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Uma reserva de miséria

Veja, Vida brasileira, p. 134-137
01 de Jun de 2011

Uma reserva de miséria
A demarcação da Raposa Serra do Sol, em Roraima, empurrou centenas de índios para as favelas de boa Vista e converteu agricultores outrora prósperos em cidadãos pobres

Leonardo Coutinho, de Normandia

Quatro novas favelas brotaram na periferia de Boa Vista, nos últimos dois anos. O surgimento de Mome das Oliveiras, Santa Helena, São Germano e Brigadeiro coincide com a demarcação da reserva indígena Raposa Serra do Sol. Nesse território de extensão contínua que abarca 7,5% de Roraima, viviam 340 famílias de brancos e mestiços. Em sua maioria, eram constituídas por arrozeiros, pecuaristas e pequenos comerciantes, que respondiam por 6% da economia do estado. Alguns possuíam títulos de terra emitidos havia mais de 100 anos pelo governo federal de quem tinham comprado suas propriedades. Empregavam índios e compravam as mercadorias produzidas em suas aldeias, como mandioca, frutas. galinhas e porcos. Em 2009, todos foram expulsos. O governo federal prometeu indenizá-los de maneira justa. No momento de calcular as compensações, alegou que eles haviam ocupado ilegalmente terra indígena. Por isso, encampou as propriedades e pagou apenas o valor das edificações. Os novos sem-terra iniciaram o êxodo em direção à capital. As indenizações foram suficientes apenas para que os ex-fazendeiros se estabelecessem em Boa Vista. VEJA ouviu quarenta deles. Suas reparações variaram de 50.000 a 23.0000 reais - isso não daria para comprar nem um bom apartamento de três quartos nas principais cidades do pais. imagine uma outra fazenda.
Em seguida. foi a vez de os índios migrarem para a capital de Roraima. Os historiadores acreditam que eles estavam em comato com os brancos havia três séculos. Perderam sua fonte de renda, proveniente de empregos e comércio, depois que os fazendeiros foram expulsos. A situação piorou com a ruína das estradas e pontes, até então conservadas pelos agricultores. "Acabou quase tudo. No próximo inverno, ficaremos totalmente isolados", diz o cacique macuxi Nicodemos Andrade Ramos, de 28 anos. Um milhar de índios se instalou nas novas favelas de Boa Vista. "Está impossível sustentar uma família na reserva. Meus parentes que ficaram lá estão abandonados e passam por necessidades que jamais imaginaríamos", afirma o também macuxi Avelino Pereira, de 48 anos. Cacique de sete aldeias, ele preferiu trocar uma espaçosa casa de alvenaria na reserva por um barraco de tábuas na favela Santa Helena. O líder indígena diz que foi para Boa Vista para evitar que sua família perdesse o acesso a escolas, ao sistema de saúde e, sobretudo, ao mercado de trabalho.
Com o passar do tempo, a situação dos índios tem piorado. Recentemente, algumas das famílias desaldeadas começaram a erguer barracos no aterro sanitário de Boa Vista. Uma delas é a do macuxí Adalto da Silva, de 31 anos, que chegou à capital há apenas um mês. Ele fala mal português, mas nunca pensou em viver da mesma forma que seus antepassados. Mesmo porque a caça e a pesca são escassas na Raposa Serra do Sol já faz tempo. Até 2009, ele recebia um salário mínimo para trabalhar como peão de gado. Está desempregado desde então. Como os índios não têm dinheiro, tecnologia ou assistência técnica para cultivar as lavouras, os campos onde o peão trabalhava foram abandonados. Silva preferiu construir uma maloca sobre uma montanha de lixo a viver na aldeia. Agora, ganha 10 reais por dia coletando latinhas de alumínio, 40% menos do que recebia para tocar boiada. Ainda assim, considera sua vida no lixão menos miserável do que na reserva. Ele é vizinho do casal uapixana Roberto da Silva, de 79 anos, e Maria Luciano da Silva, de 60, que também cata latas e comida no aterro. "O lixo virou a única forma de subsistência de muita gente que morava na Raposa Serra do Sol", diz o macuxi Sílvio Silva, presidente da Sociedade de Defesa dos Índios Unidos do Norte de Roraima.
Brancos e mestiços expulsos da reserva também foram jogados na pobreza. O pecuarista Wilson Alves Bezerra, de 69 anos, tinha uma fazenda de 50 quilômetros quadrados na qual criava 1.300 cabeças de gado. Um avaliador privado estimou em 350.000 reais o valor das edificações da propriedade. A Fundação Nacional do Índio (Funai) deu-lhe 72.000 reais por essas benfeitorias e nada pela terra. Seu rebanho definhou. Restam-lhe Cinquenta reses em um pasto alugado. Falido, ele sobrevive vendendo churrasquinho no centro de Boa Vista. Ganha 40 reais por noite. "O que governo fez comigo me dá vergonha de ser brasileiro", afirma Bezerra. Coema Magalhães Lima, de 64 anos, está em situação semelhante. Ela chegou a ter 200 cabeças de gado e setenta cavalos. O fato de ser descendente de índios não impediu que ela fosse expulsa da reserva. Coema recebeu 24.000 reais de indenização. Ela e o marido gastam suas aposentadorias, que juntas chegam a 1.000 reais, para pagar o aluguel de uma pastagem para os 100 animais que lhes restam. "Um dia o governo vai cumprir a promessa de me reassentar em uma área do mesmo tamanho da minha", acredita Coema.
Quando negociou a formação da reserva, o governo federal prometeu que agricultores e índios não sofreriam prejuízos. Chegou a registrar a promessa na Justiça Federal. Mas, em Roraima, a palavra, os documentos e os títulos do governo não têm valor. O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) avisou que só reassentará 130 famílias desalojadas da Raposa Serra do Sol. As outras 210 ficarão a ver navios - ou melhor, canoas. Mais: não concederá nenhuma gleba superior a 5 quilômetros quadrados. Quem tinha fazenda maior que isso arcará com o calote. Mesmo as famílias assentadas na Serra da Lua, perto da Raposa Serra do Sol, continuarão sob ameaça. O Ministério do Meio Ambiente pretende transformar essa área em reserva ambiental. Se a ideia vingar, 200 pequenos agricultores que vivem no local se juntarão aos desalojados que hoje estão em Boa Vista. Com o menor PIB entre as 27 unidades da federação, Roraima já tem 68% de seu território inutilizado por reservas florestais e indígenas. Com a Serra da Lua, passaria a ter 70%. Será mais um golpe nas esperanças de desenvolvimemo do estado.

Veja, 01/06/2011, Vida brasileira, p. 134-137

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