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Uma no cravo, outras na ferradura

FSP, Dinheiro, p.B2
07 de Out de 2004

Biossegurança/Análise
Uma no cravo, outras na ferradura
Marcelo Leite
Colunista da Folha
Com a aprovação da Lei de Biossegurança no Senado Federal, o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva começa, enfim -espera-se-, a desatar o nó dos transgênicos, espécie de entulho biotecnológico que herdou da administração Fernando Henrique Cardoso.
Como se trata de sacramentar o que o agronegócio almeja -desregulamentação para seguir em frente com o fato consumado dos organismos geneticamente modificados (OGMs)-, pode-se falar em herança bendita. Afinal, é principalmente das plantações de soja e dos pastos que estão brotando os dólares da exportação capazes de sustentar a dependência nacional de moeda forte.
Em lugar do "tudo pelo social", enfim, "tudo pelas commodities".
A querela jurídica e de regulação se arrastava desde 1998, quando a primeira decisão favorável à soja resistente a herbicida da empresa Monsanto foi dada pela Comissão Técnica Nacional de Biossegurança, a famigerada CTNBio, ligada ao Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT). Seis anos de indefinição e titubeio, um recorde até para a errática esfera pública nacional.
Retrospectivamente, fica evidente que a fonte do problema estava nesse enquadramento apenas "técnico" da questão. Mesmo seis anos atrás já era óbvio que o tema mobilizava valores muito além da biossegurança estrita -quer dizer, se as plantas dotadas de genes de outras espécies representariam algum risco para a saúde ou para o ambiente.
Escorada na Lei de Biossegurança anterior, de 1995, a CTNBio emitiu a licença para plantio em escala comercial da soja Roundup Ready, variedade na qual a Monsanto havia inserido um trecho de DNA de bactéria para torná-la resistente ao herbicida glifosato (Roundup, na marca da Monsanto). Desse modo, a plantação poderia ser pulverizada para matar ervas daninhas sem risco para a própria soja.
As organizações não-governamentais Idec (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor) e Greenpeace foram à Justiça contra a CTNBio, alegando que ela não poderia decidir questões ambientais, no seu entendimento prerrogativa constitucional do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), órgão do Ministério do Meio Ambiente (MMA). Colheram tanto decisões favoráveis nos tribunais quanto algumas contrárias, além de várias medidas provisórias de FHC e de Lula legalizando o plantio e/ou a comercialização da variedade contrabandeada da Argentina, a popular soja Maradona. Nada disso, no entanto, pôde deslindar o conflito de competências, o que motivou o projeto de uma nova Lei de Biossegurança por iniciativa do Executivo.
A queda-de-braço se transferiu para o Parlamento. Primeiro na Câmara e agora no Senado, o vaivém se deu em torno do mesmo ponto: conferir ou não à CTNBio poder para dispensar a realização de estudos de impacto ambiental. Como a polarização havia alcançado um nível irresponsável, qualquer ampliação do poder da comissão era vista como derrota do MMA e das ONGs, como ocorre agora; inversamente, toda diminuição -como a criação de um conselho interministerial acima do Ibama e da CTNBio- aparecia como fracasso do Ministério da Agricultura e da comunidade científica.Nada de muito bom para o país poderia sair dessa dicotomia simplória. E o que está sendo dado como vitória do agronegócio, neste momento, sempre poderá ser revisto na Câmara, para onde volta o projeto modificado no Senado. Ou, quem sabe, na Justiça. Mais adiante, haverá novas batalhas em torno de vegetais transgênicos mais problemáticos que a soja, como milho e arroz.Na realidade, a disputa é mais pelo precedente desregulador a ser aberto do que pela segurança dessa variedade particular de soja. Não há mais discussão interessante a seu respeito no campo da biossegurança e do impacto ambiental. Após quase uma década de plantio e consumo em larga escala nos Estados Unidos e na Argentina, não se tem notícia de alergias ou outros danos à saúde humana. Além do mais, não há no Brasil parentes silvestres cujos genomas possam ser "poluídos" por genes da variedade transgênica de soja -uma planta cujo pólen, de resto, não fica voando por aí, como o de milho.
Subsistem, porém, objeções de ordem socioeconômica que CTNBio alguma, "técnica", pode resolver: por exemplo, se esse é o melhor tipo de agricultura para o país, com a série de mudanças que acarreta nas relações entre agricultores e produtores de sementes. Isso para não mencionar a comédia da rotulagem, obrigatória por lei e nunca praticada. De ilegalidade em ilegalidade, de fato consumado em fato consumado, os transgênicos vão descendo goela abaixo de todos. Não é a melhor forma de propaganda para a ciência -melhor dizendo, para a estreita noção contemporânea de ciência, identificada com aplicação de tecnologias.
Como se diz na roça, aberta a porteira, a boiada passa. Os líderes mais salientes da comunidade científico-biotecnológica devem comemorar, porque de contrabando com os transgênicos foi autorizado também o uso, na pesquisa de células-tronco, de embriões humanos, ainda que só os já disponíveis há três anos em clínicas de fertilização assistida. Foi uma saída equilibrada, distante tanto da proibição advogada por religiosos como da carta branca desejada por muitos cientistas.
Ao menos no caso da matéria viva humana, não-vegetal, o Senado deu uma pancada certeira no cravo.

FSP, 07/10/2004, p. B2 (Dinheiro)

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