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Um modelo de leviandade ambiental

OESP, Vida, p. A14
Autor: CORRÊA, Marcos Sá
28 de Out de 2004

Um modelo de leviandade ambiental

Marcos Sá Corrêa

Só um grande publicitário como Duda Mendonça poderia anunciar em tão poucas palavras que a leviandade ambiental do governo Lula virou caso de polícia. Ao dizer que o "Brasil inteiro" sempre soube de seu papel na briga de galo, ele fez seu melhor slogan. O único que o País não vai esquecer. E o primeiro que promove uma verdade incontroversa. Dá para retocar esse "Brasil inteiro", tirando muita gente, inclusive milhões de eleitores do PT. Mas não há como excluir da maracutaia o presidente da República e toda a sua vasta equipe. Ficam assim os brasileiros avisados, pela voz credenciada de Duda Mendonça, que a turma de Lula não liga para esses detalhes.
O senador Aloizio Mercadante, expoente do "Brasil inteiro", que não foi apanhado de surpresa, alegou que o marqueteiro só cometeu esse crime porque "todo artista tem suas excentricidades". Nero, por exemplo, tinha lá as suas. Ignorou 25 séculos de argumentos contra a crueldade com os bichos para impedir que o fogueteiro-mór da República faça o que a lei proíbe. De Pitágoras: "Enquanto os homens matarem os animais, eles se matarão uns aos outros". A Gandhi: "A grandeza de um país e seu progresso moral podem ser medidos pela maneira como trata os animais".
E é essa gente, inspirada em tamanha compaixão pelas coisas da natureza, que cada vez mais decide sobre soja transgênica, importação de pneus velhos, asfaltamento da rodovia Cuiabá-Santarém ou transposição do Rio São Francisco, como se exercesse um segundo mandato, o da superioridade moral sobre os costumes vigentes na vida pública brasileira. Pode fazer o que outros governos fariam pelos piores motivos, porque o "Brasil inteiro" sabe que ela faz tudo pelos melhores motivos. Na pior das hipóteses, só os resultados seriam os mesmos.
É o que aconteceu com a usina de Barra Grande, uma das hidrelétricas onde as exigências da licença ambiental foram tratadas em Brasília como estorvo ao desenvolvimento. Semanas atrás saiu, com as compensações de praxe, o acordo que permite seu funcionamento. A ministra Dilma Roussef viu nos termos de ajuste um exemplo de "respeito à vegetação sem prejuízo econômico". E que existe ali é um paredão de concreto erguido sobre a falsificação proposital de um documento público, crime enquadrado pelas leis brasileiras em até cinco anos de cadeia.
Falou-se muito de Barra Grande. Mas na fraude, até agora, não se tocou. Ela é, como o caso de Duda Mendonça, uma dessas histórias que o governo conhece, mas não conta. Construída no Rio Pelotas, vai inundar 5.435 hectares na divisa do Rio Grande do Sul com Santa Catarina, afogando florestas primárias de araucária e campos naturais. Ou seja, uma paisagem que a Constituição chama de "patrimônio nacional". Só está ali, atravessada no Rio Pelotas, porque antes da pilhagem veio a fraude. Em 1998, a Engevix mandou ao Ibama um relatório de impacto ambiental, reduzindo a "pequenas culturas, capoeiras ciliares e campos com arvoredos esparsos" a área a ser devorada pelo lago artificial. Só em 2003 o Ibama percebeu o engano. Mas aí era tarde. Barra Grande estava quase pronta. Era um escândalo com 180 metros de altura que até agora não puniu ninguém.

Marcos Sá Corrêa é jornalista e editor do site O Eco (www.oeco.com.br)

OESP, 28/10/2004, Vida, p. A14

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