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Um estopim de atritos

Veja, p.50
Autor: ALVARENGA, Tales
28 de Abr de 2004

Um estopim de atritos

Tales Alvarenga

"E se, por acaso, os narcotraficantes também perceberem uma oportunidade de ganhos com o uso dos inimputáveis povos indígenas?"
Em períodos diversos dos últimos cinco séculos, os índios foram massacrados nas Américas. Os conquistadores europeus não pareciam seguros a respeito da exata localização do índio na escala zoológica. Na dúvida, quando não podiam explorar, executavam. Nos Estados Unidos, chegou-se a distribuir roupas contaminadas por doenças transmissíveis a populações indígenas. No Brasil, estima-se que eles seriam 3 milhões no Descobrimento. Hoje, seus aglomerados somam 15% do total original. O índio brasileiro foi perseguido por bandeirantes, tornou-se caça de traficantes de escravos, morreu nas mãos de posseiros de terra e, quando aculturado, perdeu a identidade.
Houve um genocídio nas Américas e o Brasil é um dos países que procuraram proteger as tribos através de legislação especial. Não se faz isso como forma de compensar esses povos, porque o que aconteceu é irreparável. O objetivo é evitar que os índios continuem sofrendo atrocidades. Até aí, tudo muito bem. O que não se deve fazer é conferir aos índios uma posição de inimputabilidade que os coloque acima de qualquer lei, quando são eles os que cometem crimes. É exatamente isso que está acontecendo no órgão máximo do setor no governo, a Fundação Nacional do Índio (Funai). Em Rondônia, 100 cintas-largas acabam de assassinar 29 garimpeiros de diamante a tiros, flechadas e golpes de borduna, na reserva indígena Roosevelt. Muitos dos garimpeiros foram mortos amarrados. E o que diz o presidente da Funai, Mércio Pereira Gomes? Eis o que ele diz: "Não posso ficar condenando os índios por defenderem seu território. Os garimpeiros sabiam do risco".
Segundo o ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, os índios devem ser investigados e julgados "dentro de suas peculiaridades". Pode-se deduzir daí que, sendo selvagens e ingênuos como criancinhas, devem ser julgados como tal. As peculiaridades, no caso dos cintas-largas, é que eles usam camisas pólo e calças jeans, dirigem carros e fazem negócios de diamantes com contrabandistas que pousam de avião em pistas dentro da reserva. Segundo relatos locais, eles também coletam diamantes e negociam participação naquilo que é descoberto pelos garimpeiros. Teriam cometido o massacre por se sentir lesados nessa participação.
O índio é protegido por um estatuto legal diferente, mas isso não significa que possa sair por aí fazendo o que lhe der na cabeça. Pode-se entender a dificuldade do governo em enfrentar desafios à lei que eclodem no fundo da selva, especialmente quando as metrópoles estão também passando por surtos de violência. O problema está na atitude diante do desafio. Quando os ativistas do Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra cometem crimes como invasão e depredação de propriedade alheia, ocupação forçada de prédios públicos e, às vezes, captura de um ou outro refém, o governo, por simpatia ideológica, finge que não vê. Até os índios percebem esse acobertamento. Tanto que já estão falando em reunir as forças do "Movimento Indígena" com o Movimento dos Sem-Terra. Não é um projeto inocente. Já existem hoje no Brasil 124 áreas indígenas em conflito, segundo a Funai. Há aí um estopim de atritos. Pior: muitas reservas indígenas ficam em áreas da Amazônia usadas pelo narcotráfico. Apenas para efeito de raciocínio: e se, por acaso, os narcotraficantes também perceberem uma oportunidade de ganhos com o uso dos inimputáveis povos indígenas? O que dirá a Funai?

Veja, 28/04/2004, p.50

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