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Uma alegre confusao indigena

OESP, Viagem, p.V8-V12
11 de Out de 2005

Uma alegre confusão indígena
Assim são os mercados de rua, muitos ainda baseados no escambo, espalhados por Guatemala, Peru, Bolívia e Equador
Fábio Vendrame
Os mercados indígenas latino-americanos surgiram da necessidade de os povos intercambiarem produtos que faltavam para uns e sobravam para outros. Desde muito antes da chegada dos colonizadores espanhóis em terras ameríndias o escambo já era uma instituição comercial praticada em larga escala. Moeda não havia. A negociação sempre foi baseada na troca. Até hoje, o costume perdura nas comunidades mais isoladas por toda a vasta extensão da Cordilheira dos Andes e em rincões da América Central.
Visitar os mercados indígenas é travar contato com os costumes, as tradições e o modo de vida das comunidades. Expostos nas ruas, os produtos ficam em barracas ou no chão, espalhados sobre tradicionais tecidos coloridos. As feiras são ponto de encontro de homens, mulheres, idosos e crianças, que negociam, pechincham, trocam idéias e narram o dia-a-dia dos pueblos. Eles vestem suas melhores roupas, acordam com os primeiros galos e começam o dia mais importante da semana, em que vão tentar garantir a renda familiar, a comida dos filhos, o sustento da casa.
Formigueiros de gente, nos mercados as vozes se confundem, os aromas se misturam, as cores gritam aos olhos. Não é raro ver turistas surpresos com a grande quantidade de mercadorias expostas – a preços, por vezes, inacreditavelmente baixos dada a qualidade dos materiais empregados.
O esmero na confecção de peças de roupa de lã de vicuña (a mais cara), alpaca e llama (a mais popular) é notável nas costuras e no acabamento quase sempre impecável. As técnicas de tecelagem passam de geração em geração. Para essas comunidades, o trabalho artesanal jamais foi substituído.
Por necessidade e tradição, esses povoados isolados conseguiram a façanha de manter-se incólumes à Revolução Industrial. Os efeitos da dita globalização, então, só são percebidos por conta da presença já inevitável de produtos chineses e artigos de inconfundível procedência paraguaia. Quanto mais afastados dos grandes centros, mais autênticos se mantêm esses mercados.
PACHAMAMA
Embora as influências externas se façam presente, ainda de maneira tímida, a tradição impera. Mantas, tapetes, ponchos, saias plissadas, pinturas, máscaras, bijuterias, toda a sorte de ervas e temperos, artigos de couro, de madeira e do que mais a imaginação possa alcançar preenchem cada espaço dos concorridos corredores comerciais improvisados. Também tem grande importância a comercialização dos frutos extraídos da Pachamama, a Mãe Terra dos ameríndios.
Percorremos, ao longo de três anos, os principais mercados populares na Bolívia, no Equador, na Guatemala e no Peru. Não foi uma escolha aleatória: ao lado do México, estes são os países de traços mais marcadamente indígenas do continente. Neles, o modo de vida ancestral salta aos olhos dos visitantes, que têm a rara oportunidade de compartilhar uma empanada de milho feita na hora por uma família andina em meio a um turbilhão de vozes, cores e aromas que contam a história dos diversos povos que formam a América Latina.

Um tour vertiginoso por Chichi
A atmosfera da feira guatemalteca lembra um conto de realismo fantástico
CHICHICASTENANGO - Chichicastenango transforma-se num vertiginoso labirinto de cores cheio de gente às quintas-feiras e aos sábados. Nesses dias, a cidade, a meio caminho entre o Lago Atitlán e Antígua – dois dos principais pólos de turismo da Guatemala –, promove um dos maiores mercados indígenas das Américas.
A atmosfera local é digna de um conto de realismo fantástico. Centenas de pessoas confundem-se pelas ruas da cidade. A praça principal fica completamente abarrotada por artigos expostos em barracas ou espalhados pelo chão. É normal que os estrangeiros sintam vertigem no mercado”, diz a menina Letsa Cumbro, pequena descendente maia.
Letsa circula por Chichi, maneira como os nativos se referem à cidade, atrás de vender os quitapenas”, seis bonequinhos da tradição oral indígena, cuja função é livrar as pessoas das preocupações. Se o senhor tem alguma preocupação, diga a um deles e o coloque debaixo de seu travesseiro”, explica a menina. No dia seguinte, você vai acordar livre dela.”
O quitapenas figura entre os inúmeros objetos oferecidos por gente das etnias quiché e kakchiquel, as mais numerosas do país. Vale dizer que as 23 etnias que formam a Guatemala fazem do país uma espécie de colcha de retalhos cultural costurada com a linha comum e inquebrantável de um legado maia sem igual no mundo.
Atordoados pela quantidade de gente, cores, sons e aromas, os turistas levam um certo tempo para entender o que ocorre ao redor. Homens de chapéu de palha vendem máscaras de madeira talhadas à mão. Mulheres com crianças atadas às costas seguem pregando tecidos com estampas geométricas, confeccionando objetos de artesanato, jóias e muito mais. Tudo feito à mão”, insistem. E, em meio a esse turbilhão de coisas, ainda há quem consiga tirar uma soneca recostado entre tecidos coloridos.
Nunca deixe de pechinchar. Para os guatemaltecos, fechar um negócio é motivo de orgulho. Portanto, pode-se dizer que barganhar é esporte nacional. Quem sai ganhando nem sempre são os clientes, que fique claro. Os americanos – gringos” também para eles – sempre pagam mais caro. Já os brasileiros levam vantagem nessa.
POPOL VUH
O mercado ao ar livre segue em ziguezague cidade adentro. De repente, o reflexo do sol nas paredes caiadas da Igreja de São Tomás ofusca a vista. Nas escadarias, o copal – incenso feito a partir da resina de uma árvore nativa – é queimado sem descanso para purificar o ambiente contra maus espíritos. Uma cortina de fumaça perpétua envolve o templo, erguido em 1540, onde o padre Francisco Ximénez encontrou, no início do século 18, o Popol Vuh, um manuscrito sagrado que narra as histórias e lendas maias.
Na igreja é possível acompanhar extraordinárias manifestações de fé que resultam da fusão entre as crenças indígenas ancestrais e as impostas com a chegada dos espanhóis. O templo também é o centro orbital de uma das tradições mais impressionantes da Guatemala. De 14 a 21 de dezembro é celebrada a Grande Feira de Chichicastenango, dedicada ao padroeiro São Tomás. Nesses dias, as principais confrarias indígenas do país saem às ruas em trajes típicos para festejar deuses mitológicos. A atração mais incrível do evento é o chamado palo volador (pau voador, em tradução literal). Trata-se de uma estrutura de madeira, com 30 metros de altura, fincada no meio da praça principal. Do alto dela, jovens se lançam num vôo em espiral presos apenas por uma corda. E ainda tentam algumas acrobacias. O costume lembra a prática do moderno bungee jumping. [ASSINAPE]F.V.

Escambo no meio do Vale Sagrado
Todo domingo, o pueblo peruano de Pisac é tomado por centenas de visitantes; destaque para a empanada de queijo e cebola
A viagem pelo Vale Sagrado dos Incas é dessas que ficam guardadas para sempre na memória. Os caminhos entre um povoado e outro serpenteiam em meio à Cordilheira dos Andes, num trecho repleto de símbolos de um tempo em que os incas estabeleceram na região o centro de controle administrativo de seu vasto império.
Há muito o que ver e experimentar a partir de Cuzco, a antiga capital inca e atual capital turística do Peru. Saltam aos olhos do visitante exemplos e mais exemplos da fusão entre a arquitetura pré-colombiana e a espanhola, num misto surpreendente de cidade colonial e sítio arqueológico.
Pontuados por povoados tradicionais, os arredores de Cuzco abrem ao viajante uma perspectiva única de interagir nos pueblos com os descendentes históricos das diversas etnias que compuseram o complexo mosaico cultural inca. É possível visitar um punhado deles – e encontrar, em cada um, uma história especial e um traço marcante. Pisac é um deles. E, com certeza, dos mais folclóricos e artesanais. Sua praça principal está cercada de árvores centenárias e ruelas de pedra por onde se esparrama a maior feira de artesanato do Vale Sagrado. Todo domingo, centenas de turistas passeiam pelo povoado, encravado a quase 3 mil metros de altitude na província de Calca, a 32 quilômetros de Cuzco.
É uma festa de cores e tradições que se inicia por volta das 5h30, com a chegada de camponeses e artesãos de comunidades vizinhas. Eles trazem consigo todo tipo de artigo, incluindo o de comer. Afinal, cada zona se dedica ao cultivo de um produto específico. São famosas as frutas de Quillabamba, o milho de Urubamba e assim por diante.
O escambo é praticado a rodo. Um exemplo: os habitantes das regiões altas se abastecem com os produtos cultivados pelos habitantes das zonas quentes. E vice-versa. A troca de produtos agrícolas recebe o nome de trueque.
Costume curioso, antes de dar início às vendas os ambulantes fazem uma oração para que o dia lhes renda o que esperam. Domingo, aliás, também é dia de celebrar uma missa em quíchua, o dialeto ancestral, numa prova da idiossincrasia entre o catolicismo imposto pelos ibéricos e os cultos indígenas.
DELÍCIA
Fazem muito sucesso entre os turistas os ponchos e as peças trabalhadas em lã, como luvas, gorros e suéteres, assim como o artesanato de cerâmica – especialmente o que reproduz símbolos incas, a exemplo de colares e keros (os vasos cerimoniais). Também há muita oferta em bijuterias de prata.
A partir das 11 horas, as empanadas de queijo e cebola começam a sair fresquinhas do famoso e enorme forno de Pisac, feito de barro e situado numa quebrada” entre as ruelas. Nem é preciso saber de antemão a localização exata: o cheiro exalado durante o processo de cozimento direciona os turistas. Saboreá-las é, sem dúvida, um momento de regozijo para corpo e alma. Dizem que passar por Pisac e não provar uma empanada é quase um pecado mortal.
RUÍNAS
O vilarejo também está às voltas com ruínas incas. Chamado de Pisac Velho, o complexo arqueológico é considerado um dos mais monumentais da região por conta da composição ímpar entre suas construções e o entorno do Vale do Urubamba, que o cerca. O local teria sido uma das propriedades reais do Inca Pachacutec.
Feitas em pedra polida, as construções de Pisac são admiráveis e estão cercadas por atalayas (postos de observação para defesa). A região também está repleta de andenes, terraços de dois ou três metros de largura projetados para o plantio nas encostas montanhosas. Destaque para o Intiwatana – uma impressionante obra considerada o Templo do Sol de Pisac.
Outro lugar que impressiona é o cemitério. Separado do sítio arqueológico por um riacho, já chegou a concentrar cerca de 10 mil tumbas. Os incas acreditavam na continuidade da vida, por isso mumificavam os mortos, que eram depositados em urnas com seus objetos de valor (jóias, ouro, prata e outros). Logo que chegaram, os espanhóis não tiveram dúvida: profanaram e saquearam tudo o que havia ali.

Poções ditas mágicas fazem a fama do Mercado das Bruxas
A venda de lhama fossilizado é apenas mais um dos ingredientes na barulhenta La Paz
LA PAZ - La Paz é o tipo de lugar onde ninguém passa batido. É a capital sul-americana de traços indígenas mais acentuados. Caótica, barulhenta, desorganizada, montanha-russa de ruas num sobe-e-desce sem fim, a impressão que se tem é de que é a cidade que se arranja em meio aos vendedores ambulantes e não o contrário. Das duas, uma: ou você vai adorá-la, ou odiá-la com todas as forças. Quase não há rua sem comércio informal. Vende-se de tudo nas calçadas de La Paz: de produtos agrícolas a muambas sabe-se lá vindas de onde. O tráfego intenso de veículos contribui para a sensação de caos. E a ação da altitude faz qualquer um se perder. Haja fôlego para percorrer ruas a mais de 3.600 metros acima do nível do mar.
Duas das irregulares ruas paceñas concentram o que de melhor e mais amedrontador se pode encontrar na principal cidade boliviana. Na Calle Sagárnaga, o mercado de artesanato e antiguidades recebe um intenso fluxo de turistas. As barracas parecem sobrepor-se umas às outras ofertando mantas, ponchos, tecidos, instrumentos musicais e objetos de prata.
Mas é bem perto dali, na Calle Linares, que surge o mais singular de todos os mercados indígenas do altiplano. Ervas, sementes, amuletos, ingredientes supostamente mágicos, antídotos contra todos os males e intrigantes elementos voltados ao culto de divindades andinas preenchem o Mercado das Bruxas.
São mais de 30 barracas ao longo da rua. Nelas há, também, artesanato, flores, perfumes, poções ditas mágicas e impressionantes fetos de lhama fossilizados, além de sapos dissecados – diz a tradição que são bons para atrair dinheiro. Além de um sem-número de esquisitices, a diferença marcante para os outros mercados é que as vendedoras não fazem a menor questão de ser simpáticas.
Seu foco, afinal, não são os turistas. Mas, sim, os rituais de bruxaria aymara – antes de ser colonizada, a Bolívia era habitada principalmente por essa etnia, descendentes da civilização de Tiahuanaco.
O coração de La Paz, entre as Praças São Francisco e Murillo, concentra o maior número de mercados de rua e de cholitas, mulheres que usam saias enormes (as polleras) e o tradicional chapéu (o borsalino). Atração à parte, elas andam com crianças, ou produtos para vender, atados às costas com mantas de lã (os aguayos). E assim segue o dia-a-dia de uma capital inesquecível e completamente destoante da mesmice das grandes cidades. Tudo aos pés do Illimani, o imponente pico nevado do altiplano boliviano.

OESP, 11/10/2005, p. V8-V12

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