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Um Brasil com a idade do mundo

GM, Fim de Semana, p.8
15 de Out de 2004

Um Brasil com a idade do mundo
Pompa da mostra sobre a pré-história brasileira aberta no CCBB-Rio contrasta com a situação da arqueologia no País
Alexandre Werneck do Rio
No salão central, abaixo da rotunda do Centro Cultural Banco do Brasil, no Rio, uma imponente réplica de esqueleto de preguiça gigante de cerca de sete metros de altura recebe os visitantes. Em uma grande sala escura do segundo andar, uma projeção de mais de dez metros de largura exibe na parede pinturas rupestres de mais de 40 mil anos animadas e ao som de música grandiloqüente. Não há dúvida: a exposição Antes — Histórias da Pré-história”, é mais um dos eventos espetaculares que vêm se tornando a marca do CCBB. A mostra, que segue até 9 de janeiro, foi escolhida para marcar o recém-completado aniversário de 15 anos da casa.
E a exposição é mesmo tão impressionante quanto importante. Com 300 peças, a maioria vinda de museus nacionais, ela tem um objetivo claramente educacional: exibir ao público comum o que os arqueólogos sabem sobre a pré-história brasileira. Logo na primeira sala, uma pequena coleção de peças de 11 países, além do Brasil, como uma pequena versão da Vênus de Willendorf, famosa escultura de mulher de grandes seios da Idade da Pedra Lascada (cerca de 20 mil a.C.). Tudo para mostrar como, na pré-história, o homem brasileiro e o de outras partes do mundo estavam em um mesmo estágio.
O subdesenvolvimento veio com o homem branco, com a chegada dos portugueses”, diz, em um passeio pelos corredores da mostra, uma de suas curadoras, Niéde Guidon, a mais importante arqueóloga brasileira, famosa internacionalmente por seu trabalho no Parque Nacional da Serra da Capivara, Piauí, e diretora da Fundação Museu do Homem Americano (Fumdham), também no Piauí.
Mas o que o público comum não vê no evento é a contradição entre sua grandiosidade e a situação descrita por Niéde e pelas outras curadoras: a arqueologia brasileira não passa pelo melhor momento de sua história. O quadro acompanha toda a exposição: a cada objeto desenterrado que se vê, surge um fantasma, um problema. Diante de uma urna funerária marajoara vinda do Museu Emílio Goeldi, no Pará, feita de cerâmica e com quase um metro de altura, a arqueóloga dá um exemplo: Você encontra isso facilmente em um antiquário na Suíça. Um dos nossos maiores desafios é o fato de que as peças são facilmente contrabandeadas”. O que, segundo ela, dialoga com o desrespeito de proprietários de terra que vendem peças encontradas em suas fazendas, com a falta de verbas para projetos e com a falta de pessoal para conservação de acervos.
Segundo documento divulgado pela Fumdham, só este ano 60 de seus funcionários, ligados à administração do Parque Nacional da Serra da Capivara, junto com o Ibama, foram despedidos por falta de recursos. Hoje, poucos guardas tentam coibir depredações, caça e vandalismo.
A professora completou este ano três décadas de trabalho no Parque Nacional. Em sua mais importante pesquisa, realizada no sítio arqueológico do Boqueirão da Pedra Furada, na região, encontrou vestígios do Homo sapiens que datam de até 50 mil anos atrás. A descoberta levantou colocava em xeque as teorias mais aceitas de que o povoamento da América aconteceu apenas há 20 mil anos. Agora, ela está abandonando sua pesquisa. Professora da Universidade Federal do Piauí e com mais de 70 anos, já é aposentada. Trabalha como convidada e não consegue a renovação do financiamento de seu projeto.
Na sala dedicada ao Parque Nacional da Serra da Capivara, Niéde mostra uma réplica da Pedra Lavrada do Ingá, a mais famosa gravura rupestre do Brasil. Diante dela, peças com belíssimas imagens rupestres em baixo relevo que por pouco não foram destruídas por uma pedreira. Com defeitos, só foram restauradas graças ao esforço da arqueóloga Gabriela Martin Ávila, professora da Universidade Federal de Pernambuco, também na equipe de curadoras.
A exposição tem um mérito educacional, mas também é um tributo à população indígena. A grande informação que é dada por esses materiais é acabar com a imagem de que o índio brasileiro não tinha tecnologias nem pertencia a uma sociedade avançada”, diz ela.
Gabriela chama a atenção para outro exemplo dos desafios enfrentados pela arqueologia no país: o diálogo entre as instituições. Ela conta que a tentativa de montar uma sala dedicada aos trançados indígenas na exposição esbarrou na direção da Universidade Católica de Pernambuco, detentora do maior acervo desses objetos no país, a coleção da Furna do Estrago. A universidade não permitiu a saída das peças de seu lugar, apesar das garantias do seguro.
Vamos fazer uma reclamação formal ao Iphan. Não fizemos antes porque estávamos envolvidas com a montagem da mostra”, diz Anne-Marie Pessis, também professora da UFPE e curadora da exposição.
De fato, impressiona a qualidade do material pré-histórico brasileiro trazido, escolhido apenas em acervos nacionais justamente para que não fossem trazidas peças oriundas de contrabando. A exposição é dividida em três grandes braços, cada um representando uma das áreas de incidência de culturas antigas no País. A primeira é a do litoral, representada por zoólitos, trabalhos em pedra na forma de animais, e pelos sambaquis, espécie de misto de moradia e túmulo formados por areia, conchas e terra.
A segunda é a do interior, representada pela arte rupestre; e a terceira é a da Amazônia, com muiraquitãs — amuletos em forma de animais —, cerâmicas, cestas e alguns objetos de uso medicinal.
A exposição começa com uma mostra de grandes animais, como a preguiça gigante e o maior tigre- de - dente-de-sabre do mundo. No primeiro andar, ficam as obras pré-históricas dos vários países. Depois, no resto do CCBB, ficam as salas dedicadas às três áreas.
Segundo Niéde Guidon, a falta de visão das autoridades do Piauí e do governo federal para as possibilidades do Parque Nacional da Serra da Capivara é um dos principais problemas. Em junho deste ano, ela lançou um projeto para potencializar o turismo na área, mas ele vai a passos lentos. O Brasil poderia ganhar muito com o turismo arqueológico e ganha muito pouco”, diz a professora, e lembra que o local em que trabalha é reconhecido como patrimônio da humanidade pela Unesco, sendo considerado o melhor parque nacional da América Latina.
Segundo um estudo da Fumdham, com infra-estrutura, o parque teria potencial para atrair 3 milhões de turistas ao ano. Ainda segundo a Fundação, atualmente este número não passa de 15 mil. Isso tudo, segundo ela, impede o País de saber mais sobre o seu passado e fazer justiça a suas raízes: Ficamos com a idéia de que os índios eram aquilo que foi descrito pelo colonizador, mas essa imagem tem que mudar”.
A professora desmistifica uma comparação habitual feita entre os índios brasileiros e os outros povos pré-colombianos. Para muita gente, astecas, maias, incas eram mais desenvolvidos que tupis, tapuias e tupinambás. A comprovação disso seria o fato de que aqueles povos construíram impérios, com palácios e obras grandiosas, enquanto que os índios brasileiros permaneceram em aldeias. Segundo ela, a diferença é política: Os índios brasileiros tinham uma organização social baseada na solidariedade, sem hierarquia. Eles não construíram grandes palácios porque não havia necessidade”.

Antes — Histórias da Pré-história. Centro Cultura Banco do Brasil. Rua Primeiro de Março, 66. Rio de Janeiro. Tel.: (21) 3808-2020. Até 9 de janeiro de 2005, de terça a domingo, das 10h às 21 horas. Entrada Franca.

GM, 15-17/10/2004, p. 8 (Fim de Semana)

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