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Um martir chamado Pedro

CB, Brasil, p.16
23 de Jan de 2005

Um mártir chamado Pedro
Mais uma vez a pequena São Félix do Araguaia, no Mato Grosso, torna-se assunto importante no mundo inteiro: dom Pedro Casaldáliga, bispo aposentado há dois anos daquela prelazia, diz que quer ficar na cidade até a chegada do novo líder religioso, Mas o vaticano pede, diplomaticamente, que ele saia antes para evitar constrangimentos. Nada diplomaticamente, o povo diz que não, Será todo o povo? A relação de Pedro, como gosta de ser chamado, com as comunidades à beira do rio Araguaia sempre esteve entre o amor e o ódio. O Correio foi a São Felix do Araguaia para saber um pouco mais desse relacionamento que começou em 1968 e dura até hoje.
Leonardo Meireles (Textos)
Daniel Ferreira (Fotos)
São Félix do Araguaia (MT) - A missa do Dia de Finados do ano passado sensibilizou de forma especial dom Pedro Casaldáliga, bispo da prelazia de São Félix. Aquele senhor de 76 anos - completa 77 no dia 16 de fevereiro - fez a celebração no antigo cemitério da cidade, agora abandonado, ao lado do rio Araguaia. Emocionado, lembrou que ali tinham sido enterrados muitos posseiros e peões, sem qualquer identificação, vítimas dos maus-tratos do latifúndio. Segundo os que estavam no local, ele afirmou que aquela era terra santa, onde muitos mártires repousavam. E revelou: "Quero ser enterrado aqui".
Com um pedido de aposentadoria na mão desde seu aniversário de 75 anos, em 2003, ele espera somente que o Vaticano nomeie seu sucessor. Não necessariamente para descansar. Já disse que, se possível, quer continuar seu trabalho em uma comunidade menor, por ali mesmo. Só que dom Pedro, da ordem dos claretianos, também andou falando que só ficaria se o próximo bispo da prelazia - nome dado a uma pequena diocese - seguisse sua linha de apoio aos posseiros, peões e índios.
Pela reação da Santa Sé, a declaração não pegou bem. O núncio apostólico Lorenzo Baldisseri pediu que Eugênio Rixen, bispo de Goiás, viesse pedir a Pedro que saísse antes da cidade para não causar constrangimento ao novo bispo - que ainda não teve o nome divulgado. Na segunda semana de janeiro, a assembléia anual da prelazia lançou um manifesto dizendo que aceitava de braços abertos o novo líder, mas que isso não fosse condição para a saída de Pedro. Além disso, o documento pediu que a Igreja reveja o sistema secreto de escolha dos bispos, para que o povo participe mais.
"E claro que Pedro não vai embora", afirma o padre agostiniano Félix Valenzuela, 71 anos, vigário-geral da prelazia. "E não é ele quem tem que decidir, somos nós", continua o presbítero, que há 17 anos está em São Félix. Em 1980, ele recebeu do Vaticano como prêmio pelos seus 25 anos de ordenação uma viagem a Roma e a Israel. Trocou por uma visita à cidade mato-grossense, ávido por saber mais sobre o trabalho nas comunidades eclesiais de base feito por dom Pedro. 0 próprio Félix, que conta aquela história do cemitério, tem certeza que não vai mais deixar o local. "Prefiro que me joguem o corpo no rio, para que as piranhas comam", diz o madrilenho.

A voz de Casaldáliga
Papado
Não depende de um papa ou outro, mas da própria instituição do papado que, com o decorrer da história, acabou como uma monarquia absolutista. Não acho que seja correto o papa ser um Chefe de Estado.
Sucessão em São Félix
Recebemos há dois anos uma consulta para dizermos três nomes que poderiam ser bispos da prelazia. Depois, não ficamos sabendo de nada, nem que atenção foi dada a esses nomes, se foram pensados outros nomes. Todo poder gosta de segredo. E o poder religioso tem ainda uma maior tentação. Tudo é sagrado, tudo é sagrado, tudo é sagrado.
Ecumenismo
Estamos nos abrindo. 0 Brasil dá um testemunho bonito com a Conic (Conferência Nacional de Igrejas Cristãs) e com a próxima Campanha da Fraternidade. O cristão ainda se posiciona como se tivesse a verdade absoluta e definitiva. Mas Deus é maior que uma religião, é maior que uma Igreja.
Democracia
No mundo, a democracia praticamente não existe. Os Estados Unidos são um país democrático? Não. Dois partidos que são quase a mesma coisa... cadê a democracia cultural, étnica, social? E, depois, se não há democracia para todos os países, não há democracia para nenhum país.

Os detalhes da vida de dom Pedro Casaldáliga, que chegou no Brasil em 1968 e desde então tem colecionado amigos e fiéis, mas também inimigos e polêmicas

As críticas
Nem todos possuem tamanha paixão pelas causas de dom Pedro. Adepto da Teologia da Libertação - que colocou em prática as teorias da linha progressista da Igreja Católica -, o bispo também fez inimigos. Primeiro, os fazendeiros e os militares na época da ditadura. Hoje em dia, os donos de terra são aqueles que acusam Pedro de não realizar a função assistencial da Igreja e ser político demais.
Terezinha Reis, 44 anos, nascida e criada em São Félix, diz que se alguém não apoiar a prelazia, não consegue nem emprego. Casada há dez anos com seu Júlio e mãe de duas meninas, Juliana e Joyce, Terezinha afirma que as coisas só vão melhorar se vier um bispo mais moderado. "Sou católica, mas quero ir à igreja para orar. Se quiser falar de política, vou a um centro político", atira a auxiliar de enfermagem desempregada.
As acusações ideológicas continuam. "Ele não é padre, é político", considera Májari Seidl, artista plástica de 57 anos. Diz que a cidade não tem Santa Casa, creche, asilo e nem uma irmã para segurar na mão na hora da morte. "O povo precisa de freira de verdade, com hábito. Isso não tem aqui", continua Májari, filha de militar perseguido na ditadura por defender a causa socialista. "Mas eu não concordava com meu pai. Para mim, se você trabalha mais, pode ganhar mais e não precisa de sustentar uma cambada, teoriza.
Májari ajuda Leonice Michel, outra artista plástica, a tomar conta do Museu Municipal Histórico e Cultural do Centro-Oeste. Lá dentro, vários quadros de São Félix, santo que dá o nome à cidade, e duas pinturas de dom Pedro Casaldáliga. Uma delas feita pela própria Májari. Denuncia que quase houve uma incineração de livros em 1998 por ordem de Lurdes Jorge, secretária de Educação e amiga de dom Pedro, porque as oba eram sobre líderes militares. Também delatou para a Marinha quando o bispo tentou trazer João Stédile, um dos comandantes do MST, para um seminário sobre educação. "Quando o Stédile visse o quanto de terra que tem por aqui, invadia na hora', indigna-se.
Tem mais: quem não gosta do bispo, argumenta que ele impediu o desenvolvimento da cidade, como a construção da hidrovia no rio Araguaia, a implementação dos agronegócios na região e até a chegada do asfalto. "Quem gosta dele é esse povinho que o segue, que gosta de ser manipulado", aponta Nilva Maria Almeida, 47 anos, neta de Severiano Neves, um dos fundadores da cidade, e mulher de José Antônio de Almeida, o Baú, inimigo do bispo e ex-prefeito da cidade. "É um atraso", continua Maria de Jesus Souza Lira, 59 anos, há 41 na cidade. "Eles, da prelazia, não gostam de desenvolvimento. Eles gostam que todo mundo viva na miséria".
A Defesa
Casaldáliga sorri diante das acusações. Foi ele mesmo quem pediu à equipe do Correio: "Saia pela cidade, converse com os amigos, mas principalmente com os inimigos". Não, o bispo não é contra a construção da rodovia. Mas confirma suas restrições. "Somos contra o progresso quando ele é a favor do latifúndio", confirma. A hidrovia, por exemplo, foi apontada por técnicos como perigosa até economicamente por causa da variação de seu leito durante o ano. "Sou contra este agronegócio monocultor, que só foi feito para exportação", argumenta.
Quase irônico, José Pontim, 63 anos, diz que a prelazia trouxe o desenvolvimento em muitos pontos. "Para controlar as nossas ações, veio o telefone e a Radiobras para cá. São Félix tornou-se conhecida no mundo todo por causa da ação da Igreja", diz o ex-prefeito da cidade, amigo de dom Pedro há 32 anos, quando deixou um emprego na editoria Vozes para trabalhar com o bispo.
A prelazia de São Félix, distante 1,2 mil Km de Cuiabá, hoje possui 15 municípios. Alguns deles, como Porto Alegre do Norte, Santa Terezinha e Serra Nova, eram para ser sedes de fazendas. Mas dom Pedro e seus companheiros brigaram muito para que os posseiros que viviam naquele lugar tivessem direito a terras para cultivar. "Muitos desses lugares só se firmaram como cidades em cima da luta da terra", diz Pontim.
Segundo contam, nos anos 10 e boa parte dos 80, dom Pedro não parava de trabalhar. "No pico do conflito com os índios xavantes, ele não dormia e não deixava a gente dormir", conta Maria José Souza Mendes, 50 anos, que trabalha como advogada na área de direitos humanos da prelazia. A favor do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Maria José sabe que a situação poderia ser ainda mais complexa se a entidade estivesse presente no local. "0 MST não veio para cá por respeito à situação complicada que existe por aqui".
A paixão pela causa dos pobres, dos índios, dos posseiros e dos peões faz com que outros também se apaixonem. Caso de Paulo Coutinho Soares, 33 anos, 29 deles ao lado de dom Pedro.
É desses "soldados" do bispo que se ouve as declarações mais fortes a favor da prelazia – que hoje em dia é sinônimo de pobreza para os inimigos. Ainda mais quando o assunto é a saída de Casaldáliga. "Aí tem que fechar a prelazia e fazer outra diocese para o novo bispo. É o fim de uma história de 36 anos", considera Paulinho, apesar dos inúmeros pedidos do bispo para que o povo não faça nenhuma manifestação contra sua saída forçada e antecipada.
A vida
Opiniões polêmicas sempre estiveram ao lado de dom Pedro. Desde que este catalão, nascido na pequena Balsareny, na Espanha, em 1929, veio para o Brasil, em 1968. Viu todo aquele sofrimento de posseiros e peões - que chegavam do Norte e do Nordeste atrás de um pedaço de terra e dos índios por causa da ganância dos latifundiários. Em outubro de 1970, enviou a várias autoridades e à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) o relatório Exploração e Feudalismo no Norte do Mato Grosso, denunciando maus-tratos aos que não tinham poder.
Por todo seu trabalho, foi uma surpresa quando recebeu a indicação para ser bispo, em 1971. Fugiu de todos os modos, mas os pedidos do amigo Tomás Balduíno, hoje arcebispo emérito de Goiás, e do próprio povo, o demoveram da idéia de recusar a nomeação. Mas fez questão de fazer a cerimônia às margens do Araguaia, com um chapéu de palha no lugar da mitra e um remo ao invés do báculo. Um anel de tucum - espécie de côco que se tornou um símbolo daqueles que fazem uma opção preferencial pelos pobres - substituiu a aliança dada pelo papa.
Até hoje a simplicidade toma conta da vida do bispo. Gosta de ser chamado de Pedro e prefere ser lembrado por ter ajudado a criar a Comissão Pastoral da Terra (CPT) e o Conselho Indigenista Missionário (Cimi).
Sua casa é igual a dos moradores mais simples de São Félix, a não ser pelos sete quartos que dispõe - todos impecavelmente limpos por dona Deolice Dias de Farias, 50 anos e 12 deles dedicados ao bispo. Os cômodos são para os visitantes e ajudantes de Pedro - os mais conhecidos são a irmã Irene e o padre Paulo. Para o bispo, um quarto de 3x3 metros.
Na casa chamam atenção os objetos dispostos. Tudo ali tem um significado. Desde o quadro colorido de Che Guevara, passando pela imagem de Nossa Senhora do Araguaia feita por índios e pelas relíquias do bispo. Dentro de uma caixinha, na capelinha especial erguida atrás da casa, Pedro guarda um pedaço da roupa que dom Oscar Romero usava quando foi assassinado durante uma missa, em El Salvador. E também um pedaço do crânio do padre jesuíta Ignacio Ellacuría, também morto na capital salvadorenha, e o projétil que o matou.
Há ainda o par de chinelas havaianas que não saem dos pés de Pedro. 0 uso do calçado, copiado dos pobres, é associado de forma tão forte ao bispo que por um tempo, quando se chegava no comércio para comprá-lo, era chamado de "prelazia' e não de havaiana.
A morte
Hipertensão, mal de Parkinson, problemas nos ouvidos que o fazem usar dois aparelhos auditivos, cataratas, oito malárias. E o pulso ainda pulsa. Claro, com todo cuidado. Se antes Casaldáliga passava dias andando no meio do povo, hoje responde cartas e e-mails, lê muito e assiste a filmes. "Vi cinco vezes um filme iraniano chamado A Cor do Paraíso. Parece a história de um pequeno Jó muçulmano", sorri.
Ele sabe que a morte o ronda. Mas sempre foi assim. "Fiz um poeminha que dizia: `Nascer e morrer é fácil. Difícil é viver. Ninguém gosta da morte, mas acho que me habituei a conviver com ela".
Dom Pedro já foi ameaçado de morte várias vezes. Em uma delas, a tentativa quase se concretizou: foi salvo pelo modo como se vestia. No início de outubro de 1976, Pedro e o padre jesuíta João Bosco Penido Bumier estavam de passagem em Ribeirão Bonito, 300km ao sul de São Félix. Cinco dias antes, haviam matado um policial militar. Seus companheiros usavam a força para tentar arrancar alguma informação sobre quem tinha assassinado o PM. Pegaram a irmã e a nora de um lavrador, suspeito do crime.
Na porta da delegacia, ouviram os gritos das mulheres. No mesmo momento, alguns policiais cercaram dom Pedro e João Bosco. Eram soldados de fora da região e não os conheciam. Um deles, de nome Ezy Ramalho, partiu para cima deles e bateu no bispo. Depois, acertou um tiro em João Bosco.
A bala era para o bispo, mas o modo mais elegante de se vestir e o fato de ser mais velho fizeram com que o policial pensasse que João fosse a autoridade eclesial. "Era para eu ser assassinado. No fundo, estavam assassinando a Igreja da Libertação. Mas a morte de um mártir é sempre fecunda. Não tem nada mais subversivo que o cadáver de um mártir", discursa Casaldáliga.
Desafios
Dom Pedro Casaldáliga chegou em São Félix do Araguaia quando ele ainda não era dom, a cidade se chamava Vila Nova e tinha apenas 600 habitantes - hoje são mais de dez mil. O bispo aposentado tem noção de que tudo mudou. "Naquela época, tudo era público. A distração era a rua", lembra. O Brasil não vive mais uma ditadura militar e as preocupações são outras. "Estamos nessa espécie de democracia. Estávamos fazendo a Agenda Latino-Americana de 2006 e apontávamos para 2007 que o tema poderia ser: Queremos outra democracia. Porque no mundo praticamente a democracia não existe".
Perto de Casaldáliga, os conflitos de terra continuam a existir. "0 Incra ainda não fez demarcações, fica protelando. A saída de Pedro e a vinda de um bispo de linha conservadora seriam um desastre", analisa Pontim. Com 15 municípios e muito mais gente, o conflito por terra é mais complexo. Na opinião da advogada Maria José, antigamente era mais fácil mobilizar a sociedade contra o latifúndio improdutivo. "Hoje é complicado mobilizar a sociedade contra o agronegócio porque a população ingênua defende a vinda dele. E aí a prelazia é colocada como contra o progresso."
Há também um desafio imediato: resolver o problema da saída de Casaldáliga e a chegada do novo bispo. 0 antigo diz que ainda espera uma resposta do Vaticano sobre sua permanência e a nova escolha. E, por isso, vai ficando. Também quer ouvir a assembléia da prelazia para saber o que o povo pensa. Apesar de toda a polêmica em torno de si, se for depender dos mais pobres, ele fica. Opinião clara de Jesus Paes de Oliveira, 57 anos. Veio de Paraíso do Norte (TO), em 1986, para ser vigilante e hoje vende geladinho, frutas e o que mais aparecer em suas mãos. Ele diz que vai sentir "uma falta danada" de dom Pedro. E explica por que: "Ele é igual aquele" - e aponta para o céu. "E alegre, conversa com todos. É boa gente demais".
As novas tendências da religião
No meio dos pobres isso é até compreensível. Não podem contar com ninguém, só com Deus. Mas tem muita gente na classe média vivendo uma religião de refúgio de responsabilidades sociais, políticas, que busca consolo espiritual imediato. Aqui, Karl Marx poderia dizer de novo que hoje a religião é ópio. Mas é uma droga mais sofisticada. É um ecstasy.
Imposições da igreja
Eu posso dar uma opinião ética, de fé. Posso dizer que sou contra o aborto porque dou valor infinito a qualquer vida humana. Mas não posso impor legislações.
Participação das mulheres
A Igreja, ao longo dos séculos, tem sido machista. A mulher foi praticamente proibida de falar na Igreja. Eu defendo a participação plena da mulher na Igreja, também nos ministérios, nas decisões. Não quero ser imediatista, sei que isso não se faz de uma hora para outra.
Novo concílio
Há todo um movimento no mundo, e estou nele, que defende um processo para um novo concílio. Estamos criando o clima. É necessário um novo concílio que seja um concílio que escute, que seja ecumênico, que atinja as grandes perguntas que a humanidade faz. Em continuidade com o Vaticano II, mas ampliando, atualizando.
Teologia da libertação
Seria temeridade e ignorância dizer que a Teologia da Libertação não existe mais. 0 que acontece é que a Teologia da Libertação e as comunidade as eclesiais de base não estão vivendo um momento publicitário. Hoje são mais publicitários o carismático e as religiões exóticas.
MST
O MST é o grande serviço social de conscientização, de reforma agrária que se tem feito a este país e à América Latina. Tem seus erros, como todos temos, mas merece o máximo respeito e carinho. Eu os chamo de gente da enxada e da utopia.

CB, 23/01/2005, p. 16-17

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