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Um espectro ronda o planeta

O Globo, Opinião, p. 7
Autor: VIEIRA, Liszt
26 de Mai de 2007

Um espectro ronda o planeta

Liszt Vieira

A primeira parte do 4o. Relatório de Avaliação do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC), lançada em Paris em fevereiro, veio confirmar o que a sociedade civil do mundo inteiro já denunciava há décadas. Enquanto os cientistas se dividiam sobre os fundamentos do aquecimento global - alguns negavam o efeito estufa, talvez a serviço do lobby do petróleo - organizações não-governamentais, autoridades universitárias, ambientalistas e até mesmo alguns países alertavam sobre os riscos do aquecimento global.

As ameaças são inúmeras e algumas incontornáveis, como, por exemplo, elevação do nível de água dos oceanos, impactando regiões litorâneas e países insulares, destruição de colheitas, agravamento de inundações e secas etc. Está em cheque toda nossa civilização baseada em combustíveis fósseis e na utilização de energia não renovável que libera quantidades desastrosas de gases produtores do efeito estufa, principalmente CO2.

Os acordos internacionais já alcançados, como o Tratado de Kioto e as decisões posteriores tomadas no âmbito das reuniões técnicas da Comissão de Mudanças Climáticas da ONU, já se tornaram insuficientes. Como os EUA são responsáveis pelo consumo de um terço de toda a energia existente no mundo, sua recusa a assinar o Tratado de Kioto e assumir as reduções programadas de emissão de CO2 compromete o sucesso dos esforços.

O descalabro do governo Bush, defensor intransigente do lobby do petróleo, acabou levando a Suprema Corte americana a decidir que a agência ambiental federal (EPA) tem autoridade para regular as emissões de dióxido de carbono, o que ela se recusava a fazer. Diversos estados, como a Califórnia, já tomaram medidas de redução das emissões de gases-estufa.

A segunda parte do Relatório do IPCC, lançada em 6 de abril, apontou efeitos das mudanças. Estão ameaçadas 30% das espécies, e as regiões pobres serão as mais afetadas. O que era antes tema de controvérsia tornou-se agora agenda prioritária das políticas públicas dos governos.

A terceira parte, lançada em 4 de maio, apontou soluções para mitigar o problema. Com menos de 3% do PIB mundial é possível evitar que a temperatura suba 2% até o fim do século, o que traria conseqüências catastróficas.

Para isso, é necessário reduzir as emissões de 50 a 85% por volta de 2050.

Como os países desenvolvidos destruíram o meio ambiente para assegurar seu crescimento, sua responsabilidade é evidentemente maior que a dos países em desenvolvimento. Mas estes não podem se limitar a lançar a culpa nos países ricos e querer reproduzir o mesmo modelo insustentável de crescimento. A tese da "responsabilidade comum, mas diferenciada" é correta, mas não deve servir de justificativa para impactos ambientais evitáveis e liberação descontrolada de dióxido de carbono.

O Brasil tem reduzido consideravelmente suas taxas de desmatamento e formulado políticas de redução de gases do efeito estufa. Na Conferência das Partes da Convenção de Mudanças Climáticas (COP 12, Nairobi, 2006), as discussões não avançaram muito e a proposta brasileira foi criticada por não estabelecer compromissos e metas com vínculos legais. Precisamos avançar e integrar as diversas iniciativas voltadas para a redução do aquecimento global. É fundamental que o Brasil tenha uma política nacional integrada com as diversas políticas setoriais que possam contribuir para a redução dos gases. Pesquisa recente do Ibope produziu resultados surpreendentes: 4 em 5 brasileiros estão muito preocupados com os efeitos da mudança; os pobres e menos escolarizados são os mais conscientes.

Dos entrevistados, representando um universo de diferentes classes sociais e níveis distintos de renda, 63% afirmaram estar dispostos a comprometer metas de crescimento e geração de renda e emprego se os projetos vierem a destruir o meio ambiente. Ignoram o problema apenas 10% da população. Até mesmo o segmento de baixa escolaridade (83%) tem conhecimento. Afinal, são os pobres os mais afetados pela destruição ambiental - inundações, secas, deslizamentos, desertificação etc. Quem sofre os efeitos na própria carne não necessita de teoria para conhecer o problema.

Infelizmente, muitos países ainda não incorporaram os novos paradigmas de desenvolvimento em suas políticas e projetos governamentais. Para crescer, continuam destruindo recursos naturais e emitindo gases do efeito estufa.

Atitudes individuais do tipo "o que você pode fazer para salvar o planeta" contribuem, mas não são suficientes. É necessária uma ação política integrada nos níveis regional, nacional e internacional. Nenhum país sozinho pode resolver o problema. A natureza não reconhece fronteiras. A questão é global, o que exige instâncias supranacionais de decisão, além das nacionais.

O espectro do aquecimento global ronda o planeta. Mas a Terra, ao longo de sua história de bilhões de anos, demonstrou extraordinária capacidade de regeneração. Resta saber se e como o ser humano conseguirá sobreviver se exaurir os recursos naturais.

O Globo, 26/05/2007, Opinião, p. 7

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