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Unir terra e conservação

Revista do Terceiro Setor-Rio de Janeiro-RJ
Autor: Neide Esterci
01 de Mai de 2003

Entrevista com Neide Esterci, presidente do Conselho Diretor do ISA

Uns querem mais terras para plantar; outros, preservar o meio ambiente a todo o custo. Movimentos sociais de luta pela terra e ambientalistas, aparentemente opostos, começam a se entender sobre a necessidade de mais áreas para a agricultura familiar aliadas à preservação dos ecossistemas. Ambos pedem mais atenção para pesquisas, novas técnicas de produção e incentivos para que seja possível aliar reforma agrária e conservação de ecossistemas - duas questões fundamentais no Brasil de hoje.
Essas são algumas das questões abordadas pelo livro "Reforma Agrária e Meio Ambiente", resultado da oficina de mesmo nome oferecida pelo Instituto Socioambiental no Fórum Social Mundial de 2002. A publicação traz os resultados das discussões e artigos de alguns dos participantes, entre eles Carlos Frederico Marés de Souza, integrante do Conselho Diretor do ISA e coordenador da área de Direito Socioambiental da PUC-PR, Miguel Pressburguer, fundador da Apoio Jurídico Popular (Ajup), Jacques Alfonsin, professor de Direito Agrário da Unisinos, e Egídio Brunetto, assentado do Movimento dos Sem-Terra de Santa Catarina.

"Reforma Agrária e Meio Ambiente" foi organizado por Raul Silva Telles do Valle, da equipe do Programa de Política e Direito Socioambiental (PPDS) do ISA, e por Neide Esterci, presidente da organização. Esterci, que também é professora do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ, conversou com a Rets e mostrou como é possível aliar os movimentos que lutam por mais terras para plantar e os que tentam a todo custo preservar as florestas ainda restantes.

Rets - Como se articulam os movimentos ambientalistas e os que lutam pela reforma agrária? Como um vê o outro? Há algum tipo de conflito entre eles?
Neide Esterci - No Fórum Social Mundial, de 2002, o ISA organizou um debate sobre o tema Reforma Agrária e Meio Ambiente. Estavam representadas organizações ambientalistas (Rede Mata Atlântica), o Movimento de Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), e o Movimento Sindical de Trabalhadores Rurais (MSTR). Estes temas foram tratados por eles e estão registrados no livro.
No que se refere à articulação: não sei se este é um bom termo para falar da relação entre os movimentos ambientalistas e os movimentos de luta por terra, neste momento. Parece que se fez uma articulação no Rio, mas desconheço se alguma articulação mais ampla já está sendo pensada. O que se percebe é uma consciência muito grande acerca da necessidade de aprofundar o diálogo e uma disposição de construir uma aliança, porque cada um desses movimentos reconhece a importância do outro na transformação da sociedade. Os ambientalistas sabem que a reforma agrária é necessária e que os pequenos produtores podem ser seus maiores aliados; e os dirigentes dos movimentos de luta por terra estão convencidos de que os cuidados com a terra e os recursos da natureza não podem mais ser adiados. O que acontece é que os trabalhadores rurais têm necessidades imediatas e às vezes não podem esperar, enquanto que os ambientalistas não querem perder aqueles ecossistemas que já estão muito ameaçados. Os conflitos ocorrem por isto, sobretudo, naquelas áreas que são consideradas pelos ambientalistas como prioritárias para a conservação. Os trabalhadores às vezes as ocupam ou o próprio Incra cria assentamentos nas proximidades de remanescentes de floresta. É o que acontece na Mata Atlântica, por exemplo.

Rets - Até que ponto os assentados levam em consideração a preservação ambiental? Eles dão importância ao assunto? Têm educação e/ou treinamento para isso?
Neide Esterci -Tanto o MST quanto o MSTR sabem que é preciso preservar e usar técnicas menos agressivas para com a natureza e têm feito algumas experiências neste sentido. Mas, eles não querem ser referidos como se fossem os principais responsáveis pela degradação e argumentam que é preciso um movimento mais geral de todos os setores no sentido de mudar o modelo de produção. Alegam que foram sempre incentivados a usar produtos químicos e técnicas agressivas, visando ao aumento da produtividade. Para reverter esse quadro, dizem que é preciso um trabalho de reeducação dos agricultores, o que é um processo difícil, que não se faz da noite para o dia e precisa estar associado a políticas de governo adequadas.

Rets - Que dificuldades os assentados enfrentam para preservar o meio ambiente em suas propriedades?
Neide Esterci - Entre outras coisas, os dirigentes do MSTR, por exemplo, falam da necessidade de investimento em pesquisas que sejam voltadas para a produção familiar - já que elas têm servido prioritariamente os grandes produtores. Reivindicam dos órgãos de pesquisa do governo e das universidades pesquisas que lhes permitam produzir sem degradar.

Rets - O que o Estado pode fazer para melhorar a relação entre reforma agrária e meio ambiente? A inclusão de critérios ambientais em editais de financiamento de propriedade agrárias seria uma solução? Tanto nas pequenas quanto nas grandes? Qual a viabilidade desses critérios para os pequenos agricultores?
Neide Esterci - Além da pesquisa, já citada, a criação de incentivos é, sem dúvida, importante. Que haja incentivos à manutenção das áreas verdes e à utilização de métodos adequados. Muitas vezes, como se sabe, os pequenos produtores, na Amazônia, principalmente, deixam entrar os madeireiros em suas terras, em troca da abertura de pequenas estradas que eles precisam e não teriam condições de abrir. Muito tem se falado em políticas compensatórias. No caso da Amazônia, proteger a floresta - ao invés de derrubar a mata para plantar não importa o que - tem sido apontado como uma tarefa de interesse universal, pela qual os índios e os seringueiros, por exemplo, deveriam ser compensados.

Rets - É possível integrar reforma agrária e preservação ambiental? Gostaria que você citasse um exemplo positivo e outro negativo.
Neide Esterci - Algumas experiências vêm sendo feitas. Uma delas envolve vários assentamentos do MST e o IPÊ, uma entidade empenhada em conservar a biodiversidade, na região do Pontal do Paranapanema, em São Paulo. O IPÊ tomou a iniciativa de conversar com as lideranças dos assentamentos e depois outras entidades também foram convidadas a participar. Está registrado no livro "Seria melhor mandar ladrilhar?", publicado pelo ISA. A integração começou em 1996, através de um esforço consciente e persistente, dos ambientalistas interessados em preservar o que ainda restava da fauna e da flora da Mata Atlântica, naquela região, e pequenos produtores assentados, que perceberam que poderiam proteger a natureza e ao mesmo tempo beneficiar-se dela. Vale a pena ler e conhecer melhor esta experiência. Eles dizem que no Pontal o lema do MST caminha para ficar assim: ocupar, resistir, produzir e ...conservar.

Rets - Qual o papel das ONGs nesse processo de articulação entre redistribuição de terras e conservação?
Neide Esterci - O que as ONGs têm procurado é abrir espaços para o diálogo, de modo que as razões de uns posam ser compreendidas pelos outros. A oficina organizada pelo ISA, no FSM de 2002, foi uma iniciativa neste sentido, mas já houve outras, das quais participaram outras entidades e representantes dos movimentos sindical e de luta por terra de vários pontos do país. Além disto, há ONGs especializadas em tecnologias alternativas que têm oferecido assessoria para cultivos sustentáveis, sem uso de agrotóxicos. Recentemente, o próprio ISA, a partir de uma demanda dos sem terra começou a trabalhar, do ponto de vista jurídico, a possibilidade de reivindicar a desapropriação de grandes imóveis nos quais o direito ambiental esteja sendo desrespeitado.

Rets - Nos últimos anos, a maior parte dos assentamentos foi feita na Amazônia. Até que ponto essa política estimula o desmatamento?
Neide Esterci - Dois dos artigos do livro sobre Reforma Agrária e Meio Ambiente, escritos por técnicos e pesquisadores da Amazônia, abordam a questão das políticas de reforma agrária para a região. Um deles deixa claro que, no governo passado, quando a pressão dos MST sobre o Estado aumentou, o Incra, visando a cumprir as metas de criar tantos assentamentos por ano, acabou criando muitos assentamentos na região. Um dos autores diz que, no estado do Amazonas, esta política do governo acabou criando uma demanda inexistente, além de, algumas vezes, fazer coincidirem os assentamentos com áreas de proteção ambiental, já definidas por lei.

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