VOLTAR

Um voto de estadista (II)

CB, Direito & Justiça, p. 8
Autor: SOUZA, Carlos Fernando Mathias de
08 de Jan de 2010

Um voto de estadista (II)

Carlos Fernando Mathias de Souza
Vice-reitor Acadêmico da Universidade do Legislativo Brasileiro (Unilegis), professor titular da Universidade de Brasília (UnB) e do Centro Universitário de Brasília (UniCEUB) e vice-presidente do Instituto dos Magistrados do Brasil.

Ainda sobre o excepcional voto proferido pelo Ministro Carlos Alberto Menezes Direito no processo referente à demarcação das terras da Raposa Serra do Sol (Petição n 3.368-4/RO), cumpre examinar aspectos que passam pelo direito internacional público, e, mais particularmente, com referência à "Declaração da ONU sobre os Direitos dos Povos Indígenas", de 13 de setembro de 2007.

Com a acuidade que lhe era peculiar, o "justice" brasileiro aponta ambiguidades no diploma e em um texto (com pretensão teórica, para se dizer o mínimo) sobre ele.

Observa o jurista Carlos Alberto Direito que "a despeito da ambiguidade da redação da Declaração, veja-se, por exemplo, o que dispõe o seu art. 46, 1, já seriamente mitigado pelo item 3, o preâmbulo e os demais artigos intentam claramente conferir aos povos indígenas a qualificação de nações, dotadas de autogoverno e autodeterminação (arts. 3, 4, 6 e 12, in fine), com desprezo das fronteiras (art. 36, 1) e do sistema representativo dos Estados-Membros (art. 32)".

E, diz mais Mestre C. A. Direito sobre o que se poderia designar de um certo cultivo de ambiguidades, ao referir-se a texto de autoria de James Anaya (Relator Especial da ONU para Direitos Indígenas), em sua obra "Los pueblos indígenas en el derecho internacional" (Madrid: Editorial Trotta, 2005).

Para o ministro a característica do texto em destaque é, reprise-se, a ambiguidade.

Em outras palavras, aponta, em seu voto, que tais textos dão conta "os receios de uma indevida extensão dos direitos indígenas em direção a uma autonomia frente ao Estado do qual são súditos é, longe de uma radicalização do discurso utilizado pelos críticos da Declaração, um anseio de alguns setores da comunidade internacional". E, prosseguindo, registras: "Não é à toa que alguns Estados-Membros como Austrália, Canadá,Nova Zelândia e Estados Unidos, embora tenham participado e contribuído ativamente nos trabalhos que resultaram na Declaração, se recusaram a votar favoravelmente, tendo destacado a necessidade de se diferenciar autodeterminação externa de autodeterminação interna. Esta última é admitida, de modo a resguardar a representatividade das comunidades indígenas no plano internacional aos órgãos do Estado-Membro na qual se insere."

Ademais, com a objetividade e a clareza que lhe eram características, registra em seu douto voto: "(...) ao contrário do que sustentam alguns defensores de um caráter absoluto dos direitos indígenas, estes são, em verdade, uma das diversas expressões do interesse público de âmbito nacional. À nação brasileira interessa, sem dúvida, a proteção e a preservação dos interesses indígenas, mas interessa também a preservação do meio ambiente e da segurança de nossas fronteiras além de outros interesses públicos representados pela União, como prevê literalmente o art. 231 da Constituição da República. É importante identificar tais interesses para que o estatuto jurídico das comunidades indígenas possa ser de uma vez por todas definido considerando a disciplina constitucional".

Com respeito à proteção do meio ambiente e da faixa de fronteira, ressalta o ilustre Ministro que ela também é matéria que decorre do texto constitucional, sendo expresso em que "haverá, nesses casos, mais uma afetação específica da área em discussão, a gerar uma superposição de afetações. Essa dupla (terra indígena + unidade de conservação) ou tripla afetação (terra indígena + unidade de conservação + faixa de fronteira) deve, portanto, ser resolvida não pela sucumbência frente aos direitos indígenas, mas por uma conciliação das prerrogativas aparentemente em conflito".

Lembra, no particular, o princípio da unidade da Constituição, que é chamado para resolver antinomia (no caso aparente) entre situações como a do direito dos índios, a importância estratégica da faixa de fronteiras e o valor do meio ambiente.

E, com sua enorme autoridade, preleciona: "A Constituição é a síntese de uma miríade de anseios das mais diversas naturezas. Há, portanto, uma pluralidade de interesses acolhidos no texto constitucional do tipo racional-normativo. Ao mesmo tempo, essa diversidade forma um todo unitário que vem a ser o fundamento de toda a ordem jurídica e também o fundamento de todo o sistema que, como tal,não admite nem a instabilidade nem a autonegação.

O objetivo norteador do princípio da unidade é, assim, o equilíbrio entre todos os interesses que compõem uma rede de interdependência recíproca, a ordem constitucional." Logo após essas importante considerações, enfatiza: "o que não deve ser admitido é a continuidade de confrontos entre órgãos federais pela administração direta,ou não, de grandes áreas do território nacional. Não cabe aqui nenhuma forma de radicalismo. Devem ser afastados, por isso,argumentos que, de um lado. só enxergam o absolutismo dos direitos indígenas, com a permanência incontestada e incontestável do usufruto exclusivo e, de outro, não aceitam nada além de um quase confinamento da unidade de conservação" E, vendo o direito sob a óptica de um estadista (e despiciendo seria assinalar que os juízes também são homens de Estado), sintetiza: "o Estatuto Jurídico das Terras Indígenas não se reduz a um "tudo pode" para os índios e um "nada pode" para a defesa do interesse público na sua mais ampla perspectiva.É um estatuto complexo, sofisticado, que consegue ao mesmo tempo cumprir a determinação constitucional de proteção e preservação dos índios e da cultura indígena e assegurar a satisfação dos interesses públicos de ordem nacional, na mais pura tradição brasileira de cordialidade e conciliação.

Tal Estatuto se caracteriza pelo usufruto exclusivo dos índios que, todavia, estará sujeito às condições que ora são definidas, no campo da segurança nacional e da preservação do meio ambiente."

É preciso, pois, enfatizar - como o fez Mestre Carlos Alberto, em seu antológico voto-vista - que se impõe conciliar sob a óptica harmoniosa das previsões constitucionais aquilo que garante aos índios reconhecimento a sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições e os direitos originários das terras que tradicionalmente ocupam (e, mais precisamente, que ocupavam na data da promulgação da Carta de 1988, isto é, em 5 de outubro de 1988 - fato indígena), consoante a inteligência do art. 231, a que assegura, a todos, direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, com dever imposto, tanto ao poder público quanto à coletividade de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações (art. 225) e, ainda, o dever de preservação dos bens da União, entre os quais as terras devolutas indispensáveis à devesa das fronteiras (CF, art. 29, II).

Foi com esteio (em particular) em tais disposições da Constituição, de par com sólida doutrina jurídica, bem como com o suprimento de estudiosos outros (e, mais assinaladamente, de designados cientistas sociais e antropólogos), que Mestre Carlos Alberto Direito, apoiado, ainda, no princípio da unidade constitucional, proferiu seu voto, que acabou (em termos práticos) sendo o condutor na solução do litígio.

Não se pode olvidar, ademais, a sua autêntica tábua-síntese, contendo condições (a rigor, salvaguardas) decorrentes (ou melhor, impostas), constitucionalmente, no concernente ao usufruto dos índios sobre suas terras.

São, ao todo, dezoito condições a merecerem, cada qual, apreciações especiais e (ou) específicas.

CB, 08/03/2010, Direito & Justiça, p. 8

As notícias aqui publicadas são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos. Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.