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Um rasgão na Amazônia

OESP, Economia, p. B2
Autor: MING, Celso
04 de Abr de 2006

Um rasgão na Amazônia

CELSO MING

O conflito com a Bolívia sobre o aproveitamento de suas reservas de gás natural mostra a vulnerabilidade do Brasil nesse campo.

Depois que, em 1992, o governo brasileiro assinou com a Bolívia o acordo de suprimento, o consumo interno foi estimulado para que o gás pudesse substituir derivados de petróleo. Hoje, o Brasil consome 40 milhões de metros cúbicos diários, dos quais 26 a 27 milhões de metros cúbicos provêm da Bolívia. Em 2010, o consumo será de 100 milhões de metros cúbicos diários. Apenas cerca de 20% provirão das reservas brasileiras.

Além de exigir desenvolvimento urgente das jazidas descobertas em 2003 da Bacia de Santos, essa crise lança os holofotes sobre o projeto do supergasoduto de quase 10 mil quilômetros previsto para ligar Caracas a Buenos Aires. Se tudo der certo, é coisa para funcionar integralmente por volta de 2025. A idéia está sendo impulsionada pelo presidente da Venezuela, Hugo Chávez, que nele vê um importante fator de integração energética da América do Sul.

Prevê canalização inicial de 100 milhões de metros cúbicos diários que, em equivalência de petróleo, correspondem a 1 milhão de barris diários, ou metade do atual consumo brasileiro de hidrocarbonetos. Uma comissão internacional elabora estudos de viabilidade. As primeiras informações são de que o custo ficará entre US$ 23 bilhões e US$ 25 bilhões, mas o presidente da Petrobrás, José Sérgio Gabrielli, acredita que será "muito mais do que isso". É preciso saber, então, se não seria mais barato construir unidades de congelamento do gás na Venezuela para que o produto seja transportado por navios especiais.

Enfim, este é um projeto que enfrenta enormes desafios. Um deles é o de que nenhum dos países envolvidos tem marco regulatório sobre a matéria. Isso significa que não se sabe ainda o que será legal ou não, até que ponto o setor privado participará da produção e do consumo desse gás; qual será a destinação prioritária do produto; qual a participação dos Estados e dos municípios na distribuição e na renda proporcionada por esse gás; e como se resolverão os conflitos que eventualmente aparecerem. E mesmo que se aprovem essas regras, é preciso perguntar se seu cumprimento será seguro.

Outra questão é a do custo. O gás natural não é uma commodity cujas cotações sejam determinadas diariamente nas bolsas de mercadorias porque é de difícil transporte. Isso implica que seus preços sejam definidos por uma equação que englobe as cotações dos seus sucedâneos imediatos (óleo combustível e óleo diesel), custos de produção e transporte e margem de rentabilidade prevista em cada etapa da produção e transporte. Isso sugere que o gás não chegará ao destino final (Buenos Aires) por menos de US$ 6 ou US$ 7 por milhão de BTU (Unidades Térmicas Britânicas), o dobro do preço pago hoje pelo gás da Bolívia.

Seu alto custo levanta preocupação sobre a engenharia financeira do projeto. Pelas restrições impostas pelo Acordo de Basiléia, que exige capital mínimo para concessão de créditos, o BNDES só poderá adiantar pequena parcela. Em conseqüência do calote passado em sua dívida pública, a Argentina está com seu crédito limitado. Como a Venezuela será a principal fornecedora do gás, é improvável que se disponha a gastar bilhões de dólares no gasoduto. E, se a maior parte dos custos for empurrada para o Brasil, é preciso ver se vale a pena correr tantos riscos.

Os desafios não param aí. Como advertiu Gabrielli a esta coluna, é preciso equacionar os problemas societários, tecnológicos e ambientais. Se o Ibama leva anos para passar uma licença para construção de uma hidrelétrica, imagine o que não levaria para aprovar um gasoduto que vai rasgar de ponta a ponta a floresta amazônica.

OESP, 04/04/2006, Economia, p. B2

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