta põe por terra a tese de que as condições extremamente quentes e úmidas da Amazônia jamais permitiram o desenvolvimento de sociedades complexas. E revela ainda a existência de uma nova forma de uso urbano, diferente do existente na mesma época nas cidades da Europa.
- Resolvemos denominar essa forma sistemática de ocupação do território de urbana, mas talvez pudéssemos usar um neologismo como silvanismo. Trata-se de conceitualizar essas redes de aldeias e vilas interligadas, que constituem, digamos, um tecido urbano, mas que é diferente daquele ao qual estamos acostumados - afirma o antropólogo do Museu Nacional Carlos Fausto, um dos autores do estudo.
Fausto, que há anos desenvolve pesquisas com os povos do Xingu, diz que o povo kuikuro herdou o tipo de organização espacial dos construtores da rede urbana. Porém, em escala bastante reduzida. Hoje, há apenas 700 kuikuros, distribuídos em três aldeias. Foram os kuikuros que mostraram aos cientistas onde ficavam os vestígios das antigas aldeias e estradas. O chefe kuikuro Afukaka Kuikuro é um dos autores do estudo publicado na "Science".
- Os kuikuros têm um nome para cada uma das aldeias. Faz parte de sua tradição oral - explica Fausto.
A descoberta impressiona. As maiores estradas entre os povoamentos têm entre 20 e 50 metros de largura. Algumas chegam a cinco quilômetros de extensão. Como atravessam áreas alagadas, foram construídas pontes, elevações de terreno e canais para canoas. Os pesquisadores identificaram cerca de 15 grupos principais de aldeias, distribuídos numa área de 20 mil quilômetros quadrados. Cada grupo era formado por uma aldeia maior, protegida por valetas ou estruturas defensivas, e ligadas a aldeias menores por estradas. Os cientistas encontraram indícios da existência de represa e lagos artificiais.
Até hoje, os kuikuros represam os rios para facilitar a pesca.
- Os agrupamentos de aldeias têm uma distribuição geométrica precisa que supomos ser fruto de escolhas ambientais e culturais - observa Carlos Fausto.
O antropólogo da Universidade da Flórida Michael Heckenberger, autor principal do estudo, destaca na "Science" que o que se supunha ser "uma floresta tropical virgem" é, na verdade, uma região altamente influenciada pela ação humana. "Algumas das práticas dessas pessoas podem ensinar bastante sobre desenvolvimento sustentável", escreveu Heckenberger.
- Foi uma ocupação intensiva, mas que não destruiu a floresta. A mata foi alterada, porém, não houve perda de diversidade -frisa Fausto.
Os cientistas supõem que a grande sociedade ali existente entrou em declínio no século XVII com o ingresso de novas doenças, como a varíola, trazida pelos conquistadores europeus. Há relatos dramáticos de jesuítas sobre a devastação que a varíola provocou entre os índios em outras regiões do Brasil. No Xingu, a doença chegou antes de uma ocupação mais intensa dos brancos.
Só no século XVIII é que surgem relatos da entrado homem branco nessa parte da Amazônia.
- Os kuikuros, que são um povo caribe, chegaram à região do Alto Xingu no século XVII - diz Carlos Fausto.
Como o estudo da história da ocupação da Amazônia ainda é incipiente, os cientistas não duvidam que a floresta ainda tenha segredos mais surpreendentes para revelar.

O Globo, 29/08/2008, Ciência, p. 38

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