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Uma luta de vida ou morte

JB, Outras Opiniões, p. A13
Autor: BATISTA JR, Paulo Nogueira
28 de Out de 2005

Uma luta de vida ou morte

Paulo Nogueira Batista Jr.
Economista

Volto a um tema difícil: a luta de vida ou morte de dom Luiz Flávio Cappio, bispo de Barra, contra a transposição do São Francisco e em defesa da revitalização do rio. Já tratei do assunto em artigo publicado na Folha de S.Paulo. Foi um parto. Hoje, a dificuldade não está sendo menor.
Mas vale o esforço. Tenho a sensação de que se trata de uma das questões mais importantes perante o país neste momento. Não estarei exagerando se disser que a carga emocional é de ordem a provocar em quem resolve escrever a respeito um sentimento de - qual seria a palavra? - um sentimento de desamparo diante da dimensão do conflito desencadeado pela greve de fome iniciada por dom Luiz em fins de setembro, em Cabrobó (PE).
Em declaração divulgada no início do jejum, ele disse que permaneceria ''em greve de fome, até a morte'', caso não fosse revogada a decisão de levar adiante a transposição do São Francisco. Na passagem mais comovente dessa declaração, dom Luiz escreveu: ''Caso o documento de revogação, devidamente assinado pelo Exmo. Sr. Presidente da República, chegue quando já não for mais senhor dos meus atos e decisões, peço, por caridade, que me prestem socorro, pois não desejo morrer''. E concluiu com a seguinte frase: ''Quando a razão se extingue, a loucura é o caminho''.
Como se sabe, a greve de fome foi interrompida depois de um acordo entre dom Luiz e o ministro Jacques Wagner, enviado pelo presidente Lula a Cabrobó. Menos sabido é que a negociação se deu em condições dramáticas. O bispo e o ministro conversaram a sós, por cinco horas. Dom Luiz chegara ao décimo-primeiro dia da greve de fome. Estava já bastante debilitado, mas tranqüilo e perfeitamente lúcido. O ministro, muito nervoso, consultava repetidamente o presidente Lula por telefone.
Encontrei-me com dom Luiz na segunda-feira retrasada, em São Paulo. Ele contou que os três ou quatro primeiros dias de jejum tinham sido de intenso sofrimento. ''O corpo pede alimento desesperadamente'', relatou, ''só agüentei por causa do espírito, da força da fé''. E explicou que, depois do quarto dia, o corpo de alguma forma se acostuma ao jejum, e o sofrimento diminui. O declínio vital continua lentamente, mas sem a agonia do início. No dia em que chegou o emissário do presidente da República, o médico que acompanhava dom Luiz avaliava que ele tinha apenas mais dez dias de vida.
O acordo alcançado está expresso em uma troca de cartas entre o bispo e o governo. À carta do ministro foram acrescentadas, por ele, as seguintes palavras manuscritas: ''Com a autorização do Sr. Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, celebro o entendimento com a comunidade na pessoa de dom Luiz Flávio Cappio, nos termos em que se somam as duas correspondências''.
São três os principais pontos do entendimento: 1) o governo assegurou que será prolongado o debate em torno da transposição, antes do início de obras, para o esclarecimento amplo das questões que ainda suscitem dúvidas e divergências; 2) o governo prometeu intensificar as obras de revitalização do rio e empenhar-se ao máximo para aprovação de emenda constitucional que garante um investimento anual de R$ 300 milhões, por 20 anos, para essas obras; e 3) o presidente Lula receberá dom Luiz para dialogar sobre o tema.
Por incrível que pareça, acumulam-se indícios de que o governo estaria flertando com a idéia de descumprir o acordo. Noticiou-se que alguns proprietários de terras desapropriadas para a transposição já estão recebendo indenizações. O Exército continua abrindo trincheiras para os canais pelos quais passaria a água retirada do São Francisco. O encontro de dom Luiz com o presidente Lula vem sendo adiado ''por problemas de agenda''. E ministros do governo, inclusive o próprio Jacques Wagner, mas sobretudo Ciro Gomes, principal responsável pelo projeto de transposição e seu maior defensor, vêm dando entrevistas que sugerem a intenção de passar por cima do acordo. Ciro Gomes chegou a dizer que, removidos os impedimentos legais que ainda subsistem, as obras do projeto serão iniciadas ''imediatamente''.
Em artigo publicado na Folha de S.Paulo, dom Luiz alertou: ''Voltarei ao jejum, com mais determinação ainda, se o acordo firmado, em confiança, com o governo, não for cumprido''. E acrescentou: ''Sei que não estarei sozinho''.
Não estará sozinho. O povo brasileiro compreendeu a importância do seu gesto e está com ele. Vou mais longe: se o governo fizer o que declarou Ciro Gomes e começar as obras a curto prazo, estará correndo o risco de provocar uma verdadeira tragédia, uma comoção que ecoará por todo o país e até no exterior.

Paulo Nogueira Batista Jr. (pnbjr@attglobal.net) é professor da Fundação Getúlio Vargas em São Paulo.

JB, 28/10/2005, Outras Opiniões, p. A13

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