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Uma Serra da Canastra para todos e de graça

OESP, Vida, p. A22
Autor: CORRÊA, Marcos Sá
02 de Fev de 2006

Uma Serra da Canastra para todos e de graça
O País poderá alterar o curso de um rio antes de saber de onde ele vem

Marcos Sá Correa

Como se não bastasse o presidente Lula falar em desviar suas águas para o moinho da reeleição, o Rio São Francisco sofre ataque também à cabeceira, que fica no Parque Nacional da Serra da Canastra. Se não fica, ficava. Quase dois séculos depois de receber a visita do botânico francês Auguste de Saint-Hilaire, que chegou ao Brasil no reinado de D. João, o lugar exato de sua nascente está de mudança. A Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco pretende transpô-lo para o Rio Samburá, onde as mais recentes pesquisas cartográficas a teriam descoberto uns 20 quilômetros além do ponto onde sempre esteve. Ou, pelo menos, parecia estar.
Tudo isso parece meio confuso, até por não passar ainda de uma hipótese. Mas, pelo sim, pelo não, o País está às vésperas de alterar o curso do rio antes de saber pelo menos de onde ele vem, o que não deixa de ser um exemplo de como a República executa os planos do Império. Enquanto o IBGE não bate o martelo sobre a origem oficial do São Francisco, o Rio Samburá vai irrigando um debate surdo, mas decisivo, sobre o destino do parque na Serra da Canastra.
Dele já se disse tudo o que os políticos precisam ouvir, quando está em suas mãos a chance de fazer o que eles fazem com a maior boa vontade: passar a borracha nas fronteiras de uma unidade de conservação. Quanto mais essa reserva que, como o próprio rio, parece ter vindo ao mundo meio torta. Foi decretada há 33 anos pela ditadura do presidente Médici. Portanto, o incansável aperfeiçoamento da democracia brasileira, no esplendor do governo Lula, tem ali mais um legítimo entulho do autoritarismo para descascar. Parece brincadeira, mas até esse argumento, descontada uma palavra aqui, outra lá, é cacife nas apostas contra o parque.
Contra ele tudo pesa. Sua implantação foi obra do Incra. Logo, serviço porco. Pelo decreto que o criou em 3 de abril de 1972, depois de uma seca em que pela primeira vez faltou água em seu leito para os barcos que desde meados do século 16 abriam as portas do sertão aos currais do donatário Duarte Coelho, teria 200 mil hectares. Mas essa medida só existe no papel. E assim mesmo pendurada em ressalvas às terras "de alto valor agricultável, desde que esta exclusão não afete as características ecológicas do parque". Trocando o artigo em miúdos, como sempre, o Incra reservou para o governo 106 mil hectares, desapropriou 71,5 mil e deixou o resto para quem quiser tratar depois. Para azar da Serra da Canastra, esse depois está ameaçando cair em 2006, o ano do tapa buraco.
Como toda luta de parques pela própria sobrevivência, a que a Serra da Canastra tem agora pela frente é uma briga muito desigual. São fazendeiros, pequenos agricultores e uma grande mineradora de diamantes cobrando a parte que eles acham que lhes cabe nesse latifúndio improdutivo de lobos-guarás, bugios, emas e outros moradores mal representados em Brasília. E um tesouro natural obrigado a se defender sozinho no Triângulo Mineiro. Fora de mão para a maioria dos brasileiros, mal equipado para receber turistas e isolado por estradas de terra, ele é o tipo do assunto pelo qual só se interessam de verdade os que têm costume de tirar filés de seus lombos escalavrados.
Por isso mesmo, antes que seja tarde, não custa topar o convite que o engenheiro florestal Luiz Artur Castanheira, ex-diretor do Parque Nacional da Serra da Canastra, fez outro dia a deputados. Ir até lá, de graça, pelo Google Earth, embarcando no endereço http://earth.google.com/index.html. Buscar nas coordenadas 20o14'29.88"S e 46o26'43.76"W o alto da chapada, berço da nascente visitada por Saint-Hilaire. Passear por seus campos e serrados em bom estado. Sobrevoar em seguida, acima e abaixo, as encostas onde a erosão está comendo a terra com os pés do gado e o fogo que os pecuaristas põem no capinzal, para a glória dos pastos de braquiária que correm pelas margens de córregos e riachos. "Compare", diz ele.

Marcos Sá Correa Jornalista e editor do site O Eco (www.oeco.com.br)

OESP, 02/02/2006, Vida, p. A22

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