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Um jeito diferente de fazer negócios: A reinvenção da Natura

Exame, Capa, p. 31-40
12 de Mar de 2003

Um jeito diferente de fazer negócios: A reinvenção da Natura

Cláudia Vassallo Cláudia Vassallo, de EXAME Siga-me

Veja álbum de fotos especiais na Amazônia e no RS

É preciso dar a volta ao mundo para chegar a Iratapuru. Encravada na floresta amazônica, na margem direita do rio Jari, a reserva de mais de 800 000 hectares fica ao sul do estado do Amapá, não muito longe da última fronteira norte do Brasil. Seus 152 moradores -- boa parte crianças -- vivem ilhados, cercados pela maior reserva de biodiversidade do mundo. Não há energia elétrica. Três aparelhos de TV e os dois freezers em uso funcionam algumas horas por dia, graças a um gerador precário. Não há linhas telefônicas. A comunicação com o restante do mundo é feita através do aparelho de rádio, instalado no centro social da reserva -- um barracão de madeira e telhas de amianto onde a comunidade se reúne para rezar, cantar, negociar e assistir à novela das 8 ou a algum jogo de futebol. Não há ventiladores à vista -- e no meio da manhã, com o sol a pino, a sensação térmica passa dos 40 graus e os borrachudos atacam impiedosamente. O barco é a única forma de chegar à Vila da Beira, povoado de pouco mais de 30 casas cobertas de sapé, o centro da reserva. Na escola instalada na reserva, as 75 crianças de Vila da Beira estudam até o último ano do ensino fundamental. Os professores moram todos juntos numa casa ao lado do centro comunitário. Não há postos de saúde, médicos nem enfermeiras. Apenas as velhas parteiras de plantão.

Há gerações, a sobrevivência da comunidade local depende da colheita da castanha-do-pará. Entre os meses de fevereiro e junho, homens, mulheres e seus filhos sobem o rio Iratapuru -- em viagens que duram até cinco dias -- para chegar aos castanhais. Os extrativistas mais experientes -- como Sebastião Freitas Marques, o Sabá, Francisco Nicário e Deobanor Melo Viana, o Arraia -- conhecem cada palmo da floresta, cada planta e como elas são usadas no dia-a-dia. E, de alguma forma, sabem que há um tesouro verde a ser explorado, algo que pode melhorar a vida de todos. "Os índios nos ensinaram que quem usa óleo de uxi não fica com os cabelos brancos", diz Sabá, em meio a uma reunião de líderes locais. "E a semente de marapuama é o Viagra brasileiro. Cada quilo vale 300 reais. A natureza deu tudo isso de presente pra gente."

À sua frente, do outro lado da mesa de madeira, está a agrônoma francesa Hélène Marcelle Roberte Menu, de 37 anos, ex-consultora da Organização para Alimentação e Agricultura das Nações Unidas (FAO). Durante cinco anos, Hélène trabalhou em povoados e assentamentos em Madagáscar, na Tunísia e no Nordeste brasileiro. Em abril de 2001, foi convidada para trabalhar como pesquisadora da Natura. É um emprego peculiar. Uma de suas missões é peregrinar pelo país em busca de comunidades que possam fornecer à empresa ativos como a castanha-do-pará e a copaíba colhida pelos extrativistas de Iratapuru. Outra é garantir que essas matérias-primas sejam conseguidas de maneira sustentável -- tanto ambiental quanto socialmente -- e que a presença da Natura não devaste essas comunidades com a cultura e o modo de vida das chamadas populações tradicionais, mas as ajude a ganhar algum tipo de competitividade.

Hélène, Arraia, Sabá, a reserva de Iratapuru e a riqueza que dela possa se extrair são facetas de uma revolução estratégica que, há três anos, vem mudando o jeito de fazer negócio da maior empresa brasileira de cosméticos, com um volume de negócios de 1,9 bilhão de reais em 2002. O caminho escolhido por seus três controladores -- os empresários paulistas Antonio Luiz Seabra, Guilherme Peirão Leal e Pedro Passos -- subverte parte dos princípios básicos da gestão, aumenta infinitamente a complexidade da operação, embute riscos inexistentes num modelo convencional e não tem resultados previsíveis ou garantidos. Mistura, no mesmo cadinho, elementos como a criação de uma plataforma tecnológica, a necessidade de internacionalização, mudanças na operação do dia-a-dia e no relacionamento com fornecedores, complexas redes de parcerias com comunidades, ONGs, governos e cientistas, valores de responsabilidade social e uma dose de utopia corporativa. E também abre novas possibilidades e oportunidades. Por tudo isso, seu exercício de reinvenção merece ser observado de perto.

O projeto Manhattan

A marca da mudança na Natura recebeu o nome de Ekos -- do grego oikos (nossa casa), do tupi-guarani ekó (vida) e do latim echo (tudo o que tem ressonância). Durante 30 anos, a empresa viveu um ciclo de notável expansão. Por duas décadas, a média de crescimento anual da Natura manteve-se na faixa dos 30%. Um exército de mais de 200 000 revendedoras distribuía seus produtos em quase todos os pontos do país e seu logotipo carregava uma imagem de qualidade e inovação. No final dos anos 90, porém, ficou claro para seus executivos que esse ciclo estava se esgotando. Em 1999, as vendas atingiram 392,7 milhões de dólares, uma queda de 8,5% em relação ao período anterior. E o lucro iniciaria uma curva decrescente que só se inverteria dois anos depois (veja quadro na pág. 36). As tentativas de internacionalização da marca também haviam dado em quase nada. (Atualmente, as vendas em países sul-americanos como Argentina, Chile, Peru e Bolívia representam apenas 3% dos negócios.)

Esse quadro somou-se à necessidade cada vez maior de inovação por parte da indústria cosmética. Para satisfazer a vaidade e conviver com a volatilidade de suas consumidoras, a Avon, maior empresa mundial do setor, investe 100 milhões de dólares ao ano em desenvolvimento tecnológico. A cada 12 meses, para continuar respirando, a Natura precisa colocar no mercado pelo menos 50 novos produtos. As perguntas, portanto, para Seabra, Leal e Passos eram: como garantir o crescimento e a sobrevivência no longo prazo? Como dar início a um ciclo de expansão? "Queríamos e precisávamos inovar nos produtos e na abordagem do consumidor", diz Leal. Aos 52 anos, ele é a mente estratégica da Natura. "Olhamos para a nossa vocação original e enxergamos nela o uso sustentável da biodiversidade brasileira", diz. "Poucas empresas teriam tanta legitimidade para usá-la quanto a Natura."

No início de 1999, a Natura despachou um grupo de funcionários para Nova York a fim de formular as premissas de uma nova linha de produtos mais barata e que pudesse ser usada diariamente pelos consumidores. "Estávamos no Central Park, conversando sobre o projeto, quando ele começou a tomar forma", diz Elizabeth Pereira, líder da unidade de negócios Ekos. "Antes de voltarmos ao Brasil, ficou claro que o que estávamos propondo era alguma coisa sem precedentes, uma operação pioneira." O projeto Manhattan (nome original do Ekos e homônimo do programa americano de fabricação da bomba atômica, nos anos 40) definia três pilares para a nova linha: uso de ativos brasileiros, sustentabilidade ambiental e social da operação e aproveitamento das tradições populares. Eles teriam de perpassar todo o processo -- da compra de matérias-primas em comunidades, que iriam dos índios do Xingu aos ribeirinhos da Amazônia, até o tipo de publicidade utilizada.

A estratégia teria início com o lançamento de uma linha de produtos, abriria as portas dos grandes mercados da Europa e dos Estados Unidos e, com o tempo, seria agregada a toda a produção da Natura. Meses depois, a empresa deu o primeiro grande passo nessa direção. Comprou, por cerca de 20 milhões de reais, a Flora Medicinal, criada em 1912 no Rio de Janeiro pelo médico e pesquisador José Ribeiro Monteiro da Silva. Graças às pesquisas pioneiras feitas por Monteiro da Silva com mateiros, donas-de-casa e caboclos embrenhados nas matas, a Flora Medicinal detém um acervo de pesquisas com mais de 280 plantas brasileiras e uma linha de 300 produtos já desenvolvidos. Com a aquisição, a Natura ganhava uma vantagem de pelo menos 87 anos sobre seus rivais. "Os concorrentes até poderiam copiar o produto -- e alguns já estão tentando fazer isso", diz Elizabeth. "Mas dificilmente conseguiriam reproduzir o processo de execução. Nós teríamos histórias para contar ao mercado. Eles, não."

Tal processo depende da costura de uma rede de relacionamentos empresariais que vai além do triângulo fornecedor-empresa-cliente e que por isso depende de novas competências gerenciais. Há dois anos, a Natura passou a pesquisar quais ingredientes da botânica nacional poderiam compor a linha Ekos, em quais comunidades poderiam ser encontrados e de que forma estavam sendo tirados da natureza. Três dos seis biomas brasileiros foram escolhidos para ser trabalhados de forma prioritária: Amazônia, mata Atlântica e Cerrado. Nessa garimpagem, a empresa chegou a um antigo assentamento de sem-terras produtores de cupuaçu em Nova Califórnia, no Acre. A colhedores de buriti no interior do Piauí. A extrativistas de erva-mate em Santa Catarina. Tudo a milhares de quilômetros de sua sede branca e perfumada, em Cajamar, na Grande São Paulo.

A maioria dos líderes dessas comunidades ignora o que seja um fluxo de caixa ou os conceitos de agregação de valor e de formação de preços. Há interesses imediatos -- conseguir um preço melhor pela matéria-prima, garantir maiores volumes de vendas, convencer seus compradores a doar recursos para a construção de uma nova escola ou de um posto de saúde. Em outubro do ano passado, durante uma de suas visitas a Iratapuru, a agrônoma Hélène ouviu as queixas do líder dos castanheiros em relação ao preço pago pela gasolina utilizada nos barcos que os levam até as reservas. Isso acabava encarecendo o produto vendido. A Natura, a princípio, poderia aceitar arcar com o custo. Mas Hélène preferiu sugerir aos castanheiros que optassem por um motor a diesel e iniciar negociações com o governo local para a instalação de trilhos por onde a produção pudesse ser escoada. São conceitos básicos da organização empresarial. E eles precisariam ser ensinados a cada uma das comunidades parceiras como forma de garantir a sustentabilidade, reduzir custos e aumentar a produtividade. Tais laços também seriam uma maneira de erguer uma barreira invisível à entrada de concorrentes. "É uma forma de conseguir exclusividade de algo que, por definição, não é exclusivo: os recursos oferecidos pela natureza", diz Renata Bochi, diretora da área de bens de consumo e varejo do Boston Consulting Group (BCG).

Para a Natura, estabelecer sozinha essas relações é difícil, arriscado, improdutivo e, acima de tudo, vai muito além dos propósitos de seu negócio e de suas competências. "Não vendemos consciência social e ambiental", diz Leal. "Vendemos cosméticos, que devem ser desejados e aceitos pelo mercado." Uma grande rede passou então a ser montada. Organizações não governamentais, como a Imaflora, representante no Brasil do Forest Stewardship Council, entidade internacional que promove e certifica o manejo sustentável de florestas, e o Instituto Socioambiental, dedicado ao trabalho com comunidades tradicionais, tornaram-se parceiras. Nos próximos dois anos, todos os grupos que fornecem ativos da biodiversidade para a Natura terão de contar com a certificação da Imaflora -- selo que funciona como uma espécie de passaporte verde para o mercado internacional e que ajuda a proteger a companhia das críticas dos ativistas verdes.

Cerca de dez universidades e centros de pesquisa espalhados pelo país estão atualmente envolvidos em pesquisas de plantas que, um dia, poderão compor a fórmula de cremes, xampus e sabonetes da empresa. Um projeto, batizado de Campus, vai incentivar a produção acadêmica voltada para o uso da biodiversidade brasileira na cosmética. Esses cientistas também ajudarão a capacitar as comunidades fornecedoras, ensinando como promover o manejo sustentável e, ao mesmo tempo, como garantir qualidade, custos razoáveis e algum volume de produção. "Até dois anos atrás, essas eram questões que estavam muito distante da nossa realidade", diz Eduardo Luppi, diretor de pesquisa e desenvolvimento da Natura. "Estamos entrando num terreno estranho, e isso é complicado." A Ekos começou utilizando ingredientes da biodiversidade de uso já conhecido na produção de cosméticos. A partir de agora, para sustentar a linha no médio e longo prazos, será preciso descobrir, pesquisar e desenvolver ativos completamente novos. Se a rede de conhecimentos gerados nas comunidades e nas universidades não funcionar, será como procurar agulhas em palheiros. Na área de inovação da empresa há hoje 43 projetos na linha da biodiversidade. Metade do investimento de 62,3 milhões de reais feito no ano passado em pesquisa e desenvolvimento foi para essa área. De cada dez ativos presentes nos 15 principais produtos de tratamento de pele vendidos no mundo, cinco são à base de plantas. É natural, portanto, que as maiores fabricantes mundiais de cosméticos estejam de olho no Brasil. É natural, também, que a Natura queira aproveitar a vantagem competitiva de ser uma empresa brasileira. "O projeto Ekos transformou-se numa enorme avenida para o futuro", diz Luppi.

Valores, metas e barreiras

Fornecedores de óleos essenciais, como as multinacionais Cognis e Croda, foram envolvidos. Eles só venderiam à Natura se certas garantias fossem dadas. A extração dos ativos não poderia comprometer o equilíbrio ambiental. Não poderia haver uso de trabalho infantil (a menos que ele fosse parte da cultura local), e as tradições e o estilo de vida deveriam ser preservados. O preço justo -- um conceito ainda nebuloso e estranho -- deveria ser praticado. Os fornecedores também teriam de se comprometer a ajudar as comunidades a agregar valor a seus produtos. Tecnologias básicas de extração de óleos, por exemplo, deveriam ser repassadas.

Claro que esse comportamento tem um preço. O primeiro lote de buriti comprado para compor a linha Ekos chegou fora da especificação. A Natura e o fornecedor arcaram com os prejuízos. "Diante das dificuldades, alguns fornecedores ficaram longe do projeto", diz Elizabeth. "No início, não tínhamos noção da complexidade do processo e de como seria difícil estruturar nossa cadeia de suprimentos." Atualmente, a Cognis, empresa alemã controlada pelo banco Goldman Sachs e pelo fundo de investimentos Schroder Ventures Life Sciences (SVLS), trabalha com quatro comunidades, nos estados de Rondônia, Amapá, Amazonas e Acre, e seu mercado para produtos desse tipo está basicamente no Brasil. Mas a grande esperança está nos compradores internacionais, sobretudo nos europeus e nos asiáticos. "Para isso precisamos de escala de produção", diz a bióloga gaúcha Janice Casara, responsável pelo projeto Amazoncarechemicals, da Cognis. "E isso é algo que demanda muito tempo, cuidado e energia."

Por não serem considerados commodities e devido à escala de produção reduzida, produtos sustentáveis são invariavelmente mais caros que os demais. Tome-se o exemplo do óleo de babaçu, usado na produção de sabonetes. Um litro do óleo produzido de acordo com as melhores práticas de manejo pode chegar a custar 50 vezes mais que o produto convencional. Reduzir essa diferença exige disposição, dinheiro e -- sobretudo -- tempo. "Esse é o nosso maior custo", afirma Pedro Passos, o sócio res ponsável por executar as estratégias da Natura. O conceito de just-in-time passou a valer pouco. Todo mês, saem da fábrica da Natura milhares de embalagens de produtos Ekos. As castanhas-do-pará, porém, só podem ser colhidas durante quatro meses do ano. A safra de buriti acontece entre outubro e dezembro. "Não podemos pedir para que uma comunidade faça hora extra", diz Passos.

As matérias-primas, portanto, têm de ser estocadas. Como planejar a produção? Há muito insumo disponível, a ponto de uma empresa como a Natura conseguir, se assim quiser, parte da matéria-prima no mercado Ver-o-Peso, em Belém. Mas ainda há escassez de produtos considerados sustentáveis, o que eventualmente provoca quebras na produção. "O projeto Ekos vai bem", diz o representante de uma organização parceira da Natura. "Mas, sempre que surgem problemas de preço ou de fornecimento, alguns descontentes aparecem. A vida ficou mais difícil para o pessoal do dia-a-dia." Trata-se de focos de resistência previsíveis. Na Natura, como em qualquer grande empresa, existem metas -- e recompensas quando elas são atingidas. Lucro, Ebitda, geração de caixa, custos, orçamento felizmente continuam a fazer parte do vocabulário da companhia. Há também o restante dos negócios, que gera 90% do faturamento da Natura, a maior fatia de seus lucros e garante o emprego de seus 2 700 funcionários. A Natura é, sim, uma empresa de cultura peculiar, na qual executivos e operários acreditam que podem ganhar dinheiro e ao mesmo tempo mudar o mundo. Mas é muito provável que, sem a interferência direta de seus líderes, o projeto Ekos jamais tivesse tomado a dimensão que tomou. Seabra, Passos e Leal participaram de todas as etapas -- das primeiras discussões filosóficas às negociações com as comunidades. "É preciso ter ousadia para tentar coisas novas", diz Leal. "Há riscos? Sim. Mas achamos que há uma recompensa no fim do arco-íris."

Armadilhas na floresta

Os riscos vão além das paredes da fábrica de Cajamar. Ao optar pelo uso da biodiversidade e pelo relacionamento com comunidades tradicionais, a Natura pisou num novo e pantanoso terreno para o mundo corporativo. Na Amazônia, maior reserva de biodiversidade do planeta, com um patrimônio biológico estimado em 2 trilhões de dólares, falta infra-estrutura de estradas, aeroportos e comunicação e sobram interesses. Nela está a maior concentração de ONGs ambientais do mundo. Para algumas dessas ONGs, a presença de grandes empresas é automaticamente associada à exploração irresponsável. Por outro lado, para as comunidades carentes, a chegada de compradores poderosos pode soar como a redenção das mazelas locais. Para as empresas, a fronteira entre o heroísmo e a vilania pode ser ultrapassada ao menor descuido. "O que mais nos assusta é o tamanho da responsabilidade que estamos assumindo", diz Philippe Pommez, vice-presidente encarregado da expansão internacional da Natura.

Tropeçar numa dessas armadilhas pode gerar de perdas financeiras a fraturas expostas na imagem da marca. Isso aconteceu com a The Body Shop, empresa de cosméticos fundada pela inglesa Anita Roddick e dona do modelo de negócios mais assemelhado ao que a Natura vem fazendo atualmente. Dublê de ativista e empresária, Anita peregrina desde os anos 80 pelo mundo em busca de matéria-prima e de histórias que levantem a bandeira de causas sociais e empinem as vendas da Body Shop. A inglesa ecológica esteve com mulheres produtoras de manteiga de karité em Gana, com artesãos de artigos de juta em Bangladesh e com os índios caiapós da região de Altamira, no Pará. Ela ficou encantada com os caiapós, liderados na época pelo cacique Paulinho Paiakan. Dormiu em rede, tomou banho de rio, aceitou uma poção preparada por um pajé que a faria ter um filho da floresta. (A seu pedido, a magia foi desfeita a tempo.) Finalmente, Anita propôs a eles a compra de óleo de castanha, que seria usado em condicionadores para cabelos Body Shop. Tudo correu muito bem até que, segundo Anita, os caiapós passaram a fazer exigências financeiras cada vez maiores. "Como nós comprávamos seu óleo, 300 pessoas em duas das dez aldeias podiam estar empregadas -- mas os caiapós pareciam pensar que poderíamos dar emprego para todos e, como resultado, criou-se um clima de antagonismo entre as duas aldeias", relata Anita em seu livro Meu Jeito de Fazer Negócios. "Quando eclodiu a luta -- o que é tradicional entre eles --, muitas pessoas nos acusaram de culpados." A Body Shop deixou de comprar castanhas dos caiapós e teve sua imagem chamuscada, mas continua a apostar na linha do ativismo social. Com lucro. Com uma rede de 190 lojas em 50 países e 5 000 empregados diretos, a Body Shop faturou 1,1 bilhão de dólares no ano passado.

Um caso semelhante aconteceu mais recentemente com o pesquisador Elisaldo Carlini, diretor do Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas da Universidade Federal de São Paulo. Há um ano, Carlini e equipe firmaram um acordo com a Vyty-Cati, associação que representa duas das 17 aldeias da reserva indígena dos craós, no norte do estado de Tocantins. O objetivo era identificar e pesquisar plantas utilizadas pelos pajés com atuação no sistema nervoso central. Se, eventualmente, alguma patente fosse depositada, os índios seriam remunerados com a distribuição de royalties. O problema surgiu quando outra associação dos craós decidiu desautorizar a pesquisa, cobrar uma indenização de 5 milhões de reais por danos morais e exigir o pagamento de uma taxa de bioprospecção de 20 milhões. O projeto foi temporariamente abortado.

Há pelo menos dois anos, a Natura vem negociando o fornecimento de pequi por parte das tribos indígenas do parque do Xingu, no norte do Mato Grosso. São, ao todo, 16 etnias, entre elas os matipus, os tapaiúnas, os cuicuros e os auetis, cada uma com seus costumes, tradições e interesses. Como parte do ritual de aproximação, em setembro do ano passado, Leal, Pommez e outros altos executivos da Natura participaram da festa do Quarup, dormiram em malocas e conversaram com representantes das aldeias. Dois meses depois, 13 líderes indígenas visitaram a fábrica de Cajamar. Receberam a proposta comercial e voltaram para suas tribos, onde, prometeram, pensariam no assunto. "Foi uma experiência fantástica", diz Leal. "Eles trouxeram até um videomaker para registrar as reuniões."

Ter os índios do Xingu como parceiros resultaria num poderoso apelo de marketing, sobretudo nos mercados internacionais. Mas há ainda vários pontos a ser esclarecidos. Como o dinheiro da venda do pequi será distribuído? Como e com que valores remunerar a imagem dos índios que participarão das campanhas publicitárias da linha Ekos? A Natura tem menos de um ano para responder a essas perguntas. Os produtos à base do pequi extraído no Xingu fazem parte do plano de lançamentos da companhia em 2004. O que ninguém sabe, por enquanto, é quanto vale esse conhecimento e como remunerá-lo. Não há ainda um contrato-padrão entre a Natura e as comunidades, e várias formas de remuneração estão sendo estudadas -- vão do pagamento puro e simples ao repasse para os fornecedores de um percentual do faturamento conseguido com o produto. "No mundo todo, há muita discussão nesse campo e quase nenhum consenso", diz a antropóloga Manuela Carneiro da Cunha, da Universidade de Chicago. "A falta de parâmetros acaba aumentando as expectativas das comunidades."

Tudo o que a Natura não quer e não pode fazer é criar uma relação de dependência com seus fornecedores da floresta, a ponto de eles não conseguirem sobreviver sem ela. Ao chegar a uma comunidade, um dos primeiros atos da agrônoma Hélène e dos representantes das empresas beneficiadoras é tentar explicar aos moradores que um dia, inevitavelmente, a empresa deixará de comprar suas matérias-primas. O ciclo de vida de um cosmético é de, no máximo, cinco anos. Alguns produtos são retirados do mercado meses após o lançamento. Nesse ponto, a Natura continua a seguir uma lei intransponível: só existirá oferta se existir demanda. Em 2002, dois itens foram descontinuados. Este ano, outros 14 deixarão de fazer parte dos catálogos usados pelas 300 000 revendedoras da empresa.

De Iratapuru para Paris

Na pequena cidade gaúcha de Putinga, no Vale do Taquari, a família do agricultor Eduardo Guadagnin extrai e processa erva-mate. Sua propriedade, de 69 hectares, fica em meio a um pedaço quase intocado de mata Atlântica. Guadagnin, de 48 anos, deverá ser o primeiro produtor rural certificado pela Imaflora. Sua erva-mate é nativa. A despeito de uma produção reduzida, a poda é feita de forma a garantir que as árvores sobrevivam por muitos anos. Não há uso de agrotóxicos ou fertilizantes artificiais, todos os funcionários são registrados, os impostos são recolhidos e as duas filhas de Guadagnin freqüentam a escola local. Há cerca de dois meses, o agricultor enviou amostras de sua erva-mate à Natura. O negócio estaria praticamente certo, não fosse a velha lei do mercado. Os produtos da linha Ekos feitos à base de mate vendem pouco e estão arriscados a desaparecer. "Orientamos as comunidades a não depender de uma matéria-prima ou de uma única empresa", diz Pommez. "Queremos que elas estejam preparadas para vender para outras companhias no dia em que a deixarmos."

O inverso também pode acontecer. Como garantir o fornecimento caso um xampu ou um perfume tenham sucesso inesperado? Hoje, isso não é propriamente um problema. A Natura compra, por exemplo, apenas 5% do volume de castanhas-do-pará oferecido na reserva do Iratapuru. O mesmo acontece com o buriti, o cupuaçu, o cumaru e a andiroba. Mas, se os planos da empresa prosperarem, rapidamente a necessidade de ativos da biodiversidade e os desafios aumentarão. Segundo dados da consultoria Booz Allen, a demanda mundial por extratos de plantas dobrou, movimentando 2 bilhões de dólares em 2002. Colocada no mercado em agosto de 2000, a linha Ekos é hoje uma das mais bem-sucedidas da Natura. No ano passado, suas vendas cresceram mais de 20% e representaram 10% do faturamento total da companhia. Em pouco mais de dois anos, esse se transformou num negócio de cerca de 200 milhões de reais anuais. Graças em parte ao sucesso da linha, o Ebitda da Natura passou de 130, 2 milhões de reais em 2001 para 210,3 milhões no ano passado.

Nos próximos meses, mais 23 novos produtos deverão ser colocados no mercado nacional e a Ekos finalmente deverá fazer sua estréria na Europa e nos Estados Unidos, mercados até agora intocados pela Natura. É provável que essa seja a marca usada para alicerçar toda a estratégia de internacionalização. Há cerca de três meses, as primeiras pesquisas e testes com consumidoras da França e da Inglaterra foram realizados. Deles saíram informações preciosas. "As mulheres queriam saber por que não ficava claro na embalagem que os produtos vinham do Brasil", diz Pommez. "Disseram também que comprariam os cosméticos principalmente por sua eficiência e não apenas devido a um discurso ambiental ou social." Este mês, os testes serão iniciados nas cidades americanas de Boston e San Francisco. Recentemente, a Natura contratou o francês Jöel Pontes, ex-executivo da LOréal como consultor da área internacional. De seu escritório, em Paris, ele ajudará a empresa a formular sua estratégia de entrada no mercado internacional. Alguns pontos, porém, já ficaram estabelecidos. O sistema de vendas diretas, utilizado no Brasil e na América do Sul, será abandonado nos demais mercados. Muito provavelmente, os produtos Ekos serão vendidos em lojas de varejo, talvez com a participação de um sócio local. "Para qualquer empresa de bens de consumo que queira se internacionalizar, marca e canal de distribuição são determinantes", diz Renata Bochi, diretora do BCG.

Desta vez, a Natura não pode repetir os erros cometidos em sua tentativa de expansão latino-americana. A empresa optou por replicar o sistema de vendas diretas e acabou esbarrando numa saturação de mercado. As possíveis vendedoras já estavam ocupadas demais oferecendo produtos da Avon e das várias empresas locais. Os produtos também não apresentavam grandes diferenciais. Hoje, por exemplo, a Natura conta com pouco mais de 6 000 revendedoras na Argentina. Com a Ekos, seus executivos sabem que terão de ter espaço suficiente para vender mais que um produto. "O sucesso depende da venda do conceito", diz o diretor de uma grande consultoria internacional. "A Natura terá de aprender do zero a lidar com o varejo como canal de vendas." Na verdade, a Natura terá de começar do zero uma porção de coisas. Arcar com os riscos e aproveitar as oportunidades. Não há alternativa. Esse é o preço da inovação.

Colaborou Eduardo Ferraz

Exame, 12/03/2003, Capa, p. 31-40

http://exame.abril.com.br/revista-exame/edicoes/787/noticias/um-jeito-d…

Parceiros
Esclarecemos que o Instituto Socioambiental (ISA) é parceiro da Associação Terra Indígena do Xingu (Atix), e não da Natura (Um Jeito Diferente de Fazer Negócios. 12 de março). Temos assessorado as sociedades indígenas do Parque do Xingu em suas negociações com a Natura, buscando desenvolver um novo conceito de relação comercial entre empresas e sociedades indígenas.

André Villas-Bôas Coordenador do Programa Xingu do ISA
São Paulo, SP

Exame, 07/05/2003, p. 11

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