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Um quilombo no século XXI

Época, Sociedade, p. 66-70
27 de Mar de 2006

Um quilombo no século XXI
Como uma comunidade isolada sobreviveu por 300 anos no Estado mais moderno do país

Eliane Brum (texto)
Maurilo Clareto (fotos)

''Alô, é do Quilombo de Ivaporunduva. Quer falar com quem?'' Como tudo por lá, o telefone é coletivo. Atende quem estiver passando. Na segunda-feira 13, foi o Aelton. 'Ditão? Tá em São Paulo. Zé Rodrigues? Espera aí que eu vou ver.' Faz uma consulta aos gritos pela praça. Alguém berra de volta. 'Também tá pra São Paulo.' Ditão, o Benedito Alves da Silva, e José Rodrigues da Silva são os dois líderes da vila. Se estão no povoado, marcam ponto junto aos dois orelhões, esperando ou despachando telefonemas. Ou, como costumam dizer, 'articulando' com os 2 mil quilombos do país, com o movimento negro, com as ONGs, com a Igreja progressista, com o governo. Se estão fora, também estão articulando, só que pessoalmente. Uma das comunidades negras mais organizadas do país, Ivaporunduva articula muito. O verbo é só um dos muitos jargões incorporados ao vocabulário desde que o enclave de negros caipiras do Vale do Ribeira se descobriu um território político chamado quilombo.
Por séculos a vida em Ivaporunduva foi marcada por um único som: os sinos da Capela de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos. Desde dezembro, porém, o chamado urgente dos orelhões anuncia bem mais que uma mudança sonora. Outro flanco da igrejinha já havia sido assediado há um ano por seis computadores equipados com internet por satélite. Ivaporunduva é um mundo em mutação desde que os 300 quilombolas puxaram o fio do passado. Enquanto esteve apartada de sua história, a margem do Rio Ribeira de Iguape delimitava - também fisicamente - uma fronteira de exclusão. Nas palavras de Ditão, de 51 anos: 'Éramos uma comunidade sem auto-estima, a gente pensava que não era nada. A discriminação derruba qualquer negro'. Mesmo um bem grande como ele. 'Agora, ninguém mais nos derruba. Aqui tem um povo que sabe o que é e anda de cabeça em pé. Não é dádiva para o povo negro, mas reparo pelo que o Brasil fez com a gente.'
Tudo mudou por lá ao descobrirem que eram um quilombo. Mesmo moleques pequenos sabem recitar de cor o 'artigo 68 das disposições transitórias da Constituição de 1988'. Até então, nas cidades do Vale do Ribeira, havia quem se referisse aos 'macacos que moram do lado de cima'. Ou então aos 'pretos vagabundos'. Nos hospitais públicos não saíam do fim da fila, nas escolas eram ensinados a chamar Domingos Jorge Velho, o bandeirante que comandou a destruição de Palmares, de herói. Os negros andavam de cabeça baixa. Veio então a notícia de que não eram apenas um povoado rural de descendentes de escravos, mas um quilombo. No início, espantaram-se com a expressão. 'A gente estranhou, até não gostou muito da palavra. Mas agora só me apresento assim', diz Araci Atibaia Pedrosa, quilombola. 'Ter uma história muda tudo.'
Os tataravôs dela foram arrancados de Moçambique e levados ao Vale do Ribeira para minerar ouro no século XVII, sob o mando de uma dona portuguesa de nome Joana Maria. Devota fiel do catolicismo daquele tempo, quando negro era menos que gente e a escravidão era parte da obra de Deus, Joana mandou logo erguer uma igreja para garantir a salvação da alma. Entre 1630 e 1690, o começo e o término da construção do templo, Joana Maria adoeceu e abandonou o povoado. Os escravos se declararam libertos por conta própria e, sem saber para que lado ficava a África, agarraram-se ao único pedaço de Brasil que conheciam. Essa é a história oficial do quilombo. Há, porém, controvérsias sobre esse itinerário pretérito. De acordo com o laudo da Fundação Instituto de Terras do Estado de São Paulo (Itesp), a capela só foi registrada em 1791. O povoado teria sido fundado por dois irmãos mineradores e seus dez escravos. E Joana Maria só chegou bem mais tarde e morreu de velha, depois de libertar seus negros. 'Ela não era boa coisa nenhuma', diz Zé Rodrigues. 'Já se viu patrão de escravos bonzinho?'
O povoado só foi redescoberto no século XX. Ao esquadrinhar o país em busca de rincões esquecidos, o capitão Carlos Lamarca seguiu para o Vale do Ribeira em 1969, com militantes da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), para fazer treinamento de guerrilha na luta contra a ditadura militar. Chegou a Ivaporunduva travestido de freira, ciceroneado por um morador, Sebastião Mota. Houve um momento em que Mota ficou um pouco desconfiado. Só um pouco. Ele dirigia o Fusca pelo meio do mato quando a religiosa sacou um revólver e acertou num lagarto mirando pelo retrovisor. 'Ô freira boa de pontaria', foi a conclusão geral. Lamarca só revelou a identidade depois, com um pedido de desculpas à comunidade. Quando foi executado na Bahia, dois anos mais tarde, muitos choraram.
No fim dos anos 80, o Brasil percebeu mais uma vez que o Vale do Ribeira existia. A Companhia Brasileira de Alumínio, do Grupo Votorantim, entrou com um pedido no governo federal para executar o projeto da hidrelétrica de Tijuco Alto, uma das quatro previstas para o rio. A investida externa encontrou uma trincheira bem guardada. As comunidades negras iniciavam o processo de reconhecimento como quilombolas. Delá para cá, a briga tem sido feia. Ivaporunduva só terminaria 'afogada', como eles dizem, se as quatro barragens fossem construídas. A brincadeira, não muito longe da verdade, é que, antes de aprender a falar papai e mamãe, os 'articulados' bebês quilombolas já são ensinados a berrar: 'Barragem, não!'.
Herdeiro dessa virada no curso da História, Alexandro Marinho da Silva encarna a primeira geração que não quer abandonar o povoado tão logo alcance a maioridade. Tornou-se, aos 26 anos, o presidente da Associação Quilombo de Ivaporunduva, cargo rotativo e de reeleição vetada. 'Se não fosse a luta pelo reconhecimento como quilombo, eu estaria hoje na cidade. E, lá, o lugar de gente como nós é a favela, trabalhando como doméstica se for mulher, como peão ou operário se for homem', diz ele. 'Hoje quem saiu está voltando e quem está aqui não sai. Dizem que o Vale do Ribeira é pobre, mas pobre para quem? Não para nós, que plantamos tudo o que precisamos. A gente não quer ser rico nem comprar carro, a gente não tem moda, a gente quer ser igual, todo mundo com o mesmo padrão de vida.'
Os homens cultivam banana orgânica, mas são orientados a seguir plantando a roça de subsistência para botar comida na mesa. As mulheres tecem a fibra da bananeira no tear para produzir artesanato para o turismo. O lucro, dividido em cotas, deve ser investido em educação, tecnologia e outras melhorias - não no feijão-com-arroz que sai de graça da terra. Nessa estratégia de fincar pé no território sem destruir o que sobrou de Mata Atlântica - conhecida como o 'tal desenvolvimento sustentável' -, os quilombolas são orientados pelo Instituto Socioambiental.
É senso comum no quilombo que emprego - o sonho de tantos brasileiros - é uma desinteligência. Eles até admitem que isso pode servir para alguém, mas não para quilombolas. Carteira assinada é a versão moderna da escravidão contra a qual os antepassados tanto brigaram. 'A gente é liberto', diz Silvestre Rodrigues da Silva, de 61 anos. 'Sou pobre, não sou orgulhoso, mas o ritmo é meu. Ninguém me obriga a ter horário. Trabalho quando quero, não quando o patrão quer.' A nova geração 'agrega valor' - outra expressão da moda no quilombo - à filosofia. 'Todo o nosso histórico não tem relação boa com emprego e com patrão. Nossa história é feita de terra, liberdade e associativismo. O emprego aliena', afirma Paulo Pupo, de 26 anos, o Paulão. Diante disso, decretam os próprios feriados. Até a Páscoa, por exemplo, a maioria não trabalha às sextas-feiras em respeito à quaresma. Como diz Ditão, 'é tipo uma república'.
A palavra quilombo evoca todos os clichês relacionados à África. Muita gente imagina um lugar esquecido no tempo, isolado no espaço, onde se fala iorubá, pratica candomblé ou joga capoeira. Boa parte das comunidades não tem nada a ver com esse cenário. Volta e meia, porém, os balseiros têm de lidar com algum visitante que faz uma idéia mítica do lugar. Como uma estudante da Unicamp que já começava a tirar a roupa, achando que havia alcançado o Éden perdido. Teve o strip-tease interrompido por Elisio dos Santos: 'Moça, aqui é respeitoso...'. Elisio - 'gasto pela farra, salvo pelo Evangelho' - e Zé - 'o nome mais fácil que tem' - levam e trazem gente, carro, bicicleta, caminhão e banana, presos ao vaivém entre as margens do rio como o barqueiro da fábula. Parece mentira, mas, no rico e moderno Estado de São Paulo, a balsa manual ainda é o único jeito de atravessar o Ribeira de Iguape.
Na outra margem do rio, o quilombo real é um povoado de alma caipira. As violas saem de todo canto no fim da tarde. Difícil um moleque que não dedilhe um pouco de ouvido. A principal dupla sertaneja, Zé Rodrigues e Vandir, alterna com o mesmo sucesso canções de protesto contra as barragens e 'músicas de corno'. A capela, em torno da qual se formam as rodas de cantorias, não está no centro da comunidade por acaso. O catolicismo herdado dos senhores de escravos varreu qualquer rastro de ritual africano. Embora a Igreja progressista tenha sido determinante na expressão política que lhes garantiu o título de quilombo, a prática da religião é tradicional. Na terça-feira de Carnaval, o baile, um brega desenfreado animado por CDs piratas, acabou à meia-noite. Dançar na quaresma não só é pecado, como traz problemas concretos. 'Nem vou na festa, vou logo pra casa. Vai ficando bão, eu me animo e depois nasce rabo', diz Vandir. Até o sábado de Páscoa, não se arrrasta o pé em Ivaporunduva para evitar que o povo amanheça com cauda.
A unidade do quilombo se dá pelo associativismo. A terra é coletiva, os lucros da produção de banana orgânica e do artesanato de fibra de banana são coletivos, o trator, o caminhão, o carro e a moto são coletivos, as decisões, as conquistas e as perdas são coletivas. 'Não fui criado na questão do eu', diz Zé Rodrigues, espantadíssimo com uma pergunta sobre seus sonhos pessoais. Por conta disso, a primeira geração que chegou à universidade tem conflitos ideológicos com o mundo exterior. Paulão às vezes abandona a sala de aula do curso de Gestão Ambiental em protesto. 'Faço parte de uma comunidade em transformação. Fui para a universidade para agregar conhecimento a essa mudança, mas os professores só colocam o lucro individual como objetivo', diz. No colégio, ele foi o primeiro a chocar a professora ao declarar que Domingos Jorge Velho era um bandido e Zumbi um herói.
A primeira escola quilombola da região do Vale do Ribeira demonstra bem quanto a luta avançou. Foi batizada com o nome de uma heroína local. Depois de uma espécie de plebiscito, a eleita foi Maria Merenciana Chules Princesa. Nenhum estudante vai morrer de tédio ao declamar sua folha corrida em efemérides. Maria Merenciana fez o que é considerado a primeira cesariana do Ribeira, num tempo em que todos os caminhos eram de rio. A família tentava alcançar o médico, mas só chegava a tempo do caixão. Diante desse fato conhecido, ela enfiou cachaça pela goela da mulher, deu-lhe um soco na cara, abriu-lhe a barriga à faca, tirou a criança entalada e, depois, costurou com agulha e linha. 'Era uma mulher dispositiva', afirma Benedita Maria Forquim, de 80 anos. 'Dançava com quem queria. Se o homem recusava, apanhava. Andava de faca e espingarda, dava rasteira, batia fandango com o tamanco e bebia que era uma desgracida.' E o marido? 'Conheci dois, eram bem mansos', diz Acilia Antonia da Silva, de 88 anos.
Se esse é o modelo de heroína escolhido para inspirar as novíssimas gerações, dá para arriscar uma idéia do futuro do quilombo. Como diz Ditão, de volta a seu 'escritório' formado pelo banco da praça e pelo orelhão: 'Ah, esta nossa terra daqui a uns 500 anos...'. E empina o queixo para os rumos do horizonte. Aí o telefone toca e acabou-se a filosofia. Ditão vai 'articular' pelas próximas cinco horas.

Ivaporunduva, no município paulista de Eldorado, é o mais antigo quilombo do Vale do Ribeira. A cerca de 300 quilômetros de São Paulo, sinaliza o caminho para as mais de 50 comunidades negras. Apenas 14 são reconhecidas pela Fundação Instituto de Terras do Estado de São Paulo (Itesp) e só cinco têm título de propriedade. A região abriga 21% do que restou da Mata Atlântica

Área: 2.754 hectares (apenas 672 hectares com título de propriedade)
População: 300 pessoas
Origem: escravos usados para a mineração de ouro a partir do século XVII
Economia: banana orgânica para comercialização, artesanato em fibra de banana, turismo
Rendimento médio domiciliar: R$ 347

São 2.146 áreas remanescentes de quilombos no país. Destas, 659 têm registro e apenas 67 o título de propriedade. O governo federal estima que existam 2 milhões de quilombolas em 30 milhões de hectares. Eles são descendentes dos cerca de 15 milhões de escravos trazidos ao Brasil

O que são quilombolas
Grupos étnicos, com predomínio de população negra rural ou urbana, que se auto-definem a partir das relações com a terra, o parentesco, o território, a ancestralidade, as tradições e práticas culturais próprias
O que dizem as leis
O Artigo no 68 das Disposições Transitórias da Constituição de 1988 determinou ao Estado o dever de emitir os títulos de propriedade dos territórios quilombolas. Foi a primeira ação oficial de inclusão das comunidades negras da História do Brasil. O Decreto no 4.887, de 2003, atribuiu ao Ministério do Desenvolvimento Agrário a regularização fundiária
Qual é o caminho
O processo de reconhecimento parte de uma reivindicação da população. O próximo passo é a identificação e delimitação pela equipe técnica dos Estados ou da União. Depois de um período aberto para contestações, é iniciada a regularização fundiária, com a concessão do título de propriedade inalienável em nome da associação comunitária
Um pouco de História
Os quilombos constituíram-se a partir do fim do século XVI no Brasil escravagista. Embora a definição mais genérica seja a de um grupo de negros fugidos e isolados em territórios distantes, hoje os historiadores admitem um conceito mais amplo. Muitos povoados se formaram por outras razões, como dissolução de fazendas por enfraquecimento da atividade econômica, prestação de serviços em períodos de guerra etc. Uma parte minoritária é resultado de agrupamentos criados após a Abolição. O mais famoso dos quilombos foi Palmares, em Alagoas, que chegou a abrigar mais de 20 mil pessoas no século XVII. A data da execução de Zumbi, 20 de novembro de 1695, marca o Dia Nacional da Consciência Negra, comemorado no lugar da assinatura da Lei Áurea, em 13 de maio de 1888. Os movimentos sociais consideram que a libertação só será consumada de fato quando existir igualdade socioeconômica entre negros e brancos.

Época, 27/03/2006, Sociedade, p. 66-70

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