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Um inferno francês na Amazônia

O Globo, Ciência, p. 43
11 de Dez de 2010

Um inferno francês na Amazônia
Drama pouco conhecido de colonos europeus do século XIX mostra descaminhos do povoamento da região

Renato Grandelle

Solo fértil, lotes demarcados e prontos para o cultivo, abrigo aconchegante patrocinado pelo governo, fácil acesso a uma estrada de ferro que leva a Belém. No papel, a colônia paraense de Benevides era um paraíso. E assim ela foi divulgada em diversos jornais europeus, fazendo sonhar camponeses oprimidos com a mecanização de seu trabalho. O mercado rural minguava no Velho Mundo, e as cidades não conseguiam absorver as multidões de desocupados. A Amazônia parecia um bilhete premiado. Só parecia.
Os 800 europeus - a maioria franceses - que chegaram a Benevides em apenas cinco anos viram como a realidade era diferente da floreada pela propaganda paraense. A lista de apertos e privações estendia-se da viagem ao Brasil (em navios lentos, superlotados e insalubres) a uma série de disputas contra cearenses pelas melhores terras. A Comissão de Colonização, responsável por trazer os estrangeiros, construiu apenas um barracão para recebê-los, pequeno e sem privacidade.
E os tais lotes limpos eram nada menos que ficção: em vez de terrenos dispostos a receber sementes, o que havia era mata virgem e densa. Resgatada por uma tese de mestrado defendida na Universidade Federal Fluminense (UFF), a história de Benevides conta muito sobre o conturbado processo de ocupação da
Amazônia. - Foi uma experiência marcada pelo improviso e frustração - explica Francivaldo Nunes, professor de História da Universidade Federal do Pará e autor da dissertação "A semente da colonização: um estudo sobre a colônia agrícola Benevides". - Criou-se uma propaganda que alimentava toda uma expectativa no europeu de que ele teria espaço para cultivar, seria dono da terra, prosperaria economicamente.
No entanto, quando chegava à região, encontrava condições totalmente adversas, onde precisava enfrentar a floresta, construir casas e área de plantio, articular com a cidade para vender seu produto. Foi uma luta intensa pela sobrevivência. Os colonos que resistiram merecem ser lembrados.
Forte discurso anti-indígena
Benevides foi concebida amparada em um preconceito: a ideia de que a região só seria próspera e civilizada se recebesse imigrantes europeus. Os índios que habitavam as cercanias de Belém eram tidos como primitivos e individualistas, por usarem técnicas rudimentares na agricultura - herdadas pelos colonos locais - e produzirem apenas o suficiente para sua subsistência.
A partir da década de 1850, o Pará recebeu, por iniciativa de empresários, algumas famílias de portugueses e italianos. Seu bom desempenho impressionou os líderes políticos da província.
- Essa experiência inspirou o governo do Pará a criar, com investimentos do Império, a colônia de Benevides, em 1875 - conta Nunes.
Além de erguer a infraestrutura que receberia o colono, era fundamental, também, atraí-lo para o país. E arregimentar imigrantes era, sobretudo, uma tarefa política.
Os ouvidos europeus eram suscetíveis ao discurso de recomeçar a vida no Brasil. Mas, não importa a região que ambicionavam ocupar, todos tinham como primeiro destino a capital do Império. De lá, o governo despachava-os país afora. Recebia mais colonos quem tinha maior trânsito entre as autoridades federais. Era o caso de Francisco Maria de Sá e Benevides, herdeiro do governador-geral Mem de Sá e presidente da província do Pará. Benevides conseguiu levar para seus domínios até europeus que não queriam ir para o Norte brasileiro.
- Só a viagem do Rio ao Pará durava dois meses - ressalta Nunes. - Mas o sonho de Benevides em revolucionar a agricultura não durou muito. Quando viram as condições em que deveriam trabalhar, os europeus fizeram seu descontentamento atravessar fronteiras.
Houve uma época em que os imigrantes, ainda no barco a caminho do Brasil, diziam que sob hipótese alguma morariam no Pará.
Os colonos pioneiros, desavisados, suaram a camisa para tornar a região minimamente habitável. Dada a exuberância da Amazônia, o governo teria de gastar fortunas para contratar trabalhadores que pusessem abaixo aquelas árvores gigantescas. Esta missão, portanto, foi empurrada aos imigrantes. Como enxadas e terçadas, os instrumentos básicos para empreender a devastação, eram escassos, os franceses precisavam dividir-se em grupos para se revezarem no uso das ferramentas.
A floresta era uma inimiga praticamente imbatível. Para derrubar a vegetação, era preciso queimá-la. Só é possível atear fogo após um período de seca - uma situação nada familiar àquela região.
- Benevides era chuvosa. Tanto assim que, muitas vezes, o colono não conseguia começar o plantio em seis meses, tempo em que ele recebia um auxílio financeiro do governo - assinala Nunes. - As sementes também costumavam demorar muito para chegar. E os franceses, acostumados a outro clima, não sabiam que culturas agrícolas explorar naquela terra. Muitos desistiram diante das dificuldades e fugiaram com os recursos que lhes foram repassados pela província.
O contato com a mata fechada não fez bem a muitos trabalhadores. Houve vários registros de "febres do mau caráter". Os enfermos registravam sintomas como elevação da temperatura corporal, dores e calafrios.
Além disso, somente no primeiro ano de existência da Benevides, nove colonos foram atacados por onças.
Quando a natureza já tornava-se um perigo razoavelmente domado, em 1877, outro adversário dos franceses estabeleceu-se em Benevides. Cearenses, expulsos de seu estado por uma forte seca, triplicaram a população da colônia em dois anos. Houve tanto estranhamento entre os dois grupos que o governo da província criou uma subdelegacia de polícia para cuidar dos impasses.
A disputa por terra indispôs cearenses e franceses, mas a falta de dinheiro os uniu.
Quando o governo anunciou que não daria mais auxílio financeiro aos novos habitantes, viu 700 revoltosos, de todas as origens, prenderem o diretor da colônia e ameaçarem ocupar o palácio provincial em Belém.
Benevides permaneceu com o título de colônia até 1900, quando uma reestruturação de comarcas do Pará a fez ser promovida a município.
- Há, na cidade, um certo orgulho pela origem francesa. Houve uma regularização fundiária e os agricultores receberam títulos definitivos de terra. Antes esses documentos eram provisórios e precisavam ser renovados a cada cinco anos - destaca Nunes.
Para uma colonização marcada por tantos entraves, Benevides tem mesmo o que celebrar.

O Globo, 11/12/2010, Ciência, p. 43

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