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Um Rio que passou

O Globo, Segundo Caderno/Prosa, p. 8
19 de Dez de 2015

Um Rio que passou
Livro conta história dos primeiros 'kariokas'
Em 'O Rio antes do Rio', jornalista detalha o cotidiano das tribos ancestrais que habitaram a cidade

Mariana Filgueiras

RIO - O samba "Sapopemba e Maxambomba", de Nei Lopes e Wilson Moreira (mais conhecido na gravação de Zeca Pagodinho, de 1998), é uma das poucas referências populares ao Rio de Janeiro original, aquele pré-colonial, habitado por guerreiros tupinambás, que hoje pouco resiste nos nomes de alguns bairros: "Tairetá hoje é Paracambi/ e a vizinha Japeri/ um dia já se chamou Belém (final do trem). / E Magé, com a serra lá em riba/ guia de Pacobaíba/ um dia já foi também (tempo do vintém). / Deodoro já foi Sapopemba/ E Nova Iguaçu, Maxambomba".
Foi para saber um pouco mais de Tairetá, Sapopemba e Maxambomba que o jornalista Rafael Freitas da Silva reuniu relatos de viajantes estrangeiros, crônicas de jesuítas e diários de colonizadores e escreveu "O Rio antes do Rio", que chega hoje às livrarias pela Babilônia Editorial. A obra, que tem pesquisa de fôlego acadêmico e texto em tom de crônica, detalha o cotidiano das tribos que habitavam a Guanabara antes da colonização.
- Nós ignoramos completamente toda a história que havia antes - dispara como uma flecha o autor, ao comentar a atenção exclusiva que se dá ao Rio de Janeiro pós-fundação, em 1565. - Foi justamente pensando nesta efeméride de 450 anos da cidade que resolvi matar essa curiosidade, há uns três anos, quando comecei a pesquisa. Sempre quis entender como era o Rio antes desse Rio que conhecemos, e depois de fazer o livro, percebi que um Rio de Janeiro teve que acabar para que outro pudesse existir.
"cidade tupinambá"
A curiosidade virou mote quando o jornalista encontrou numa biblioteca um exemplar de "Viagem à terra do Brasil", do missionário calvinista francês Jean de Léry, que veio ao país acompanhando a comitiva da França Antártica. No livro, chamou a atenção de Rafael o relato de um diálogo em que um viajante francês e um tupinambá listam, em conjunto, todas as aldeias que existiram por aqui. Instigado, ele fez um levantamento de todas as informações que encontrou sobre as tribos (de maioria tupinambá), e o resultado é uma aula de kariokice, por assim dizer: "Era uma época em que morar na Guanabara significava ser um guerreiro em busca de um lugar no paraíso eterno. Confiar nos desígnios dos karaíbas e dos marakás, remar em busca dos piraîques, lambuzar-se de eirá, criar armadilhas para onças e espreitar as águias", diz um dos trechos que mais provocam curiosidade pelo desconhecido.
- Quis reunir os detalhes do dia a dia desse Rio que passou - diz Rafael, que abre o livro narrando como era o parto de um bebê à época e segue esmiuçando a rotina de um menino e uma menina na tribo. - Aos olhos de hoje, o carioca é filho de uma mulher escravizada. Trazer à tona a realidade dessa cidade tupinambá foi o que quis fazer com a minha pesquisa.
Rafael também detalha curiosidades sobre os kariókas originais (o termo karióka, aliás, designava a primeira tribo que se acessava à entrada da Baía de Guanabara): os homens tinham o costume de achatar o nariz dos recém-nascidos; de comer os inimigos em rituais canibais que tinham a importância de um réveillon; e paravam tudo o que estivessem fazendo quando passava uma arara-canindé, para admirar sua beleza.
- Hoje em dia, só vi uma arara dessas no zoológico, e não parecia tão bonita quanto nos relatos - conta Rafael, que espera que o livro renda frutos em outras cidades que têm uma "pré-história" tão interessante, como São Paulo ou Salvador. - Parece que a gente quer apagar o passado. Acho que toda escola tinha que dar ao menos um semestre de aula de tupi, língua que cruza todo o nosso vocabulário. No México, eles idolatram os astecas, o turismo é voltado para a cultura asteca. As pessoas estão buscando modelos alternativos de civilização e têm curiosidade por esse passado remoto. No Rio, tínhamos uma grande civilização tupi, e não sabemos quase nada desse período. O Museu do Índio não é visitado, a Aldeia Maracanã, quase posta abaixo, e o Museu do Amanhã foi feito no formato de oca, mas será que terá alguma referência sobre o futuro dessa memória?

O Globo, 19/12/2015, Segundo Caderno/Prosa, p. 8

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