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Uma loira no Xingu

Veja, Sociedade, p. 74-75
10 de Nov de 2004

Uma loira no Xingu
Os índios até aceitam que a mineira Andréia more na aldeia. Mas mulher mandar no cacique é demais
Sandra Brasil e Leonardo Coutinho

Há quase quatro anos, a universitária mineira Andreia Duarte, uma loira de olhos azuis, curvas pronunciadas e espírito curioso, chegou à aldeia dos índios camaiurás, no Parque Indígena do Xingu, em Mato Grosso, para uma visita de dois meses. Começava ali uma aventura rara. Apaixonada pelo ambiente antípoda ao seu, integrou-se à vida da aldeia e fincou raízes. Nos filmes antigos de Hollywood, a história evoluiria com a forasteira branca se apaixonando por um cavalheiro que apareceria para resgatá-la, cenas de rituais bizarros com os nativos, algum drama e um final feliz. No Xingu, deu um tremendo sururu, envolvendo fofocas e disputas pelo poder. Na tribo, todos dizem que ela se casou com o cacique, inclusive o próprio. Andreia, hoje com 24 anos, nega, usando termos antropologicamente corretos sobre o equívoco desse tipo de relacionamento. Casada ou não, ela mora na oca do cacique Kotoki. Ao contrário de suas outras três mulheres, exerce grande influência sobre as decisões dele, gerando um ambiente de tensão - para os índios, é impensável ter uma mulher "mandando" no chefe. "Os índios dizem que o Kotoki está na mão da mulher branca", relata Paiê Kayabi, administrador regional do Parque Indígena do Xingu, onde vivem 4.500 índios de catorze etnias em quarenta aldeias. "Só se fala nisso no Xingu."

Afinal, Andreia se casou com Kotoki? "De jeito nenhum. Ele é como um irmão para mim", disse ela a VEJA em entrevista em Belo Horizonte, onde esteve recentemente visitando os pais. Já o cacique, perguntado em conversa pelo rádio se ela é mulher dele, foi sucinto: "Sim". E as histórias sobre sua influência? "Os homens se reúnem todos os dias para discutir os assuntos da comunidade. Quando tratam de questões externas, de relacionamento com os brancos, eles me chamam", afirma Andreia. "Dizem que ela se intromete em tudo", rebate o falante Paiê. "Kotoki dá poderes para que ela mande nos outros homens da aldeia", confirma Carlos Tavares, chefe da assessoria de imprensa da Funai. A antropóloga paulista Carmen Junqueira, que pesquisa os camaiurás, diz que já ouviu rumores do suposto romance, mas relativiza a situação.
"Aldeia indígena é igual a cidade pequena. Para começar uma história dessas não custa muito", avalia. Andreia afirma que passa os dias dedicada à escola que fundou e que nem pensa em manter um relacionamento amoroso na aldeia. "Não que eu seja contra, mas estou no Xingu a trabalho. Não quero entrar na família deles através de um compromisso perigoso, como uma relação amorosa, que expõe e afeta diretamente a estrutura da comunidade", explica. Oportunidades de conhecer os nativos a fundo já apareceram, na forma de propostas sedutoras feitas por ao menos dois índios. "Eles me convidavam para passear na floresta e me ofereciam presentes. Mas recusei tudo", diz.

Andreia morava em Belo Horizonte, num apartamento de três quartos, com o pai, que toca uma empresa de exportação, e a mãe, dona de uma loja de roupas masculinas. Tinha acabado de entrar na faculdade de artes cênicas da Universidade Federal de Minas Gerais, quando conheceu Kotoki num daqueles eventos que encantam jovens universitárias: um encontro sobre musicologia étnica. Interessada na cultura indígena, conseguiu autorização para passar dois meses na aldeia. A visita fortuita virou atividade permanente, Andreia acabou o namoro de dois anos com um músico e se dedicou integralmente a pôr a escola da aldeia em funcionamento. Como professora contratada pelo município de Gaúcha do Norte, em Mato Grosso, ganha salário de 240 reais. Fora de todo o folclore que inevitavelmente cerca sua situação, enfrentou dificuldades inimagináveis. Em 2002, relata, "a colheita foi ruim, uma enchente afastou os peixes e passei fome com eles. Cheguei a perder 10 quilos em um mês e meio. A gente vivia à base de mingau de água com polvilho".
Vegetariana, reaprendeu a comer peixe e frango - sem talheres. Só continua a rejeitar uma iguaria local: macaco-prego. Sente falta de frutas e salada - "Os índios dizem que somos tartarugas, porque comemos folhas". O banho comunal no rio faz parte da rotina diária - "Eles são muito respeitosos, uns aristocratas" -, mas no dia-a-dia Andreia usa vestidos leves. "A nudez deles é natural. Eu seria uma nua tímida", justifica.

Só há um ano Andreia dominou a língua dos camaiurás, a ponto de lhes servir de intérprete - na celebração do último Quarup, em agosto, que teve a presença do ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, circulou desenvolta entre índios e brancos. Não pretende ficar para sempre na aldeia. "Planejo morar lá mais três anos e depois estudar antropologia em São Paulo", diz. Entre seus projetos estão dois livros, um em conjunto com os índios, sobre histórias e mitos dos camaiurás, e outro sobre sua experiência. De casa, sente falta principalmente "de conversar com os amigos, de beber cerveja, de dançar, de ter um quarto para eu poder ler. Mesmo com 300 pessoas à minha volta, sinto uma solidão cultural", afirma. Andreia não participa dos trabalhos domésticos, que são divididos entre as índias, e até suas roupas são lavadas pelas mulheres de Kotoki. "Cada um ajuda como pode", explica. Garante que se dá muito bem com as outras mulheres da oca de 60 metros quadrados, onde também vivem vinte filhos do cacique. "Elas são minhas amigas. Tentam me convencer a depilar as sobrancelhas, porque acham que pêlo é feio, e também implicam quando meu cabelo fica mais crespo. Mas me consideram uma irmã", diz. Ciúme não existe, insiste, até porque, a seu ver, não há motivo algum: "Não sou uma Pocahontas ao contrário".

Veja, 10/11/2004, Sociedade, p. 74-75

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